domingo, 13 de novembro de 2022

Angola | OS DONOS DA JUSTIÇA PREMEDITADA – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A Justiça em Angola tem um percurso notável, graças ao empenho militante de Diógenes Boavida, o nosso primeiro ministra da Justiça, e do Presidente Agostinho Neto. Ambos defendiam que o Estado Revolucionário devia ter na base Estado de Direito. Não ficaram pelas palavras. Só descansaram quando abriu a primeira Faculdade de Direito em Luanda. Este feito notável também se deve muito à actividade militante de Garcia Bires e Fernando Oliveira, pelo lado angolano. Professor Doutor Orlando de Carvalho e Doutor Teixeira Martins pelo lado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

No dia seguinte à Independência Nacional, os Tribunais estavam praticamente paralisados. Os agentes do Ministério Público despareceram. Os magistrados judiciais seguiram a mesma rota. Os que ficaram, não chegavam para abrir um Tribunal. Os funcionários judiciais também eram poucos. E os advogados contavam-se pelos dedos das duas mãos. Não era o nível zero, mas quase. Em 1976, o tribunal internacional que julgou os mercenários tinha dois juízes que eram comandantes das FAPLA, David Moisés (Ndozi) e Ernesto Eduardo Gomes da Silva (Bakalof). A Acusação esteve a cargo de Manuel Rui Monteiro. E eu era seu adjunto, no intervalo das notícias, reportagens e entrevistas. 

Durante alguns anos, os Tribunais Populares só funcionavam quando era necessário. E na maior parte das sessões, não existiam juízes de direito nem advogados. Aos poucos o quadro foi pintado com outras tintas. Alguns advogados e funcionários judiciais foram promovidos a juízes. Na medida da capacidade de cada um, a Constituição da República era respeitada e seguida. 

Juristas e magistrados não se formam por decreto. Nem nos mercados informais. Muito menos ao volante dos azulinhos ou das kaveseki. Roboteiro não dá para agente da Justiça. Zungueira ou kinguila também não. Ainda que algumas e alguns magistrados judiciais e agentes do Ministério Público pareçam ter andado nessas escolas informais. Outros vieram da “escola do partido” (Universidade do Catambor) onde a qualidade do ensino era precária apesar da boa vontade de quem ensinava e de quem aprendia. Para ser jurista é preciso estudar, estudar muito. 

A Faculdade de Direito formou os primeiros licenciados no início dos anos 80. Mas até 1992 era a única escola que formava juristas. A solução foi mandar muita gente para escolas no estrangeiro. Mesmo assim, na mudança de regime, em 1992, a falta de juristas era gritante. E quem vinha de 1975, homens e mulheres heroicas, já estava com quase 20 anos de sobrecarga! Nesse tempo cada ano de trabalho valia por dois ou três.

O professor catedrático Raul Vasques Araújo na data da Independência Nacional era um alto quadro político do MPLA. Trabalhava no Departamento de Orientação Política sob a direcção de Carlos Rocha (Dilolwa), um dos mais extraordinários dirigentes do movimento que conheci e com o qual convivi, noites a fio, em casa do comandante Ndozi, com outros Heróis Nacionais (além de Dilolwa e Ndozi, bem entendido): Rui de Matos (Maio), Salviano de Jesus Sequeira (Kianda), Eurico Gonçalves (China ou Kiko para os amigos), Armando Guinapo, um anarquista romântico, e a anfitriã, Rute Mendes (Netita) que ganhava todos os dias o prémio nobel da paciência.

A propósito de um concurso para juízes do Tribunal Supremo, o professor catedrático escreveu uma carta aberta que devia servir de mote a um sobressalto cívico em todos os operadores da Justiça. Escreve Raul Araújo: “Por razões estranhas e anormais o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) decidiu ‘enterrar’ a Lei n.º2/22, de 17 de Março, e aprovou uma Resolução em que determina que os Juízes de Direito podem concorrer directamente para Juízes Conselheiros (em desrespeito pela lei e pela carreira do Magistrados Judiciais que obedece aos critérios de Juiz de Direito – Juiz Desembargador e Juiz Conselheiro)”.

