sexta-feira, 27 de maio de 2022

EM CRISE, O CAPITAL ENSAIA A DESGLOBALIZAÇÃO

#Publicado em português do Brasil

Declínio econômico e tensões financeiras deflagraram disputas entre o centro e a periferia do sistema. Fragmentação dos mercados, aliada às disputas geopolíticas – e à crise climática –, indica que a noite econômica e social pode ser longa

Eleutério F. S. Prado no A Terra é Redonda | em Outras Palavras

Uma das contradições que sustentam a tese do ocaso do capitalismo se encontra na geopolítica do capital ou, o que é o mesmo, nas relações de concorrência – cooperação e competição – dos Estados nacionais que formam a atual economia globalizada. O desenvolvimento das “forças produtivas” – diz Murray Smith em Invisible Leviathan[i] – “extrapolou os confins do sistema de Estados-nações, mas são ainda as nações individuais que enfrentam os graves problemas”, isto é, os problemas causados pelo próprio processo contraditório de acumulação de capital.

Eis alguns deles: a emergência climática, as pandemias, a poluição dos oceanos, a manutenção das cadeias da produção de mercadorias, a inflação global etc. Nesta nota quer-se tratar apenas da estagflação que aparece agora como um fenômeno renitente e duradouro da produção capitalista. Baixo crescimento com inflação está aí como um novo “normal” que vai continuar assombrando o futuro das economias capitalistas em geral. Mas, para fazê-lo, é preciso dar dois passos iniciais com a finalidade de enquadrar esse fenômeno em suas condições objetivas.

O primeiro deles consiste em apresentar o atual estágio do processo de expansão da mundialização do capital. Um indicador desse processo histórico se encontra na figura abaixo; ele mostra graficamente a evolução da razão entre as exportações mundiais totais e o PIB mundial. Aparecem nesse perfil, notoriamente, três ondas de globalização que marcam a história do capitalismo: entre 1870 e 1914, entre 1945 e 1980 e entre 1980 e 2008; assim como, também, um período de desglobalização entre 1914 e 1945. Em adição, o gráfico indica o surgimento de um novo período de contração do comércio internacional, o qual ocorre após a grande crise de 2008.

Os períodos de globalização ocorrem sob hegemonia pouco contestada de uma potência imperialista. O primeiro deles acontece sob a supremacia inglesa e os dois seguintes sob a preeminência norte-americana. A desglobalização ocorrida no século XX adveio, como bem se sabe, do acirramento do conflito entre as potências imperialistas (Grã-Bretanha, Estados Unidos, Alemanha, Japão etc.) e, por isso mesmo, se inicia e termina com a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, respectivamente. Assume-se aqui que o ano de 2008 marca o início de um processo de desglobalização que se estenderá pelos próximos anos. Por quê?

Com a crise de lucratividade e a queda da produção dos anos 1970, a potência hegemônica passa a liderar um processo de abandono do keynesianismo no centro e do desenvolvimentismo na periferia do sistema, para substituí-lo pelo neoliberalismo assimétrico, mas generalizado. Agora, para elevar a taxa de lucro, a lógica da concorrência não podia mais ser contida pelas políticas estatais de proteção da classe trabalhadora. Foi feito, ademais, um esforço para engajar todos os países, inclusive a Rússia (após 1990) e a China (após 1978) na economia mundial comandada pelas empresas multinacionais e pelos bancos internacionais do centro capitalista. Algumas economias da Ásia, em especial a China, foram assim privilegiadas como fontes dinâmicas de acumulação já que poderiam contribuir de modo excepcional para a elevação da taxa de lucro mundial.

Entretanto, essa segunda onda de globalização do pós-Segunda Guerra Mundial teria de chegar ao fim porque a taxa de lucro mundial média começara novamente a cair após 1997 – ano que marca o fim da recuperação neoliberal e início da longa depressão (ver gráfico em sequência). Diante dessa condição estrutural e diante da crise de 2008 – que ameaçou levar o sistema a um colapso de proporções jamais vistas –, a estratégia do centro imperialista tinha de mudar. Eis que a hegemonia do Ocidente liderado pelos Estados Unidos começou a ser contestada pela emergência de potências competidoras.

