Será hoje que os juízes do TC vão decidir se Almeida Costa entra ou fica à porta. Vale pois a pena lembrar porque é chocante alguém com o seu perfil ser sequer considerado para "dizer" a Constituição. E não, não é porque "a esquerda quer decidir o que as pessoas pensam" e "instituir delitos de opinião". É porque há mínimos.
Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião - 31 Maio 2022
Relembremos os factos. António Almeida Costa, 67 anos, professor de Direito Penal, está a ser considerado para cooptação para o Tribunal Constitucional. É a primeira vez na história deste órgão, criado há 40 anos, que se conhece antecipadamente o nome de um candidato a esta eleição interna decidida pelos 10 juízes eleitos pelo parlamento (dos quais, em contraste, a identidade é publicada, em Diário da República, para o competente escrutínio, antes de serem votados), e esse facto tem sido interpretado como querendo dizer que há quem queira impedir que seja Almeida Costa o escolhido.
É muito provável que se não houvesse gente a opor-se a que esta pessoa entre no TC só saberíamos que tinha sido proposta pela "ala direita" dos juízes depois de eleita, e o DN (e depois o Expresso, que relatou esta sexta-feira as considerações de Almeida Costa, numa audição como recandidato a membro do Conselho Superior do Ministério Público, sobre violações de segredo de justiça nos media), que deu a notícia, não a poderia ter dado. Sucede que é assim com grande parte das notícias: tirando aquelas que os jornalistas descobrem inteiramente por sua conta, a primeira pista ou informação é "soprada". E não sendo despicienda - nunca é, e qualquer jornalista deve interessar-se por percebê-la e avaliar o seu papel no processo - a origem e "caderno de encargos" do sopro, o que interessa é saber se há interesse público na matéria, e se os factos noticiados são relevantes, verdadeiros e relatados com lealdade e independência.
É essa a única forma de avaliar a legitimidade de notícias. Sendo óbvio que saber quem é um candidato à cooptação tem interesse público, a questão será então apenas se a informação que o DN publicou é verdadeira e relevante para ajuizar da sua adequação ao cargo para que está indicado.
Ora ninguém põe em causa a veracidade dos factos relatados pelo DN - a existência de textos, de 1984 e 1995, deste jurista sobre a licitude e, releve-se, a constitucionalidade da interrupção voluntária da gravidez nas exceções consagradas na lei de 1984 - e que o jornal tentou ouvi-lo sobre eles.
O que há é quem considere que o facto de Almeida Costa ser, nos textos em causa, intransigentemente contra a legalização do aborto, insistindo que a Constituição a proíbe, e demonstrando, ao longo da mais de uma centena de páginas em causa, a sua absoluta indiferença pela dignidade e liberdade das mulheres - chegando ao ponto de defender uma "fenomenologia das gravidezes resultantes da violação", por considerar que "em muitos casos se verifica uma efetiva cooperação da vítima na sua consumação" (ou seja, que muitas mulheres grávidas que dizem ter sido violadas até gostaram), e asseverando que, mesmo quando ameaçam suicidar-se se não as deixarem interromper a gravidez, não devem ser levadas a sério - não é relevante em alguém que pode ficar nove anos com o mandato de interpretar a Constituição. Ou seja, a decidir sobre os direitos fundamentais dos portugueses, incluindo das mulheres. E não é relevante, argumentam, porque "é a opinião dele" e "tem direito a ela".
Decerto que é a opinião dele e tem direito a ela; pode ser contra a interrupção da gravidez em qualquer circunstância, sem dúvida. E pode até achar que as mulheres devem estar sob tutela, como previsto na Constituição do Estado Novo e no seu Código Civil. Mas alguém pode seriamente dizer que é irrelevante conhecer dessas perspetivas em quem possa vir a ser um de 13 juízes cujas decisões, sem apelo, conformam a nossa democracia, aceitando ou recusando leis aprovadas no parlamento?
Vejamos por exemplo Lobo Xavier, que na CNN considerou que se está, na oposição à possibilidade de Almeida Costa ser eleito, perante a tentativa de instituir "o delito de opinião".
