sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Angola | A PALAVRA SÁBIA E O VENTO IMPARÁVEL – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O senhor Pratas tinha uma carrinha Chevrolet cansadíssima que largava uma fumarada espessa, desde que passava as correntes na aldeia da Missão até ao barracão do clube. Era dono de uma máquina de projectar fitas, que montava no salão das festas. Nas noites de cinema, o motor da luz só era desligado quando aparecia a palavra fim. Projectava muitas vezes o mesmo filme. As más-línguas diziam que ele tinha dívida com o fornecedor e só lhe davam um filme novo quando ele pagasse os anteriores. Houve uma altura que mostrava sempre O Comboio Apitou Três Vezes, com o Gary Cooper e a Grace Kelly, mais tarde rainha.

Filmes dos irmãos Marx também eram muito repetidos. Mas ninguém se importava. Era rir até chorar por mais. O Groucho tinha uma piada que me marcou para toda a vida: “Jamais aceitarei fazer parte de um clube que me aceite como sócio”. O Adalberto da Costa Júnior também jura a pés juntos que jamais aceitará a democracia se os democratas o considerarem um democrata. Boa sorte. O ódio ao regime democrático é mesmo dele. Insanável. Mas também é um grande cómico. Tipo Cantinflas, o impagável Mário Moreno, mexicano, que arrebatou plateias quando o mundo do cinema era dominado pelos estúdios do estado terrorista mais perigoso do mundo, os EUA. E ele independente!

Também vos digo que todas as histórias vão acontecer, se é que não aconteceram já. Isso da imaginação é como o futuro, mal nasce, vira logo passado. Não tem tempo para existir. Quem existe e com uma grandeza esmagadora é a presidente do Tribunal Constitucional, veneranda conselheira Laurinda Cardoso. O seu discurso na investidura do Presidente João Lourenço é uma peça notável que me faz acreditar que nem tudo está podre no reino da Dinamarca. Logo a abrir, a magistrada lembrou que “todo o poder investido pelo Estado tem como contrapartida a responsabilidade pelo seu povo!”. Percebem? 

A afirmação deixou-me zonzo, estava mais è espera que sua excelência dissesse que se não fosse o Presidente João Lourenço, o mar corria para terra e os rios pariam bois em vez de bagres. Ainda não me tinha refeito da surpresa e levei com outra dose de dignidade e lucidez: “Senhor Presidente da República, será sua, em primeiro lugar, a responsabilidade de garantir a preservação e a manutenção do nosso contrato social”. 

Se alguém precisar de uma explicação, eu explico, com todo o gosto. Deixem-se lá de enxamear as instituições do Estado com medíocres e acomodados, porque há um contrato social para cumprir. O pessoal do poder pode ser indigente mental. Mas tem o dever de combater a pobreza até à sua extinção. Como os rapazes da minha geração e das gerações seguintes combateram o colonialismo, os invasores estrangeiros e esmagaram o regime racista de Pretória.

Aproveito para pedir às e aos energúmenos que escrevem e dizem disparates a troco de uns bagos de jinguba, que não insultem os jovens que fizeram a luta armada de libertação nacional. Os jovens que lutaram pela Soberania Nacional e a Integridade Territorial. Afirmarem que hoje a juventude está mais politizada e consciencializada e por isso deu 44 por cento dos votos à UNITA é um insulto. A juventude que sacrificou tudo pela Independência Nacional, pela Soberania e pela Integridade Territorial, foi a mais politizada, patriótica e consciente do mundo. Jamais Angola terá uma juventude tão politizada e consciente. Não insultem os nossos Heróis só porque não dizem nem escrevem disparates nas redes sociais.

A Presidente do Tribunal Constitucional disse isto: “O Povo angolano expressou a sua vontade nas Eleições Gerais do último dia 24 de Agosto e não há quem possa deixar de ouvir o Povo num Estado, num País, numa Nação democrática, quando este decide soltar a sua Soberana Voz! O Povo é o elemento central, pelo que, sem que ele seja tido na mais alta consideração, pouco sentido fará almejar um grandioso futuro colectivo. Foi o Povo que vos trouxe até aqui e é pela sua vontade, expressa nas urnas, que levarão adiante este empreendimento”.

Senhor Presidente da República, por favor, oiça a voz sábia da veneranda conselheira Laurinda Cardoso. Ignore os bajuladores, a corja que por tudo e por nada lhe atribui todas as realizações, todos os projectos, todas as benfeitorias. Nada conseguirá fazer sem o apoio do Povo Soberano que o conduziu até à investidura de ontem.