Raul Araújo explica o que diz a lei “enterrada” pelos membros do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ): “A Lei Orgânica do TS estatui, no número 1 do citado artigo 55.º que “excepcionalmente, podem concorrer para Juízes Conselheiro: a) os Juízes Desembargadores; b) o Procurador Geral da República, o Vice-Procurador Geral da República, os Procuradores Gerais Adjuntos da República; c) os Magistrados do Ministério Público que exerçam funções nos Tribunais da Relação ou para tal tenham sido nomeados; d) os advogados, os Professores Catedráticos e Associados da Faculdade de Direito…”

Tudo claro como a luz do sol. O problema é que os membros do CSMJ decidiram que uma norma da Lei Orgânica do Tribunal Supremo é inconstitucional e, por isso, não vai aplicá-la. Usurpando assim as funções do Tribunal Constitucional. E, ainda pior, exercem funções jurisdicionais quando a Constituição da República atribui ao órgão apenas funções administrativa. 

Uma ilegalidade gritante que o professor catedrático Raúl Araújo comenta assim na sua carta aberta: “Como se sabe e ensinamos na Faculdade de Direito as decisões que violam abertamente a Constituição e a lei são nulas e de nenhum efeito, havendo jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria”.

Grande parte das e dos magistrados judiciais e agentes do Ministério Público teve seguramente aulas com o professor catedrático Raul Araújo. Para o caso de alguém estar esquecido, vou sublinhar: “As decisões que violam abertamente a Constituição e a lei são nulas e de nenhum efeito, havendo jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria”. Se caloiros sabem isto, magistradas e magistrados de todas as instâncias também devem saber. O problema é que sentenças e acórdãos mostram o contrário. Mancham de uma forma irreversível o fabuloso caminho percorrido desde 1975, com tanto esforço, tanto sacrifício pessoal e do Estado. E abalam a confiança dos cidadãos na Justiça. 

Por isto, o professor catedrático Raul Araújo escreve: “Faço esta Carta Aberta uma vez que, na qualidade de antigo membro da Comissão de Reforma da Justiça e do Direito, que teve uma participação directa e activa na concepção, elaboração e aprovação da nova organização e mapa judicial do país; como Professor de Direito, ex-Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional e antigo Bastonário da OAA, não me posso calar e fingir que nada vejo”.

Com esta autoridade, o professor catedrático faz este comentário: “A minha surpresa assume maiores proporções quando verifico que as entidades que devem velar pela legalidade se mantêm num silêncio cúmplice assustador. Refiro-me, por exemplo à Procuradoria-Geral da República (PGR) e à Associação dos Juízes Angolanos, que nada dizem sobre o que se está a passar”.

Finalmente, Raul Araújo pede publicamente “ aos órgãos constitucionais com competência para requerer a fiscalização de normas e actos eventualmente inconstitucionais, nomeadamente, o Presidente da República, um décimo (1/10) dos Deputados em efectividade de funções, os Grupos Parlamentares, o PGR, a Provedora de Justiça e a Ordem dos Advogados de Angola (OAA), que ajam com urgência n sentido de se suspender e anular o concurso publico que está a decorrer e, consequentemente, a se repor a legalidade”.

Esta questão nada tem a ver com pessoas. Não pode. O assunto é tão grave que se for fulanizado perde importância. E isso é o pior que pode acontecer ao sector da Justiça. Não está em causa, ninguém em particular. Mas quem nomeia o presidente do Supremo Tribunal é o senhor Presidente da República. Quem nomeia, também exonera. Em democracia não há lugares perpétuos. 

Para o caso de refrescar aquele tribunal superior, em jeito de carta aberta, solicito respeitosamente ao senhor Presidente da República que não nomeie o Abílio Camalata Numa ou o Paulo Lucamba Gato. Assassinos e criminosos de guerra ficam mal na presidência de um tribunal. O lugar deles é a comandar fogueiras na Jamba. Também não convém nada manter, em lugares de tanta responsabilidade, bokassas e mobutus de trazer por casa.

Aos agentes da Justiça quero lembrar que a cobardia só serve ao banditismo judicial. O silêncio face aos desmandos que todos os dias acontecem nos Tribunais é uma cumplicidade intolerável. Magistradas e magistrados judiciais sabem, seguramente, que se deixarem que lhes roubem a honra, quem rouba não fica mais rico nem tem mais poder. Quem é roubado fica irremediavelmente mais pobre. O sector da Justiça exige ser servido por angolanas e angolanos que além das leis, também sabem viver entre as fronteiras da honra e da dignidade. 

*Jornalista

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