Poder-se-á concluir que para este comentador tanto faz o que um candidato a juiz do TC pensa sobre o que a Constituição permite ou impede e sobre a dignidade das pessoas, neste caso das mulheres; é lá com ele, ninguém tem nada a ver com isso. Se for um adepto do canibalismo, que tem? Ou, vá, se propugnar que toda a propriedade privada deve ser expropriada - e não vale dizer que a lei fundamental consagra o direito à propriedade privada, porque também se funda na dignidade da pessoa humana e para o jurista em causa, e pelos vistos para Lobo Xavier, não faz mal tratar as mulheres como não-pessoas.
É isto um fanático: alguém que usa todos os meios e argumentos, legítimos ou ilegítimos, verdadeiros ou falsos, para chegar onde quer; porque, a seu ver, o lugar onde quer chegar justifica tudo.
Mas algo me diz que ante um ativista anti-propriedade privada, que por exemplo defendesse que todas as casas vazias devem dar abrigo a quem não tem a habitação condigna garantida pela lei fundamental, ou que as fortunas acima de xis devem ser apropriadas pelo Estado, Lobo Xavier não estaria tão convicto na defesa da respetiva "liberdade de opinião". Quiçá diria que o TC não é lugar para ativistas ou radicais mas para juristas de bom senso.
Porque é que não o diz no caso de Almeida Costa? Muito simplesmente porque não vê radicalismo: acha que aquilo que o jurista defende, e como o defende, nos textos em causa é aceitável. Aliás, dá até uma cambalhota interessante: garante, como fez o PR ao DN, que "a questão do aborto está encerrada em Portugal" - logo, não há problema nenhum de colocar no TC uma pessoa radicalmente anti-escolha. Faz sentido, não faz? Já ninguém defende a reversão da lei portanto vamos pôr no tribunal, que pode revertê-la, alguém que a reverterá se tiver oportunidade.
Há inclusive quem chegue ao ponto de dizer que quem se opõe a Almeida Costa no TC é que quer "reabrir a questão do aborto" e "trazer para cá as guerras culturais dos EUA" - até onde vai a desonestidade.
A propósito de desonestidade, voltemos a Lobo Xavier, porque é dele a frase mais espantosa sobre esta polémica - que o texto de 1984 de Almeida Costa é "uma obra fundamental de ciência jurídica".
Não se trata pois só de defender a possibilidade de alguém que exprimiu posições da mais absoluta misoginia, como as citadas, fazer parte de um Tribunal Constitucional; Lobo Xavier quer também fazer crer que o texto que está a ser criticado é "ciência".
Note-se: o DN não se limitou, e Lobo Xavier sabe-o, a transcrever o que Almeida Costa redigiu - por exemplo que "é muito raro as mulheres violadas engravidarem", para defender que não faz sentido admitir a interrupção da gravidez nesses casos; se há gravidez é porque não houve violação.
O jornal averiguou em que fontes o jurista se baseou para tal afirmar. E descobriu que Almeida Costa baseou praticamente tudo o que refere como "factos", "resultados de experiências" e "investigações médicas" em textos de ativistas anti-escolha americanos - as Isildas Pegados lá do sítio. Mais: que um dos textos em causa, o mais citado no seu artigo como fonte de "ciência", da autoria de Fred Emil Mecklenburg, cita por sua vez alegadas "experiências" que teriam sido levadas a cabo em campos de concentração nazis, nas quais prisioneiras prestes a ovular eram levadas para as câmaras de gás, para pensarem que iam ser executadas, e depois examinadas para averiguar se o choque as tinha impedido de ovular.
Esta descrição está, preto no branco, no texto que Almeida Costa, o grande defensor da inviolabilidade da vida humana mas só desde que dentro do útero de uma mulher, cita. Tal atrocidade e a utilização de cobaias humanas não o impediu de usar a suposta conclusão. Só o impediu de dizer como tinha sido obtida - pela noção de que se perdia o efeito "científico" e por antecipar que a maioria dos seus leitores, horrorizada, concluiria estar perante um fanático.
Porque é isto um fanático: alguém que usa todos os meios e argumentos, legítimos ou ilegítimos, verdadeiros ou falsos, para chegar onde quer; porque, a seu ver, o lugar onde quer chegar justifica tudo.
A descrição serve para Almeida Costa, como para quem perante estas evidências o quer no TC - e ainda para os que, não se podendo estar mais nas tintas, usam o caso como arma de arremesso contra os alvos do costume.
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