sábado, 25 de junho de 2022

AS ÁRVORES DE LUANDA E A COMÉDIA DA ARTE – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

 “Luanda nunca foi  uma cidade de árvores como Maputo ou Huambo que mantém árvores que já existiam antes da cidade”. Eu li esta frase no Jornal de Angola e faz parte de uma crónica do escritor Manuel Rui. Antes que tirem conclusões apressadas esclareço que trabalhei com ele no Tribunal Internacional que julgou os mercenários, em 1976. A acusação pública foi escrita a quatro mãos, duas dele e duas minhas. Logo, somos, no mínimo, cúmplices num dos acontecimentos mais importantes em que participei e mais me orgulha. Claro que somos diferentes. Ele esconde esse facto do seu currículo e eu tenho um cartão-de-visita com o meu nome e por baixo: adjunto do Procurador Popular no Tribunal dos Mercenários.

A omissão deste facto histórico para África e o mundo na vida de Manuel Rui é compreensível. Como todos os escritores, ele gosta de ser reconhecido e o reconhecimento habitualmente traduz-se em prémios. Essa mercadoria é controlada pelos brancos. Eles não gostaram nada que os angolanos tivessem julgado e condenado os mercenários capturados em território angolano, antes e depois da Independência Nacional. Quem quer prémios literários, não pode proclamar que participou no tribunal que os julgou e condenou.

Manuel Ru diz que “Luanda nunca foi  uma cidade de árvores”. Aqui também estamos em desacordo. Nada de especial, mas desacordo. Luanda sempre foi uma cidade de árvores. Entre o Kinaxixi e o Bungo tínhamos uma floresta frondosa de mulembas e cajueiros, aqui e ali um imbondeiro, retorcido, implorante, com suas makuas pendentes, mágoas esverdeadas de um povo escravizado mas nunca submisso. No início da mancha verde existia um tasco pomposamente chamado “Restaurante Floresta”. 

O prato principal era uma travessa de peixe frito composta por tainhas, roncadores e garopinhas das pedras. Custava meia cinco. O taberneiro chamava-se Asdrúbal, tinha uma pança descomunal e usava um palito na orelha que de vez em quando metia à boca e mascava. Graças a uma combina com o dono dos armazéns CIEL (Companhia de Importação e Exportação de Luanda) recebia os barris de vinho ao natural, ainda não baptizados com água e permanganato. A clientela era às dezenas. 

Os barris de vinho eram deitados num tripé. Com um trado, o Asdrúbal abria um buraco no tampo do vasilhame e introduzia no buraco uma torneira de madeira. Vendia vinho ao copo de cinco tostões (grande!) e ao jarrão de litro, que vendia a um escudo. Bebedeiras baratas e rápidas, tipo telegrama.

Ernesto Lara Filho, Pedro Jara, D. Diogo Dá Mesquita, Lopo de Morais, Álvaro Novais e este vosso criado abancávamos, mandávamos vir uma travessa de peixe frito e um jarrão de vinho por cabeça. À segunda rodada, o Pedro Jara, que tinha mau vinho, começava a implicar com a pança do Asdrúbal e com as mamas da mulher, a cozinheira. 

Ao fim de 20 paus de despesa, pagávamos, descíamos a floresta até a Bungo e habitávamos outro botequim, entre o matadouro e a estação ferroviária. Ali o vinho era bastante pior mas mais barato. Depois de uns quantos jarrões, para a sossega, avançávamos, a pé, para a Bicker, sempre debaixo de cajazeiras, acácias de São Tomé, acácias rubras, jacarandás e aqui e ali, uma mulemba. O nosso amigo Marques aviava-nos finos e pires de jinguba ou tremoços. 

Siga a viagem! Passávamos o Polo Norte em branco porque aquilo era só para brancos finos e parávamos na Brilhante e na Madrid. Finos acompanhados de pratinhos de dobrada. Finalmente, o Baleizão. Pelo caminho, passávamos debaixo das frondosas copas das cajazeiras e mulembas. A esplanada do Baleizão não tinha árvores. Mas ao lado, existia uma grande mulemba, sentinela do palacete assobradado da família Van-Dúnem, com casarão e quintalão. A princesa da casa era a Mamã do Tarique Aparício. 

Ali estávamos à vontade. Quando pedíamos a conta, não eram os empregados que nos traziam a mukanda. Era o próprio Tarique. Ele fazia contas de cabeça e atirava um número. Depois perguntava? Pagam ou debito? Debita! No final do mês, mal recebíamos o salário, começávamos a noite pelo Baleizão e pagávamos as dívidas. Tudo acontecia debaixo de árvores. E do fabuloso céu estrelado de Luanda.

No século XVIII Luanda estava rapada de árvores. Gente que chegou do mato cortava-as para lenha. Um governador com alma ecologista decidiu proceder à arborização da capital da colónia. Importou cajazeiras do Brasil e as crianças, alguns anos depois, enchiam a barriga de cajás. As quitandeiras aguadeiras também vendiam sumo de cajá. Com os anos, as cajazeiras mudaram o nome para gajajeiras e as cajás foram baptizadas de gajajas. Gajaja, gajaja, gajajéééé docinháááá! A história das cajazeiras importadas do Brasil está descrita no meu livro LUANDA ARQUIVO HISTÓRICO”. Já encontrei um leitor.

Na segunda década do século XX, Augusto Bastos, presidente da Câmara de Benguela, arborizou a cidade de São Filipe com acácias rubras. O seu homólogo de Luanda fez o mesmo. Eu morava na Vila Clotilde. Entre minha casa e o Liceu Salvador Correia, passava debaixo de frondosas copas das árvores. E na altura própria, os passeios ficavam atapetados de pétalas rubras. Nos anos 40 as ruas de Luanda foram arborizadas com acácias de São Tomé, que largavam pétalas de um vermelho mais desmaiado. E depois vieram os jacarandás com suas pétalas roxas. A Marginal, Avenida 4 de Fevereiro, foi arborizada com palmeiras reais, de tronco liso. Muito belas, muito elegantes, muito iguais a Luanda.

Se Manuel Rui alguma vez tivesse descido a floresta do Kinaxixi para o Bungo tinha escrito um romance que lhe dava o Prémio Nobel. Como não desceu, diz que a cidade nunca teve árvores. Por falar em grandes prémios literários, lembrei-me agora do dia em que fui surpreendido com o anúncio da distinção atribuída a Dário Fo, o genial construtor da Commedia Dell'Arte. Um dia ele foi com o seu grupo à Casa de Itália, na Cidade Internacional Universitária de Paris, onde eu vivia. Entrámos na comédia cada qual com a sua máscara. À medida que construíamos uma nova cara, um novo corpo e um novo mundo, acontecia a arte e seus enigmas.

Os verdes anos levaram-me a acompanhar a trupe. Em Roma fiquei, entrelaçado a uma artista que também se cansou de ser feliz nas asas da comédia da arte. Então conheci as obras de Gramsci e o manifesto de Rossana Rossanda  (o comunismo é uma ideologia que ama o país e o povo). Depois apanhei o comboio em Santa Maria Maior e fui para a casa que nunca tive. Mas amei todas as árvores de Luanda. Ainda amo, apesar de já não ter coração.

*Jornalista

Sem comentários:

Mais lidas da semana