segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Portugal | UMA CHUVA DE DINHEIRO CAI NA CAMPANHA ELEITORAL

Quem participa no Rendimento Básico Incondicional, como participa, quanto tempo dura, quais são os protocolos, os incentivos e os critérios de avaliação da “experiência”, isso fica no segredo “cientista”.

Francisco Louçã* | opinião

Sempre achei a proposta de um Rendimento Básico Incondicional uma fraude. Choca-me que políticos sérios venham a uma campanha eleitoral, num país com dois milhões de pobres (após transferências públicas), prometer um maná dos céus, uma chuva de dinheiro ("rendimento"), que assegurará o essencial de uma vida boa ("rendimento básico") para toda a gente sem excepção ("incondicional"). Em inglês, o nome é Rendimento Básico Universal e é isso mesmo, toda a gente receberá do Estado o suficiente para viver. Para as pessoas necessitadas, esta promessa é fabulosa: ficaria assegurada a sua vida com o mínimo de conforto e segurança. Não é uma prestação para proteger da pobreza, do desemprego ou da doença, é uma garantia de vida para todos para todo o sempre. Rendimento, Básico, Incondicional.

Há mesmo uma filosofia new age na base desta conversa: deve ser incondicional porque é mais simples e não tem burocracia, paga-se e pronto, simplesmente porque corresponde a um direito adquirido ao nascer. E deve ser generoso, para garantir que possamos viver consoante o nosso prazer. É encantador. Não deixa por isso de ser espantoso que quem apresenta uma proposta deste tipo em eleições, naturalmente como razão para um voto, fique incomodado com a pergunta lógica: e faz a fineza de me explicar como é que isso se paga?

Assistir à resposta de Inês Sousa Real e de Rui Tavares a esta questão tão banal tem sido penoso. As suas estratégias são simplesmente tocar e fugir. Sousa Real diz que esse rendimento é para vítimas de violência doméstica (ou seja, é uma prestação condicional, replicando um apoio que aliás já existe), ou para pessoas desajustadas ao seu emprego e que, assim sendo, não é incondicional. Tavares diz que é uma "experiência" para pouca gente, tão pequena que qualquer autarquia a possa financiar, embora o seu programa eleitoral assegure que se trata de "testar, com vista à implementação faseada, um Rendimento Básico incondicional, que distribua a riqueza nacional produzida e garanta um rendimento a qualquer cidadão, independentemente da sua condição, dos pagamentos do Fundo de Desemprego ou de outros programas de apoio social". Leu bem, isto é para "distribuir a riqueza nacional produzida" e a toda a gente, somos 10,5 milhões de pessoas em Portugal. A partir daí, fica tudo ainda mais estranho e ouve-se que é para ver como se comportam os desempregados, ou que a "experiência" é o método científico para descobrir o que as pessoas farão com o dinheiro. Quem participa, como participa, quanto tempo dura, quais são os protocolos, os incentivos e os critérios de avaliação da "experiência", isso fica no segredo do "cientista". Acontece ainda que, antes do resultado da "experiência", a proposta escrita no programa tem o objetivo que o nome diz, o estado distribuirá a toda a população a "riqueza nacional" por via de um rendimento básico. Não deixa de ser um grandioso objetivo, mas não pergunte nem como nem quando.

Pensemos então no que poderia acontecer depois do triunfo da "experiência" ou quando a prestação vier a ser incondicional. Chegará esse dia mágico em que o Estado terá de pagar a toda a gente. Como os proponentes não apresentam a conta, e até suspeito que nunca o farão, sugiro a quem lê que a faça: imagine que o rendimento "básico" são os 900 euros de salário mínimo que Tavares propõe (e que aplica a 12 meses). Portanto, isso dá 900*12 meses=10.800 euros anuais por pessoa. Pode ser menos, mas se assim for já não é "básico", pois não? Use-se então aquele valor. Como somos 10,5 milhões, o Estado tem de pagar anualmente 10.800 euros*10,5 milhões de pessoas =113,4 mil milhões de euros. Acontece que esse valor é mais do que o total do Orçamento do Estado. Seria preciso mais do que duplicar o Orçamento para pagar isto, ou seja, que o Estado cobrasse quase 100% do PIB (ou que, não mudando os impostos, cortasse toda a sua despesa). Reconhecendo que os promotores da ideia já apresentam isto há seis anos e tiveram tempo para pensar no assunto, é óbvio que fizeram esta conta e estão numa encruzilhada: ou propõem um pagamento muito pequeno (100 euros a cada pessoa e já seria mais do que o custo total do SNS) ou que não se aplique a toda a gente. Ou seja, que deixe de ser ou incondicional ou básico. Como isto equivaleria à curiosa estratégia de tentar convencer alguém com o argumento de que não deve levar a sério a proposta, a conversa é evitada, como se fosse insultuoso perguntar a quem promete dinheiro se vai mesmo pagar.

Resta ainda o melhor dos argumentos: é que isto já existe. A prova do pudim foi mesmo anunciada com fanfarra. Como é que alguém se atreveu a duvidar? O RBI existe no Alasca, onde são distribuídos lucros do petróleo (e cada pessoa recebe o equivalente a 70 euros por mês), ou em Macau, onde são distribuídos lucros do jogo (e cada pessoa recebe cerca de 90 euros por mês). Mas leu bem os valores? O que é que isto tem de "básico"? O pitoresco da referência ao Alasca ou a Macau é que nunca serão citados os valores em causa ou a sua origem irrepetível em Portugal, que não tem petróleo no Beato nem casinos suficientes.

A chegada do Alasca à nossa campanha eleitoral tem destes efeitos, pois mostra que, afinal, a cura para os males da sociedade não vem de um milagre.

* Esquerda.net - 24 de Janeiro, 2022 - 11:02h

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 14 de janeiro de 2021

*Francisco Louçã -- Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.

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