segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

MEMÓRIA DE EL PADRE, O CARDENAL

Artur Queiroz*, Luanda

Nas minhas andanças de repórter estive na Nicarágua e fiz uma reportagem com os combatentes da Frente Sandinista de Libertação Nacional. Foi nessa ocasião que conheci El Padre, o poeta, filósofo e guerrilheiro Ernesto Cardenal. Esmagada a ditadura do general Somoza, os sandinista fizeram um governo e o ministro da Cultura era precisamente o padre Cardenal. Entrevistei-o. Nesta altura já existia entre nós uma relação fraterna e de amizade. Quando o Papa João Paulo II visitou oficialmente a Nicarágua, xingou o meu amigo em público por ter aceitado fazer parte do gabinete ministerial. 

Jean Bertrand Aristide, padre salesiano do Haiti. Em 1986 liderou um movimento político e social contra o ditador Duvalier. Na capital, Porto Príncipe, fundou comissões populares de bairro. Liderou o Movimento Avalanche (Lavalas) que esteve na base do derrube da ditadura. Em 1987, entrevistei-o e percebi pelas respostas que era muito mais radical do que eu. Extrema-esquerda pura e dura. Em 1988, foi expulso da Ordem dos Salesianos devido às suas actividades políticas. Em 1980, protagonizou uma candidatura à Presidência da República do Haiti. Ganhou as eleições com quase 70 por cento dos votos. Depois aderiu ao neoliberalismo mas nem assim o reintegraram na Igreja.

Padre Apolónio Graciano, angolano. Era pároco de bairros pobres de Luanda e nessa altura tomei conhecimento da sua actividade. Quando foi inaugurada a Centralidade de Cacuaco dirigiu um movimento activíssimo para dotar a nova cidade com os equipamentos sociais indispensáveis. Fui lá entrevistá-lo com os meus colegas José Ribeiro e o talentoso repórter fotográfico Dombele Bernardo. Ficámos amigos ainda que lhe tenha perdido o rasto quando saí do Jornal de Angola. 

Este introito serve para responder a dois idiotas que me chamaram anti clerical e anti Igreja. Não sou nada disso. Venho de uma família de ateus e agnósticos. Meu avô materno emigrou para os EUA quando tinha 14 anos e andou a abrir estradas de macadame munido de pá e picareta. Aderiu ao movimento anarco-sindicalista e cantava-me assim: Trabalhador/ Tu não entres na Igreja/ Os santos são de pau/Não têm valor/Valor dá somente a quem trabalha.

Como me competia, em devido tempo estudei todas as religiões. Concluí que não sou agnóstico nem ateu. Simplesmente não frequento essas coisas. Acreditar ou não acreditar já é qualquer coisa. Eu ignoro. Nada de nada. Estudei a fundo a filosofia de Pirro e senti-me confortável, até hoje, a duvidar da própria dúvida. E quem acredita e professa uma religião? Total respeito. Nada a opor. No dia em que não respeitarmos a Fé dos outros estamos a faltar-nos ao respeito. 

No início dos anos 50 conheci o Senhor Simão Toco. Ele transbordava bonomia e simpatia. Beijei-o, ele beijou-me e fez-me uma carícia no cabelo. Eta amigo de meu pai. Os comerciantes daquele tempo entre Maquela do Zombo e o Bungo, despojavam-se de tudo para lhe serem agradáveis. Ele pedia para os pobres e tudo lhe davam num impulso incontrolável. Na Kapopa o meu vizinho era latoeiro, o senhor Van-Dúnem, cabelos todos brancos demonstrando ter pelo menos três vezes 30. Vivia sozinho com um neto da minha idade, o Maninho. 

O meu colega era muito arguto. Um dia disse-me que não ia à missa na missão dos capuchinhos porque Jesus não era preto. Palavras do avô latoeiro. Quando conheci o Senhor Simão Toco disse-lhe alvoroçado:

- Já temos um Jesus preto, conheci-o no Mucaba, é o Senhor Simão Toco. 

