sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Washington relança a Al-Qaeda na Síria

A aliança entre Washington e a NATO com grupos terroristas jihadistas salafitas não é nova, mas só na Líbia foi assumida de maneira tão clara como a que está a ser trabalhada agora em território sírio.

José Goulão* | AbrilAbril | opinião

É oficial: os Estados Unidos estão a instrumentalizar um grupo da rede Al-Qaeda para institucionalizar a ocupação da província de Idlib, na Síria, e prolongar assim a balcanização do país e a guerra contra o governo legítimo de Damasco. A aliança entre Washington e a NATO com grupos terroristas jihadistas salafitas não é nova, mas só na Líbia foi assumida de maneira tão clara como a que está a ser trabalhada agora em território sírio.

Um conjunto de comportamentos e actuações que conduzem ao espectro bipartidário dos Estados Unidos e à própria administração Biden revela que está em curso um branqueamento de um grupo de mercenários ligados à Al-Qaeda agora designado Hayat Tharir al-Sham (HTS) depois de se ter chamado Jabhat al-Nusra e Fateh al-Sham; a mudança de nome foi sugerida por meios ligados à NATO porque a al-Nusra, desde sempre activa na guerra internacional movida contra a Síria, tinha a bênção do chefe da Al-Qaeda, Ayman al-Zavahiri, como um ramo da entidade terrorista fundada por Bin Laden com a colaboração directa da CIA.

O Hayat Tharir al-Sham é o grupo de mercenários ditos islâmicos que assumiu a chefia do processo de ocupação da província síria de Idlib como último reduto terrorista perante a ofensiva do Exército Nacional Sírio. Os salafitas, com o apoio essencial do exército da Turquia, o segundo mais numeroso da NATO, impuseram no território um governo de terror medieval com assassínios e prisões em massa e o extermínio e conversão forçada das comunidades cristãs e drusas.

À cabeça desse regime avulta Mohammad Jolani, um criminoso que esteve associado ao «califado» criado pelo Isis, Daesh ou «Estado Islâmico» em torno da «capital» Raqqa. Jolani trocou recentemente os trajes tradicionais por blazer e camisa azuis para dar uma entrevista de Estado à cadeia pública de televisão norte-americana PBS na qual garantiu que a situação em Idlib «não representa uma ameaça para a segurança da Europa e da América». A entrevista foi um ponto alto da campanha que visa apresentar o chefe terrorista como um político moderno, «semi-tecnocrático» até, digno de ser considerado como uma peça estratégica da nova fase de guerra que os Estados Unidos e a NATO desenvolvem contra a Síria depois da entrada em funções da administração Biden. Jolani “é consideravelmente diferente da Al-Qaeda, não participa em ataques de larga escala contra civis”, garante o entrevistador da PBS, Martin Smith.

Um activo da Al-Qaeda

Mohammad Jolani entrou no cenário da guerra contra a Síria em 2012, como membro do grupo Al-Qaeda na Mesopotâmia, até então envolvido na guerra contra os xiitas no Iraque.

Na Síria, Jolani juntou a sua organização ao Isis de Abu Bakr al-Baghdadi na ocupação do nordeste da Síria e criação do «califado» de Raqqa. A anteceder essa grande ofensiva do «Estado Islâmico», Baghdadi participara numa reunião ilegal em território sírio com o senador norte-americano John McCain. Os laços entre Washington e o terrorismo islâmico sempre estiveram lá.

Jolani ter-se-á desentendido depois com Baghdadi por questões financeiras e de estratégia e fundou então o Jabhat al-Nusra, integrado na rede da Al-Qaeda com o aval do chefe desta organização.

Em 2013, o Jabhat al-Nusra foi um dos grandes contemplados – juntamente com o Isis – pela gigantesca operação Madeira de Sicómoro, desencadeada pela administração Obama e através da qual a CIA canalizou mil milhões de dólares anuais para grupos terroristas representando «a oposição síria». Para essa operação contribuiu designadamente o fundo de investimento KKR, dirigido então por David Petraeus, general norte-americano com vários escândalos às costas principalmente nas guerras do Afeganistão e da Líbia.

