sábado, 15 de janeiro de 2022

Angola | MEIO MILÉNIO DE MIERICÓRDIAS

Artur Queiroz*, Luanda

Misericórdia de Luanda Nasceu com a Cidade e Viveu Séculos de Glória

Hospital da Cidade Alta Foi Sede da Primeira Escola Médica de Angola

Paulo Dias de Novais fundou Luanda e a Santa Casa da Misericórdia, em 1576. Mas a rainha D. Leonor criou a instituição há mais de 500 anos. Em 1628, foi construído o Hospital da Misericórdia, que durante séculos prestou cuidados de saúde aos Luandenses, tendo-se especializado no tratamento do “Mal de Loanda” (escorbuto) e doenças do fígado. 

O Hospital da Misericórdia foi sede da Escola Médica de Luanda, a primeira instituição de ensino superior em Angola, que teve ao seu serviço brilhantes professores de Medicina, entre os quais merece destaque José Pinto de Azeredo, natural do Rio de Janeiro, nomeado por D. Maria I, a 24 de Abril de 1789, “físico-mor da cidade de Loanda e do Reino de Angola”. Depois de estudos na Faculdade de Medicina de Coimbra, fez especializações em Edimburgo e Leide.

Estudiosos da matéria garantem que a primeira Igreja da Misericórdia foi erigida em São Salvador do Congo, mas não existem documentos que a liguem a qualquer irmandade ou instituto religioso. Documentos dão conta da existência da Santa Casa da Misericórdia em Massangano, criada em 1660, “por provisão do Cabido de Angola e Congo”. O consentimento régio chegou em 1676. Em Benguela, a Irmandade de Nossa Senhora do Pópulo estava ligada à Misericórdia.

A Santa Casa da Misericórdia de Luanda teve uma importância extraordinária na assistência aos desvalidos e na prestação dos cuidados de saúde. A sua actividade foi contínua, durante séculos.

Tese de Cadornega

O historiador António de Oliveira Cadornega, Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Massangano, afirma que a instituição nasceu em Luanda em 1623 (há 400 anos), por iniciativa do bispo D. Simão de Mascarenhas. O historiador Lopes de Lima confirma a tese de Cadornega. Mas um testamento deita por terra esta posição.

D. Simão de Mascarenhas teve um papel relevantíssimo no desenvolvimento da Santa Casa da Misericórdia de Luanda. À sua custa mandou construir a Galeria que recebeu o Consistório e a Casa de Despacho. Mas um negreiro arrependido de comprar e vender serres humanos, para “expiar os seus pecados”, fez-se noviço da Companhia de Jesus e deixou muitos dos seus bens à Santa Casa da Misericórdia de Luanda. 

Este testamento é de 1623. Acontece que o bispo e governador, só chegou a Luanda em Agosto desse ano. Em quatro meses não podia pôr de pé uma instituição com a grandeza da Santa Casa da Misericórdia. Cadornega e Lopes de Lima estavam equivocados.

António Franco contraria os dois, com inteira razão, e garante que a Misericórdia de Luanda foi fundada por Garcia Simões, um padre jesuíta que acompanhou Paulo Dias de Novais na expedição a Angola. O capitão general teria atribuído ao sacerdote a missão de fundar a instituição, na mesma data da fundação de Luanda. Os estudiosos podem conhecer a posição de Franco, consultando a sua obra “Annus Gloriosus S. J. in Lusitania”.

Luanda e Massangano

O rei de Portugal reservava para si o direito de superintendência e a última decisão na criação da Santa Casa da Misericórdia em todo o reino, aquém ou além África. Na criação da Misericórdia de Massangano fala-se nos “privilégios e regalias” que foram concedidos à instituição de Luanda. A da vila que foi capital da colónia durante a ocupação holandesa, tinha os mesmos privilégios e regalias. Mas até à data é desconhecido qualquer documento que regule a Misericórdia de Luanda, nos seus primórdios.