Leiam mais esta parte do discurso da Presidente do Tribunal Constitucional: “Cargo algum reclama maior responsabilidade na condução da unidade nacional do que o de Presidente da República! Esperamos, assim, que neste segundo mandato, demonstre nada menos do que o maior comprometimento para com a unidade nacional, pois somos todos filhos da mesma Pátria, una e indivisível: “Um só Povo e uma só Nação”! (…) Em nome da melhor ética republicana, é essencial realçar a importância da personalidade do mais alto mandatário da Nação, enquanto Chefe de Estado, responsável pela construção de uma sociedade assente em valores que priorizem o interesse do Estado, em detrimento dos interesses partidários ou de grupo”. 

Os políticos da Oposição fizeram passar a ideia, desde que a veneranda conselheira Laurinda Cardoso tomou posse, que ela foi nomeada apenas para receber ordens! Hoje saiu-nos uma mulher radicalmente independente e inigualavelmente justa. O meu velho coração bate apressadamente de alegria. Esta magistrada de excelência disse hoje, no acto de investidura do Presidente João Lourenço, o que todas e todos os servidores públicos deviam dizer, desde o primeiro segundo da República Popular de Angola. Querem mais?

“O Povo, o Senhor e Soberano de Todos Nós, o original titular da soberania e do poder, que hoje lhe foi conferido, expressou ainda que o Senhor Presidente jamais deverá consentir que o mero império da força prevaleça sobre o império da justiça. E este conceito deve ser bem mais amplo, compreendendo, também, a justiça social, isto é, a realização plena do angolano, enquanto ser social. Senhor Presidente da República, Angola não pode ser adiada. Angola não deve continuar a ser um mero sonho! É urgente que ela se torne uma prazerosa realidade, até para o mais humilde dos angolanos”. 

Este parágrafo é um programa de governo! Uma Constituição da República. Um sopro de esperança para os pobres e oprimidos que são a esmagadora maioria do Povo Angolano. Finalmente, alguém, desde Agostinho Neto, lhes dá voz.

Leiam como termina o texto mais importante que foi tornado público em Angola nos últimos 40 anos:

“Sua Excelência, Presidente da República, sinto-me compelida a pedir-lhe que não desista de Angola e dos angolanos, incluindo daqueles que possam ter, temporariamente, desistido de Angola, acreditando que o País desistiu deles. Angola não desistirá jamais de qualquer um dos seus filhos, tal como o Senhor Presidente jamais o poderá fazer. Seja o Presidente de todos nós: dos que votaram em si, dos que não votaram em si, dos que não votaram ninguém e dos que não votaram. É mais do que tempo de expurgarmos os fantasmas, reais ou imaginários, que pretendem dividir-nos e afastar-nos. É mais do que tempo de fomentar e retirar lições dos grandes debates sobre o nosso destino comum. Somos todos filhos desta grande Nação!”

Afinal, nem tudo está podre no reino da Dinamarca.

O Presidente João Lourenço fez um discurso ao seu nível. Nada de novo. Mas registei algo que me deixou perplexo. Pediu à Federação Russa para dar o primeiro passo no sentido de acabar a guerra na Ucrânia. Muito bem, temos um pacifista no Palácio da Cidade Alta. Porém, fiquei alarmado e altamente preocupado face ao seu silêncio sobre a OTAN (ou NATO), os E UA e a União Europeia.  

Qualquer político amante da paz quer o fim da guerra, Mas o Presidente da República de Angola além do fim da guerra, também deve querer o fim dos blocos militares. Tem o dever de exigir que acabe de um a vez por todas o cerco à Federação Russa, sobretudo quando o Ocidente se comprometeu a não deixar passar as forças da NATO “uma só polegada” para lá das fronteiras da Alemanha unificada.

A OTAN (ou NATO) e as grandes potências ocidentais que ela serve, andavam a matar angolanos na guerra colonial. Na guerra de transição. Na guerra pela soberania nacional e a integridade territorial. E nessas guerras todas, quem estava ao lado dos angolanos era a então União Soviética, hoje Federação Russa. Foi lá que os nossos melhores generais foram formados. Foi de lá que veio o material de guerra para nos defendermos. E da Jugoslávia, que a NATO destruiu. E de Cuba, que o estado terrorista mais perigoso do mundo agride há décadas. Tantos anos depois fazemos o papel de vassalos dos agressores.

Samora Machel dizia que é uma loucura, alguém tentar parar o vento com as mãos. Alinhar ao lado da OTAN (ou NATO) dos EUA e da União Europeia na questão da Ucrânia é querer travar o vento com as mãos. A velha ordem unipolar está no fim. O braço armado desse mundo decrépito e falido tem os dias contados. O Presidente de um país jovem como Angola pode colocar-se do lado unipolar. Mas vai perder muito mais do que momentaneamente possa ganhar. 

“O Povo, o Senhor e Soberano de Todos Nós, o original titular da soberania e do poder,” vai sofrer com essa opção. E muito. Venha daí esse executivo e mãos à obra.

*Jornalista

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