domingo, 18 de dezembro de 2022

Sao Tomé e Principe: Delfim Neves acusa "poder" do ataque ao quartel-general

Ex-presidente do parlamento são-tomense Delfim Neves afirma que "poder tem as mãos metidas" no assalto ao quartel-general militar, a 25 de novembro, caso em que é arguido. Objetivo é forçar alteração constitucional, diz.

"Não podemos ter dúvidas de dizer isto, porque seríamos cínicos ao dizer que esta operação não tem mãos metidas do atual poder", afirmou, em entrevista à Lusa, em Lisboa, Delfim Neves, que foi detido em 25 de novembro após ter sido alegadamente identificado como mandante do assalto ao quartel-general das Forças Armadas, em São Tomé, em que morreram quatro pessoas.

Delfim Neves apontou o "alinhamento dos discursos" do atual poder desde as legislativas de setembro, em que a Ação Democrática Independente (ADI), de Patrice Trovoada, venceu com maioria absoluta, e nas quais foi eleito como deputado pelo recém-criado movimento Basta. 

Segundo Delfim Neves, que presidiu à Assembleia Nacional de São Tomé e Príncipe no mandato 2018-2022 no quadro da 'nova maioria' (Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe/Partido Social Democrata - MLSTP/PSD e coligação PCD/UDD/MDMF), os discursos do novo primeiro-ministro, Patrice Trovoada, da nova presidente do parlamento, Celmira Sacramento, e do Presidente da República, Carlos Vila Nova, vão no sentido de uma alteração da Constituição. "Para quê? Ninguém sabe", disse.     

Questionado se poderá tratar-se de uma alteração para um regime presidencialista - como Patrice Trovoada admitiu à Lusa -, Delfim Neves afirmou que este modelo "coloca alguns riscos" e advertiu para o que considerou ser o poder total das autoridades. 

Três dos quatro assaltantes morreram

Após o assalto, três dos quatro assaltantes morreram, tal como o ex-combatente Arlécio Costa, também alegadamente identificado como mandante do ataque, quando se encontravam sob custódia dos militares e após terem sido sujeitos a maus-tratos, como testemunham vídeos e fotografias que circularam nas redes sociais nos dias seguintes. 

"Se tudo quanto aconteceu, da tortura, das mortes, e ninguém [dos militares] até hoje foi no mínimo detido, no mínimo interrogado, é porque estão protegidos, naturalmente. Se os militares matam de forma sangrenta e o poder protege, o que custa ir buscar 10 ou 12 deputados de outro lado? Não custa nada, porque o poder já deu sinais de que 'podes fazer que nada te acontece, nós vamos proteger-te'", comentou.

Delfim Neves referia-se assim aos votos da oposição que a ADI teria de conquistar para conseguir uma maioria qualificada de 36 deputados para proceder a uma alteração constitucional. Atualmente o parlamento são-tomense tem 30 deputados da ADI, 18 do MLSTP, cinco do 'movimento de Caué' e dois do Basta.

Para o deputado, "a suspeição [de envolvimento nos acontecimentos] que recai sobre o senhor primeiro-ministro é natural, porque foi a primeira pessoa, nas primeiras horas [após o ataque] a falar do assunto e dizer o nome das pessoas [detidas] e dizer quais são os passos seguintes".

O ex-presidente do parlamento são-tomense foi detido em sua casa pelos militares às primeiras horas da manhã de 25 de novembro, logo depois de o ataque ter sido considerado "neutralizado", e após ter sido alegadamente identificado pelos assaltantes como financiador. 

Delfim Neves permaneceu durante 10 horas no quartel militar e ao final do dia foilevado, tal como os restantes arguidos, para as instalações da Polícia Judiciária após intervenção da comunidade internacional. Quatro dias depois, foi presente a tribunal, tendo sido libertado mediante termo de identidade e residência e apresentação periódica às autoridades.

Na entrevista à Lusa, reiterou que está "completamente inocente" neste caso e insiste que se trata de "uma tramoia, uma montagem" para o eliminar. "Se não estivesse lá o nome do Delfim Neves e do Arlécio Costa, que valor teria esta operação? Ninguém valorizava isto", disse, afirmando que os seus "opositores, sobretudo o atual poder", o veem como "uma ameaça política". 

"O meu ADN político não se coaduna nem pactua com subversões daquilo que está na Constituição. Não se coaduna, muito menos, com política de mãos sujas de sangue", referiu. "Acredito que isto foi uma tramoia na perspetiva de tirar este obstáculo da autoestrada", disse, referindo-se a si próprio. 

Delfim Neves nega qualquer envolvimento no ataque. "Não tenho dinheiro para esse tipo de operação, e ainda que tivesse, tenho muitas coisas para fazer com dinheiro", mencionou. 

Em Portugal para fazer exames médicos

Delfim Neves, que se mantém como deputado, deslocou-se a Portugal para fazer exames médicos, na sequência de uma cirurgia às cosras realizada no início do ano, e afirma que a sua situação se agravou por ter estado "sentado durante 76 horas" na Polícia Judiciária, enquanto aguardava para ser ouvido pela juíza de instrução criminal. 

Questionado sobre a sua relação com Arlécio Costa, confirmou que este o apoiou na campanha para as presidenciais de 2021, mas garantiu que nunca foram amigos nem falaram sobre o assalto, e adiantou que, recentemente, estavam "de costas voltadas" por causa de negócios.

A Polícia Judiciária portuguesa está a apoiar as autoridades são-tomenses nas investigações, a pedido do Governo de Patrice Trovoada. As Nações Unidas enviaram um representante do Alto-Comissariado para os Direitos Humanos para a África central para averiguar a situação dos maus-tratos aos detidos sob jurisdição militar, e a Comunidade Económica dos Estados da África Central (CEEAC) também tem uma missão de informação no terreno.

Segundo o Ministério Público são-tomense, foram detidas 17 pessoas no âmbito das averiguações, das quais nove ficaram em prisão preventiva. O Ministério da Defesa confirmou esta sexta-feira (16.12) que os militares detidos se encontram sob custódia militar, mas disponíveis para as diligências das autoridades judiciárias.

Deutsche Welle | Lusa

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