As taxas de crescimento econômico das economias centrais do Ocidente, que havia caído de um nível de 5% ao ano no primeiro decênio do pós-guerra para um nível aproximado de 2% ao ano no novo milênio, poderiam cair ainda mais. A perspectiva que esses países enfrentavam, segundo os próprios economistas do chamado mainstream, era de uma “estagnação secular”. Diante desse quadro, como escreveu Michael Roberts, “tornou-se claro para os estrategistas do centro que a globalização trouxera ganhos, mas que gerara também crescimento acelerado em países com a Rússia, a China e o Leste Asiático”. E essas potências não se conformavam a um comportamento servil; ao contrário, desejavam ser também um polo de poder político e militar.

Tornou-se claro, assim, que esses últimos países não estavam dispostos a aceitar o domínio econômico ocidental dos últimos cinco séculos. A Rússia almejava criar uma polaridade econômica junto com os países do continente europeu por meio do fornecimento de gás e outros produtos minerais. A China se tornara a fábrica do mundo, passara a dominar o comércio internacional de mercadorias e, agora, se mostrava capaz de competir e rivalizar cada vez mais no campo do desenvolvimento tecnológico.

Com Donald Trump e depois com Joe Biden, o imperialismo norte-americano mudou então de estratégia tentando manter a hegemonia indiscutível que alcançara no pós-Segunda Guerra Mundial. Assim, ao invés da política de inclusão que durara trinta anos, passou a adotar uma política de contenção desses países da periferia dinâmica nos planos econômico, diplomático e militar. A Europa se tornou, então, um centro dessa batalha geopolítica. A América Latina que vira já, nesse período, o seu desenvolvimento regredir por meio da desindustrialização e da reprimarização, sem deixar de ser um campo de disputa, passou a ser assombrada pela barbárie crescente.

O resultado desse processo foi a criação de uma tendência de queda do nível de globalização por meio da introdução de uma trava no desenvolvimento do comércio internacional. Mas para compreender por que a estagflação aparece agora como um fenômeno persistente no horizonte da economia mundial, é preciso explicar antes por que a inflação se torna renitente. Sabe-se de qualquer modo que a desglobalização é perniciosa do ponto de vista da acumulação global de capital.

Primeiro, é requerido que se veja que uma inflação, no mínimo rastejante, se tornou a norma no pós-guerra, depois que o dinheiro mundial perdeu a sua âncora no padrão ouro e se tornou formalmente fiduciário. Em sequência, é necessário que se saiba que a inflação é criada pelas empresas, principalmente pelas oligopolistas ou monopolistas, sempre que a sua condição de lucratividade líquida (taxa de lucro menos taxa de juros) se mostra inadequada.[ii] Diante de impulsos de demanda, nesse caso, elas preferem elevar os preços de venda das mercadorias que produzem ao invés de expandir a produção. Em adição, veja-se também que os preços sobem necessariamente quando há restrições para a manutenção ou elevação da oferta, mesmo se a demanda está fraca ou caindo menos do que a própria oferta. Nesse último caso, mesmo se aumenta a margem de lucro, a taxa de lucro pode não se elevar necessariamente.

Bem, essa última situação relatada no parágrafo anterior parece ter se verificado nos dois últimos anos e meio em face de choque negativo de oferta e de aumento dos custos de produção. A pandemia do coronavírus forçou o fechamento temporário de empresas, provocou rompimentos nas cadeias de suprimentos globais, contraiu o mercado de força de trabalho. Em sequência, a guerra da Ucrânia passou a compelir o crescimento dos preços da energia, dos metais, dos alimentos e dos fertilizantes. Em consequência desses “choques de oferta”, a estagflação passou a afligir de modo persistente a economia mundial.

Contudo, ao contrário do que julgam os crentes na “economia de mercado”, não haver agora esperança de que essa situação mude no futuro próximo. A estagflação persistirá assombrando as perspectivas de recuperação do sistema econômico da relação de capital. Eis o que diz Nouriel Roubini em The gathering stagflationary storm, artigo publicado em 25 de abrila de 2022 no Project Syndicate: “mesmo sem os significativos fatores de curto-prazo [acima elencados], a perspectiva de prazo médio vem a ser a de uma longa noite escura. Há muitas razões para supor que a estagflação atualmente presente irá continuar a caracterizar a economia global nos próximos anos, produzindo inflação alta, baixo crescimento, com possíveis recessões em muitas economias”.