António de Oliveira Cadornega e Fêo Cardoso recolheram abundante informação sobre a Santa Casa da Misericórdia de Luanda. Por eles sabemos que, desde o início, existia uma irmandade organizada, a sua Mesa e o Provedor.

O cargo de Provedor da Misericórdia de Luanda foi muitas vezes exercido pelos bispos e governadores. Há inúmeros documentos que o comprovam, sobretudo dos séculos XVII e VXIII. Entre ilustres Provedores estão o bispo D. Francisco de Soveral (1784-1790), ou os governadores Luís César de Menezes (1690) e Mota Fêo (1816-1819), que deram um impulso extraordinário à instituição, tornando-a indispensável na sociedade luandense seiscentista, setecentista e oitocentista.

Falta de regime legal 

No primeiro quartel do século XIX foi extinta a Irmandade. A Santa Casa passou a ser dirigida por Comissões Administrativas. Em 1850, a Comissão Administrativa presidida pelo físico-mor Viana de Resende implorou às autoridades que definissem legalmente o regime da instituição. O governador Visconde de Pinheiro foi sensível ao apelo e encarregou o suplicante de redigir uma proposta de regulamento. Mas nada foi feito.

Em 1870, o governador Coelho do Amaral insistia que era necessário redigir os estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Luanda “porque não tem fins propriamente determinados, nem tem obrigações a que se sujeite: e por isso mal pode estimular a caridade pública por lhe não dar as suficientes garantias”. Apesar desta realidade, a instituição continuou sem um regulamento.

Nos anos 50 do século passado, a situação era idêntica. O regime do Estado Novo, no Artigo 433º do Código Administrativo estabelecia que a “denominação de Santa Casa da Misericórdia ou de Misericórdia só pode ser usada por estabelecimentos de assistência ou beneficência criados e administrados por irmandades ou confrarias canonicamente erectas e constituídas por compromisso”. A Santa Casa de Luanda não cumpria estas condições.

Acção Social Relevante

Até à ocupação de Luanda pelos holandeses, a Misericórdia desenvolvia intensa actividade no âmbito dos cuidados de saúde. O Estado aproveitava o hospital da Santa Casa para garantir assistência aos militares. Em troca, pagava 200 mil réis por ano.

Quando Salvador Correia de Sá e Benevides expulsou os holandeses, a Santa Casa da Misericórdia de Luanda teve uma importância vital na sociedade luandense. A instituição atingiu o auge nas suas actividades caritativas e de prestação de cuidados de saúde. António de Oliveira Cadornega recolheu e publicou abundante documentação que atesta a sua época de esplendor, na segunda metade do século XVII.

Por Cadornega sabemos que a Santa Casa da Misericórdia de Luanda, no último quartel do século XVII, além da caridade e do hospital, prestava assistência aos presos e aos pobres, garantindo-lhes alimentação, cuidados básicos e as acções legais para a sua defesa ou libertação.

Neste período foi restaurada a Igreja (Cidade Alta) que passou a ser o templo mais importante nas festividades tradicionais. Segundo Cadornega, os Provedores “eram sempre dos mais possantes e principais cidadãos e moradores”. As despesas com as suas actividades eram exclusivamente suportadas pelos irmãos.

Decadência e Dificuldades

No final do século XIX a colónia de Angola estava mergulhada numa crise económica sem precedentes e essa realidade teve impacto na Santa Casa da Misericórdia de Luanda. Os cofres da Fazenda estavam vazios. A acção missionária ficou reduzida a algumas missões arruinadas. Poucos sacerdotes ficaram para enfrentar a desgraça.