O meu amigo duvidou. Não vou fazer disso um ponto de honra. Mas se não é Jesus, pelo menos é um profeta negro.  O Maninho também estava errado quando dizia que os santos são todos brancos. Conheci a obra de Santo Agostinho e além de ser um pensador inigualável, era africano. Só recentemente compreendi o motivo que levou a Igreja de Roma a seguir primordialmente São Tomás de Aquino em detrimento do santo africano. Em plena idade Média, ele fez de todos os seres humanos uma dignidade infinita, únicos e irrepetíveis. É obra! 

Apurados os factos verifico que em Angola temos um Jesus negro, o Senhor Simão Toco. No mínimo é profeta. E uma profetisa que vem da noite dos tempos, Dona Beatriz Kimpa Vita. Nos dias de hoje, Angola tem a profetisa Suzete João, líder da Igreja Teosófica Espírita. Este património é para respeitar, engrandecer, apoiar o mais possível.

O padre Mário Zezano veio a público “responder” a textos publicados pelos jornalistas Ismael Mateus e Carlos Alberto. Li os dois e não encontrei nada de ofensivo ou que cause azedume, acrimónia ou mesmo ódio seja em quem for e muito menos a um padre da Igreja de Roma. Isso pensava eu. Leiam o que escreveu Zezano só porque Carlos Alberto falou em mentiras daquela confissão religiosa: 

“Mentira é o teu Partido (MPLA) que há 46 anos privou-nos de usufruir do que Angola tem de melhor; falta de honestidade mostrou o seu Partido (MPLA) que não conseguiu dar-nos uma vida digna, ao criar elites oligárquicas onde as assimetrias se transformaram no pesadelo do povo. Houve uma divisão primitiva de capitais, o que tornou os afectos ao sistema perigosamente ricos, e os contra, miseravelmente pobres! E isso o senhor não vê, porque o seu Partido (MPLA) é imaculado e a Igreja pecadora, que coragem!”

A diatribe explosiva continua:

“Citando Ismael Mateus (que de Mateus ficou apenas o nome) falas sobre a questão política! O senhor faltou às aulas de Filosofia Política ou nunca ouviu falar de Aristóteles? Finges amnésia ou ignorância? Responda-me: Os Bispos Votam? Se sim, o exercício da sua cidadania passa apenas por isso? Fica sério!”

Esta criatura de Deus come de nós e tudo o que é, deve-o aos angolanos, mesmo àqueles que como eu não frequentam religiões. Leiam o que ele diz de Ismael Mateus e Carlos Alberto:

O vosso, teu, problema é refazer a opinião pública e querer que a Igreja siga a vossa onda. Calma aí! A Igreja é independente das vossas loucuras, digo-o, como cristão, que muitas vezes também traio a Igreja, mas tocar no sagrado na sua base, não é só sacrilégio, como ignorância supina que merece palmatória. Os valores de Jesus Cristo, os bispos estão a apresentar, o teu problema é pensar que os bispos devem, como tu, incensar o MPLA. A Igreja, por ser fiel a Jesus Cristo, está a incomodar-vos/te; daí a intolerância que manifesta o comportamento típico dos fariseus, hipócritas, raças de víboras, raposas de Herodes. Os representantes da Igreja não seleccionam males, tu é que lês com as lentes do partido. FAZ-TE AO LARGO”.

Quem escreve assim não é gago nem fica nada a dever ao criminoso de guerra Jonas Savimbi. O bicho insulta, ameaça com palmatória e fala de sacrilégios. Aka! Leiam só mais esta pérola de sectarismo militante e falta de respeito pelas opiniões dos outros:

“Ser político faz parte da condição humana, seria bom que relesses o pensamento político de Aristóteles para dares lição a quem a humanidade é devedora do conhecimento formal, desde a Idade Medieval com os Jesuítas. A Igreja não se confunde com o mundo, pois, ainda não nos esquecemos do apelo de S. Paulo: “Não vos conformeis com a mentalidade deste mundo”. O problema do senhor está em pensar que o bem está em apoiar o MPLA e condenar a UNITA.
Aguardo mais... das suas aporias!”