Eis que a situação da economia mundial nos próximos anos parece se configurar como semelhante àquela que se observou durante o período iniciado e terminado com as duas guerras mundiais, ou seja, entre 1914 e 1945. “Desde a crise de 2008 – diz Roubini –, tem havido um recuo da globalização e o retorno de várias formas de protecionismo”. E essa situação, como bem mostrou o exemplo do século XX, não proporciona condições de desenvolvimento, mas uma tendência à estagnação que traz junto consigo um aumento das tensões sociais e da rivalidade entre as nações.

A política de contenção em relação à China e à Rússia e o medo das turbulências crescente nas economias periféricas e pobres, vai tender reduzir ainda mais a taxa de lucro nos países capitalistas centrais. Além do efeito da “lei de tendência” enunciada por Marx, há duas razões adicionais: (i) sabendo que o ritmo de crescimento das populações dessas nações é hoje quase estacionário, note-se que as políticas contra a imigração impedirão que os mercados de força de trabalho nos países centrais sejam renovados; (ii) ganhos dos países mais avançados proporcionados pela “troca desigual” e por outras formas de extração de renda, sempre em detrimento dos atrasados, poderá ser perdido em parte.

A nova guerra fria entre os Estados Unidos e a China/Rússia já está produzindo e produzirá efeitos estaflacionários no futuro. A guerra quente atual na Ucrânia, com a participação indireta da Otan e direta da Rússia, se elevou o risco de um conflito bélico mais amplo no futuro, já está produzindo choques adversos no comércio e na produção. As sanções econômicas, mesmo se funcionam como “armas” para as potências hegemônicas, perturbam de imediato o funcionamento dos mercados. Mas, de modo ainda mais importante, contrariam mesmo a lógica expansiva do capitalismo. Alguns economistas argumentam mesmo que elas podem minar a hegemonia do dólar como dinheiro mundial nos próximos anos.

Em suma: “as crescentes tensões geopolíticas”, convém o economista norte-americano, “provavelmente levarão a relocalização da manufatura da China e de mercados emergentes para economias avançadas (…). Assim, a produção será mal alocada para regiões e países de custo mais alto”. “O desacoplamento da produção sino-americana”, continua, “implicará na fragmentação da economia global, na balcanização das cadeias de oferta e em restrições maiores nas transferências de informação e tecnologia – elementos chaves do futuro comércio”.

Se a estagflação aparece agora como o “novo normal” no médio prazo, no longo prazo as coisas não parecem melhor. Eis que não se pode esquecer o risco crescente de que secas, desertificações, furacões, chuvas torrenciais etc. prejudiquem a produção de alimentos por todo o mundo. As mudanças no clima – assim como outros problemas de poluição – terão certamente efeitos na produção de mercadorias, os quais aparecerão de diversas formas como fomes, ondas de imigração, conflitos sociais etc. Como se configuram como restrições à oferta, tenderam a aparecer também como estagflação.

Sem pretender esgotar todos os fatores que concorrem para a turbulência crescente e para agudização da desarmonia imanente da economia capitalista – por exemplo, seria possível acrescentar o problema do custo crescente da energia em face da descarbonização necessária –, é preciso terminar mencionando uma mudança na criação de barreiras pelo processo de acumulação de capital.

Em meados do século XIX, Karl Marx mencionou que o capital cria barreiras, supera essas barreiras, para engendrar novas e maiores barreiras. E é assim porque a acumulação de capital é um processo dotado de realimentação positiva – insaciável, disse ele – que tende à desmedida e que inventa, por isso, crises e catástrofes continuamente. Ora, agora ele está produzindo barreiras que são limites últimos, “barreiras” que não pode mais superar.

Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Ed. Lutas Anticapital).

Imagem: Valor

Notas

[i] Smith, Murray E. G. – Invisible Leviathan – Marx’s law of value in the twilight of capitalism. Chicago: Haymarket Books, 2018.

[ii] Ver o capítuto 15 do livro Capitalism – competition, conflict, crises de Anwar Shaikh (Oxford University Press, 2018) para se inteirar sobre uma versão mais rigorosa da teoria da inflação e da estagflação.

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