A Santa Casa da Misericórdia de Luanda foi aos poucos abandonando as suas actividades de caridade e ficou reduzida ao hospital. O risco de extinção era real! Mas a instituição ainda tinha alguns bens valiosos. Edifícios que lhe foram legados, davam algum rendimento. Mas as vastas terras aráveis do Bengo e Cuanza só davam despesa. Era difícil contratar quem cultivasse a terra. Para agravar este quadro, o Estado lançou pesados impostos às barcaças que faziam transporte de mercadorias nos dois rios.

O Hospital Militar, instalado no Hospital da Misericórdia estava a precisar de obras urgentes, de remodelação e ampliação. Foi a instituição que teve de suportar as despesas. O Estado estava falido.

O Provedor eleito foi substituído pelas Comissões Administrativas e a Santa Casa ficou reduzida a apoiar os pobres nas suas enfermarias. Em 1876, o velho hospital foi extinto e o edifício ocupado pelos Serviços de Saúde.

As dificuldades atingiram o extremo quando a Santa Casa da Misericórdia de Luanda passou a ser administrada pela Junta da Fazenda. Mas dois anos depois essa situação aviltante foi corrigida.

O Hospital da Misericórdia de Luanda foi instalado entre 1612 e 1616. O explorador britânico George Tams visitou as colónias portuguesas na África Ocidental e em 1841 estava em Luanda. No livro que escreveu sobre as suas viagens faz a seguinte referência ao hospital da Santa Casa: “as enfermarias são altas, espaçosas, e tão abundantes, que não havia receio que elas se enchessem todas. Os doentes particulares, que desejassem ter quartos separados, podiam sempre ali encontrar acomodação, mediante uma pequena quantia destinada para o seu sustento. A maior enfermaria continha 20 camas de madeira, com enxergões cheios de palha”.

Quanto às instalações do hospital, majestosas, que ainda hoje marcam o carácter arquitectónico da Cidade Alta, foram assim descritas por George Tams: “o edifício vê-se a grande distância, capitaneando a magnífica vista de toda a cidade de Luanda, desde o porto de mar aos lugares circunvizinhos, orlados por colinas”.

Cadornega dá-nos conta que o Hospital da Misericórdia tinha quatro enfermarias “em forma de cruz” e mais tarde foi construída uma quinta enfermaria só para mulheres. Até à Independência Nacional o edifício foi sede do Tribunal Militar. Hoje está lá o Tribunal de Contas.

O fim do hospital teve reflexo positivo na Santa Casa da Misericórdia de Luanda, que a partir de 1883 (abertura do Hospital Maria Pia hoje Josina Machel) se dedicou mais à caridade. Os Provedores e a Mesa passaram a gerir cuidadosamente os numerosos e valiosos bens da instituição. No primeiro quartel do século XX, a Santa Casa da Misericórdia de Luanda distribuía esmolas pelas famílias mais carenciadas, construiu um albergue para indigentes, abriu um posto médico e distribuiu subsídios por outras instituições de caridade mais necessitadas.

Em 4 de Setembro de 1929, um diploma legislativo encarregou a Santa Casa da Misericórdia de Luanda de administrar e manter o Instituto Feminino D. Pedro V, fundado em 29 de Junho de 1854 para recolher meninas órfãs, garantindo a sua formação até à idade adulta. As primeiras instalações eram na Baixa, mas mercê da doação de um benemérito, o asilo foi mudado para um “palácio assobradado” na Cidade Alta, junto à Rua do Casuno. No início dos anos 70 mudou para novas instalações.

Depois da Independência Nacional foi o crepúsculo. Para mal de todos e sobretudo dos pobres e das meninas órfãs. Ainda não fomos capazes de fortalecer o sector social com instituições de solidariedade, aproveitando as “oportunidades” que se abriram em 1992, quando o regime passou do socialismo para a democracia representativa, pendurada na economia de mercado, forma simpática e indolor de falar de capitalismo. Ou deste capitalismo que mata, assim crismado pelo Papa Francisco, o líder mundial mais importante nestes primeiros 22 anos do século XXI.

* Jornalista

Sem comentários:

Mais lidas da semana