Pode dizer-se que desde essa altura Mohammad Jolani não mais saiu do radar dos protegidos clandestinamente por Washington; o seu grupo destacou-se na criminosa ocupação de Alepo Oeste, onde teve representantes da NATO como conselheiros, como se comprovou pela captura destes quando o Exército Nacional Sírio libertou a cidade.

O Jabhat al-Nusra recuou então para Idlib onde montou um feudo cruel sustentado pela situação de fronteiras abertas com a Turquia, de onde lhe chegam constantes apoios militares, reforços de mercenários e armas. E também o «apoio moral» prestado por figuras como James Jeffrey, enviado norte-americano para a Síria e um dos maiores defensores do reforço do envolvimento militar directo dos Estados Unidos no país.

«Um novo homem»

Depois de ter mudado o nome do seu grupo por duas vezes, por recomendação de meios da NATO para simular um «afastamento» da Al-Qaeda, Mohammad Jolani deu mais um passo importante, certamente não apenas por iniciativa própria: transformou a administração ocupante de Idlib pelo Hayat Tahrir al-Sham no chamado «Governo de Salvação da Síria».

É em torno desta operação que se tem desenvolvido toda a campanha de branqueamento da figura do terrorista Jolani, na qual desempenha um papel determinante o Internacional Crisis Group (ICG), uma entidade de inteligência ocidental financiada nomeadamente pela União Europeia e que «aconselha» um maior envolvimento militar da NATO, por exemplo na Síria. O ICG é também uma entidade subsidiária do conspirativo e globalista Grupo de Bilderberg.

Recorda-se que o ICG teve um papel crucial no processo de desmantelamento da Jugoslávia através da NATO e distinguiu-se, por exemplo, na acção de pilhagem dos bens minerais e industriais da Sérvia no Kosovo para os entregar, naturalmente, a grupos económicos ocidentais.

Em Janeiro de 2020, o International Crisis Group conversou durante quatro horas com Mohammad Jolani e concluiu estar perante «um novo homem». O Hayat Tahrir al-Sham é «um grupo local independente da cadeia de comando da Al-Qaeda, com uma agenda estritamente islâmica, não transnacional», concluiu.

Por isso o IGC é uma entidade fulcral no grupo de organizações e personalidades norte-americanas e europeias que recomenda a saída da organização de Jolani da lista de grupos terroristas que vigora em Washington.

Essa presença na lista é um «grande obstáculo», alega o ICG, porque «o HTS distanciou-se dos ataques transnacionais e dos militantes que os defendem». Ideia que o próprio dirigente terrorista, em sintonia, completou na entrevista à PBS afirmando que os seus jihadistas salafitas e Washington têm o mesmo objectivo: o derrube do governo de Damasco.

Percebe-se o objectivo da campanha para retirar o Hayat Tahrir al-Sham da lista de organizações terroristas. Ganharia legitimidade internacional e o seu «governo de salvação» exercido pela Al-Qaeda estaria em condições de ser a nova entidade na qual os Estados Unidos e o Ocidente em peso poderiam apostar para relançar a guerra contra Damasco a partir de Idlib.

Balcanização

Além de Idlib, tropas e mercenários estrangeiros ocupam também uma área do nordeste da Síria onde se movem as chamadas «Forças Democráticas Síria» (FDS) – um misto de milícias curdas e restos do Isis – apoiado por tropas norte-americanas no terreno. Esta balcanização da Síria que caracteriza a fase actual da guerra é a base do previsível relançamento da agressão contra a soberania do país.

A propósito da importância estratégica desta ocupação, juntamente com a de Idlib, a publicação Foreign Policy salientou em 2019 que o já citado enviado norte-americano James Jeffrey «começou a fazer planos para ficar no nordeste da Síria indefinidamente como obstáculo às tentativas de Assad para consolidar o poder. Em particular, a equipa de James Jeffrey pretendia negar ao presidente sírio e aos seus apoiantes iranianos o acesso aos cobiçados campos de petróleo da província de Deir Ezzor, que estão na sua maioria sob controlo das Forças Democráticas Sírias».

