José Soeiro* | Expresso | opinião
Já foi assinalado por várias pessoas, nomeadamente no Expresso, mas vale a pena insistir. As declarações de Rui Rio, que escolheu dizer que o problema do emprego em Portugal é haver apoios sociais a mais, o que justificaria as queixas dos patrões acerca da falta de mão de obra em determinados setores, são todo um programa. Pelo que afirmam, pelo que sugerem e pelo que ocultam.
Comecemos pelo que ocultam: a proteção social em Portugal não é demais, é de menos. Quase 40% dos desempregados oficialmente registados em novembro, não têm acesso a subsídio de desemprego: 132.461 pessoas inscritas nos centros de emprego não tinham direito a proteção no desemprego e a estas somam-se as que não estão sequer inscritas. Mais de metade das que tinham acesso ao subsídio (60%, ou 131.223 beneficiários) recebia 500 euros ou menos, isto é, um valor inferior ao limiar de pobreza, que anda nos 540 euros. Ou seja, temos uma baixa cobertura do subsídio de desemprego e temos valores que são, na maioria dos casos, condenações à pobreza. Com o Rendimento Social de Inserção (a prestação social mais fiscalizada do nosso sistema de proteção social), a questão é ainda mais gritante. Em novembro, recebiam-no 97 mil famílias. O valor médio por família era de 261 euros (menos de metade do limiar de pobreza) e o valor médio por beneficiário era de 119,5 euros. Ou seja, uma condenação à miséria.
A ideia de que temos um sistema de proteção social faustoso, que dá às pessoas pequenas fortunas que lhes permitem viver acomodadas no apoio do Estado é falsa. Até a OCDE, guardiã zelosa das leis da troika e da sua lógica austeritária, apontava como “prioridade para a governação” no seu último relatório, ainda este mês, alargar o acesso aos subsídios de desemprego e aumentar o nível e a cobertura das prestações de rendimento mínimo…
A sugestão de Rui Rio serve para namorar os equívocos deliberados da extrema-direita. E aproxima-o do legado de Passos e da governação mais extremista que o país já teve. Foi Passos quem, em 2012, entendeu cortar 10% no valor do subsídio de desemprego para “promover a empregabilidade”. Esse logro, através do qual a condenação à pobreza foi apresentada perversamente como um “incentivo à procura ativa de emprego” partia de um desprezo e de um preconceito sobre as pessoas, de uma falta de análise sobre as causas das disfunções do mercado de trabalho em Portugal e tratava o subsídio de desemprego como uma espécie de favor do Estado e não como um direito dos trabalhadores fundado nos seus descontos. Os resultados, em termos de emprego, nesse período, são bem conhecidos: a maior vaga migratória e o maior número de desempregados das últimas décadas. Foi nessa política que Rio entendeu situar-se.
Se o PSD ressuscitou o discurso sobre os “malandros dos apoios sociais”, a extrema-direita soma-lhe as vulgaridades e o duplo critério com que se pronuncia sobre atos criminosos. Quando os crimes são contra imigrantes pobres, há sempre um “mas” para Ventura, como se tem visto na selvajaria de Odemira.
Mas não basta à esquerda constatar a incapacidade política destes discursos, que compensam com inflação retórica a ausência de propostas que contem para mudar a exploração e a falta de horizontes. Há um problema salarial em Portugal e ele não se resolve apenas com a subida do salário mínimo. Para que o emprego seja atrativo e para que o padrão produtivo mude, é preciso muito mais. Dou o exemplo de três respostas que poderiam ser dadas de forma combinada.
Primeira, a contratação coletiva. O tema não é novo e pode soar pouco excitante a quem entenda a política como uma novela onde o que conta é o último fuxico. Mas é na contratação coletiva que se definem salários para além do mínimo, categorias, carreiras, perspetivas. O facto de haver contratos coletivos que não são revistos há vários anos (uma década, duas décadas) leva ao congelamento de salários. Nalguns casos, há 70% dos trabalhadores das várias categorias com o mesmo salário - foram todas absorvidas pelo SMN. Já para não falar dessa grande fatia de jovens que nunca conheceu qualquer contrato coletivo.
A segunda resposta é combater a precariedade. Tema estafado? Porventura sim, mas só nos discursos. A percentagem de contratos a prazo permanece estruturalmente a mesma, com ligeiríssimas variações nas últimas duas décadas. Ora, o salário de um precário é em média 300 euros abaixo do de um trabalhador com contrato efetivo (cerca de 1100€ euros versus 800€, dados dos Quadros de Pessoal, 2019). E não bastam boas intenções para mudar este padrão.
Uma terceira resposta tem a haver com as desigualdades internas às empresas. António Costa, em agosto de 2018, dizia em relação às diferenças salariais no setor privado: “Se for a uma empresa tipo EDP vai ver que o salário de topo é 210 vezes o salário mínimo. Não é aceitável esta disparidade e o desinvestimento que as empresas fazem nos quadros jovens. Isto tem de mudar sob pena de perdermos esta geração”. Passaram três anos e, na realidade, as desigualdades agravam-se. O que foi feito sobre isto? O PS chumbou sempre, ao longo deste período, a proposta do Bloco para criar leques salariais nas empresas.
A recusa de mudanças onde é essencial é um problema. Se a direita oscila entre o vazio, o anátema e o passado, à esquerda não basta seguir caminho como até aqui. Tem mesmo de abrir um ciclo novo e de ter força para mexer no que o governo de António Costa quis que permanecesse intocado nos últimos anos.
* José Soeiro -- Tem 30 anos, é sociólogo, ativista e deputado do Bloco de Esquerda. É do Porto. Realizou uma tese de doutoramento sobre transformações no trabalho e mobilizações de precários em Portugal, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Publicou, com Miguel Cardina e Nuno Serra, o livro “Não acredite em tudo o que pensa. Mitos do senso comum na era da austeridade”, pela Tinta-da-China.
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