Portanto, o homem é da UNITA e quem ousar criticar bispos padres e outros artistas de coleira e sotaina, leva logo nos cornos. E se ganharem as eleições em Agosto vamos logo para a fogueira. Esta intolerância manifestada por Imbamba. Chissengueti ou Zezano é muito grave. Em Angola já temos, a todos os níveis, posições contra o Islão. Se os padres e bispos da UNITA se radicalizam, a intolerância religiosa pode ficar à solta e quem perde são seguramente os que fazem da religião o seu modo de vida.

O padre Zezano também escreve com o nome de Velho Ekumbi. Nem vos digo o chorrilho de disparates que sujam o papel de dois livros que ele publicou. O homem é absolutamente savimbista e contem com ele para as fogueiras d Jamba.

Também podem contar com Anastácio Ruben Sicato (ou sicário?) que foi ministro da Saúde, em nome da UNITA, no Governo de Unidade e Reconciliação Nacional. Tal como Zezano também ele confunde as coisas, propositadamente, para dar a entender que alguém quer silenciar padres e bispos. O sicário ainda não percebeu o cerne da questão. Os membros da Igreja de Roma, sejam padres, bispos ou cardeais, podem dizer o que quiserem, inclusive traficar droga, diamantes e influências. Se forem apanhados respondem perante as autoridades. Mas não podem servir-se da Igreja para fazerem propaganda política e partidária.

Se um jornalista quiser alinhar com um dos partidos que vai concorrer às eleições de Agosto, pode fazê-lo. Mas primeiro entrega a Carteira Profissional. Não pode de manhã andar nos comícios, à tarde cavar notícias e à noite voltar para as acções partidárias. Os militares e membros das forças de segurança no activo não podem de todo fazer política. Os magistrados judiciais e agentes do Ministério Público tampouco. Os próprios funcionários públicos podem mas têm que se desligar dos serviços durante a campanha.

 Não compreendo como é que padres e bispos da Igreja acham que podem levar os seus partidos para o altar, para as missas, para as homilias. Pensem bem no que estão a fazer, porque estão a pisar os caminhos movediços da intolerância religiosa.

O sicário Sicato vem com as aldrabices do costume. Este pessoal da UNITA não consegue viver sem aldrabar. O que faz ele? Pega na figura do cónego Manuel das Neves e diz todo contente: Estão a ver? Ele fez política! Só um atiçador das fogueiras da Jamba se atreve a comparar um Estado Livre e Independente com uma colónia. Só um savimbista com o intestino grosso ligado ao cérebro é capaz de confundir a opressão colonialista com um Estado democrático e de Direito.  

Vejam onde chega o desplante do sicário Sicato. Pergunta ele: “Porque é que há pessoas que hoje condenam os bispos católicos de defenderem maior lisura ao processo democrático angolano, mas as mesmas pessoas não condenam Monsenhor Manuel das Neves por claramente se ter envolvido em actividades políticas sem ter despido primeiro as suas batinas?”

O sicário Sicato não merece resposta mas eu vou dar-lha. Porque o cónego Manuel das Neves queria ver o Povo Angolano livre da opressão nazi e da ocupação colonial. Arriscou a vida e a liberdade para que isso fosse possível. 

Alguns padres e bispos hoje estão a a fazer política partidária servindo-se da Igreja. São verdadeiramente leprosos morais. Querem fazer política? Despem as sotainas, tiram as coleiras e assumem que são da UNITA ou de outro partido qualquer. O que estão a fazer é grave e se não arrepiam caminho vão prejudicar gravemente a Igreja. Depois não se façam de vítimas. Porque na verdade são infractores e violadores do Estado de Direito e Democrático.

* Jornalista

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