Estas intenções foram confirmadas pelo próprio James Jeffrey ao confessar que fez tudo, incluindo mentir ao presidente, para impedir a administração de Trump de retirar tropas da Síria. «Estávamos sempre a jogar com o número de soldados presentes na Síria para evitar uma retirada total», admitiu.

Declarações deste teor misturam-se agora com a importância atribuída à Al-Qaeda nos planos norte-americanos e atlantistas, perceptível no branqueamento da figura do terrorista Mohammad Jolani.

Charles Lister, um analista britânico em Washington financiado por think tanks ligados às petroditaduras do Golfo e que defende abertamente o jihadismo na Síria, disse em 2017 no Atlantic Council, um think tank da NATO, que «o êxito relativo da Al-Qaeda na Síria incorporou a sua ideologia e a sua narrativa não apenas em partes do território sírio mas também em partes da região do Médio Oriente».

O mesmo Lister afirmou em 2018, numa audiência no Capitólio na qual defendeu, perante o Congresso, o reforço da intervenção militar na Síria: «a Al-Qaeda realmente acertou (…) A sua estratégia é muito mais eficaz no terreno. Eles estão a conquistar os corações e as mentes».

Ainda para Lister, Jolani encabeça um «governo semi-tecnocrático»; é «a versão árabe do Che Guevara, que se aprofunda na história política árabe moderna» fazendo do seu grupo HTS «um movimento jihadista politicamente mais maduro e inteligente». Da mesma maneira que o entrevistador da PBS, Martin Smith, passando com toda a ligeireza sobre as limpezas étnicas cometidas em Idlib, assegurou que Jolani «prometeu proteger os direitos dos drusos e cristãos».

A investigadora israelita Elizabeth Zurkov, associada ao Newlines Institute, uma entidade neoconservadora com sede em Washington, chega mesmo a garantir que «o HTS é indiscutivelmente o ramo da Al-Qaeda mais pragmático que existe».

Até Ken Roth, do Human Rights Watch, grupo de «direitos humanos» financiado por oligarcas, aderiu à «nova imagem» de Mohammad Jolani, elogiando a sua entrevista com o International Crisis Group.

Daí que, no passado mês de Junho, think tanks financiados por Israel tenham conseguido angariar mais armas da CIA para o HTS/Al-Qaeda, afinal também aliado do sionismo no campo de batalha em que transformaram a Síria.

Nem todas as vozes, é certo, concordam com esta admiração pela Al-Qaeda em Washington e Bruxelas, manifestada assim exuberantemente cerca de 40 anos depois de os Estados Unidos, o Reino Unido e a Arábia Saudita fundarem a organização terrorista de Bin Laden no Afeganistão. A história repete-se agora na Síria.

«Os think tankers mataram muita gente», acusa Brett McGurk, ex-enviado dos Estados Unidos contra o Isis e conhecedor dos bastidores destas santas alianças.

Outra voz com plena autoridade para desmontar o reforço da transformação da Al-Qaeda num ramo das forças militares dos Estados Unidos é a de Lindsey Snell, jornalista independente norte-americana, sequestrada e mantida em cativeiro pela Jabhat al-Nusra: «o HTS defende a mesma ideologia que o Isis mas decidiu apelar ao Ocidente para preservar a sua influência em Idlib enquanto embolsa milhões de dólares por mês de ajuda internacional e dinheiro do petróleo».

Snell revela também que «até hoje a maioria dos militantes ainda se designam Nusra; a separação da Al-Qaeda foi realmente cosmética e superficial porque eles continuam a ser os terroristas que impõem a lei islâmica em todos os territórios que controlam».

Mas estas são palavras que, no actual contexto ocidental de agressão à Síria, não contam para nada.

José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril

Imagem: Militares norte-americanos e «rebeldes» em Al-Tanf, no Sul da Síria, junto à fronteira com a Jordânia / Sputnik News

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