Miguel Romão* | Diário de Notícias | opinião
As recentes eleições legislativas
demonstraram que há uma realidade nova em Portugal, representada pela saída do
armário do velho fascismo, até aqui latente e envergonhado, e encarnado no
Chega e
Os seus votantes são provavelmente, aliás, de duas espécies. Uma, mais antiga, a dos sempre desconfortáveis com a democracia e com o pós-25 de Abril; a outra, mais recente, de eleitores, mais antigos ou mais jovens, que nunca perceberam bem o que é isto do Estado de direito e que recentram em si todos os direitos que entendem públicos, reconduzindo a sua existência a um qualquer crédito, infinito e sempre por compensar, por parte do Estado, e funcionando contra todos os demais cidadãos e especialmente contra o que não conhecem, numa ode ao primarismo e à proximidade de convicções.
Em relação aos primeiros, a ideia de igualdade é uma ideia desconhecida. Quanto aos segundos, a mesma resulta sempre numa injustiça pessoal, especialmente maior quanto mais se sintam distantes de qualquer quotidiano que os valorize na medida que creem devida - e, habitualmente, distópica.
André Ventura, inventado por Passos Coelho para destruir o CDS de Paulo Portas, com o apoio do Correio da Manhã, representa bem - bem de mais - esta dimensão portuguesa do neofascismo. Por um lado, apela ao lado beato, paroquial, conspirativo e delator que muitos guardam dentro de si e que revelam, no seu esplendor, no recato das urnas de voto. Por outro, não deixa de exteriorizar tudo o que remeta para uma pequena sabedoria de cárcere, um oportunismo de cariz privado que muitos agora não se impedem de procurar gozar ou, pelo menos, partilhar, especialmente contra as "grandes injustiças".
Não é substancialmente diferente dos demais neofascismos europeus, na verdade. Em Portugal, André Ventura encontrou os ciganos (em França, seriam os "árabes"), os habitantes negros de bairros sociais e os titulares de cargos públicos como alvos no seu arremesso. Teve sorte e engenho, já que muitos de nós não convivemos com nenhuns elementos destes grupos. Replicou uma receita de sucesso na Europa: parecer defender os verdadeiros cidadãos contra grupos diminutos e com falta de voz no espaço público. Poderia também ter escolhido como alvos discursivos os pequenos comerciantes que fogem aos impostos ou os burgueses confortáveis que se recusam a pagar a segurança social das suas empregadas domésticas... Mas isso já não seria tão apelativo em termos eleitorais, não é? Ao espelho, na intimidade, somos sempre terríveis.
Há assim uma dimensão adicional de oportunismo barato, que apela aos instintos mais básicos de uma ideia de maioria consistente e uniforme, que só se verifica com inimigos externos, reais ou não.
O que quer o Chega do Estado? Ninguém sabe. O que pensa sobre educação, saúde, segurança social, justiça, economia? Não existe resposta. O Chega é a negação da política, no sentido em que esta pressupõe a ultrapassagem de uma situação pessoal, sempre aparente e circunscrita, e exige a assunção de um dever coletivo.
O Chega não é um "partido de protesto" no sentido "clássico" do conceito. O Chega é a ilustração, representada no parlamento, do racismo, do egotismo e da falta de educação cívica que existe entre nós - pelos vistos, 7% -, acompanhada pela farsa de que o oportunismo de André Ventura, transvestido nas televisões de honestidade e de sensatez basal, pode ajudar a que o sistema "mude". Para onde e para quê, não interessa. E provavelmente os primeiros a serem vítimas de qualquer mudança, que nunca chegará, seriam os seus próprios eleitores.
*Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
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