segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

TRAGÉDIA TCHOKWE - DEZ CANTOS EM SURDINA NO MASSACRE DO NATAL

Artur Queiroz*, Luanda

Kixixi hatchikúka wóma hiwéza 

(O kixixi tem a cabeça para baixo o medo chegou!)                  

Canto I 

Venham todos ouvir os prodígios 

chegados dos mares

pela boca velha do viajante 

que transpôs tundavalas e espinheiras

passo a passo um rio 

sem canoa nem ponte

sem escravo que conte o tempo

nem muralha que meta medo

venham todos ouvir.

(Eu sei mãe, quem outra senão tu, cobriu de estrelas a manjedoura?)                  

Canto II

Canta o grilo vermelho 

e seu canto ondula pela distância

- tão leve a brisa que espalhou a fuba

reservada ao pirão da criança -

que som alado alegra o coração 

dos que esperam o filho perdido

vendido e condenado a abrir um rio caudaloso 

a cada passo rumo ao lar

o filho que deixou na estrada tudo o que levava

nas mãos ensanguentadas

na sacola definhada 

na boca enferrujada

e cada dia que passa 

é mais pesado que a noite

mais sombrio que a servidão

porque não consegue largar 

as mágoas que sufocam o coração

mesmo quando canta o grilo vermelho.

(Eu sei mãe, o filho que deste ao mundo é a tua máxima dor)

Canto III

Morrer é deixar todas as coisas para trás

nascer é encontrá-las 

nas estradas arruinadas

em cada rio sem ponte 

em cada casa assombrada.

Se morre a mukúla 

na colina enamorada pelo Cassai

logo nasce a mwanza dos ninhos

o pé de bordão maruvo

verdejam as folhas da mandioqueira 

quando a lua cheia espalha prata nas lavras.

Nascer é encontrar 

morrer é deixar tudo para trás.

(Eu sei mãe, enganaste a vida para salvar os sonhos)

Canto IV

A cria da gunga chorou 

e seu choro matou a mãe

porque por trás da aflição

estava o tiro do caçador.

A vida ainda não se pôs

o grilo vermelho tem terra fresca

à porta de sua casa 

nada está perdido 

nem a esperança

nem o banquete do grande dia

para agasalhar os pródigos filhos da terra

a panela renova o pirão 

que dorme há tantos anos na cozinha

kuhíkulula xima

só a velhice é definitivamente sábia

o caçador aprendeu

e o choro da cria matou a gunga.

(Eu sei mãe, sem ti ninguém salvava o mundo)

Canto V

O viajante falou dos segredos

guardados no fundo do mar

e perante gritos de espanto e lamentos lúgubres

chegou mascarado aquele que come vidas

só os velhos mais velhos

sabem esconjurar tanto perigo

e o estranho homem

que cria um rio a cada passo que dá

pagou o tchiwimbi

na noite soou ténue o canto do kixixi

e o viajante continuou a falar dos segredos do mar.

(Eu sei mãe, é tão fria a ausência dos mortos!)

Canto VI

Agora todos sabem, falou o afamado

nosso filho não morreu

tinha razão o grilo vermelho 

para continuar a cantar

o rapaz recusou o calor do kimbo

e partiu depois do sol-pôr 

pelos caminhos secretos

guardados por aquele que come vidas

na sacola tinha apenas o livro da sabedoria

o ausente para sempre suicidou-se

ninguém anda com a noite pelas estradas da morte

agora todos sabem, falou o afamado.

(Eu sei mãe, pior que a prisão é a tristeza)

Canto VII

O pássaro da noite

poisou na árvore torta

e desde então há festa na floresta

vaidades do cuco ignoram o seu cheiro

quem canta espanta o medo

porque o kixixi tem terra fresca na toca

assim falou o viajante:

- o que vai à frente é que perde o caminho

vamos esperar o reencontro

com os passos perdidos

há-de regressar o que tarda

assim dita o voo flácido

do pássaro da noite.

(Eu sei mãe, o Salvador bateu à porta)

Canto VIII

O jovem pastor da cabra velha 

deixa o pirão a dormir

na esperança de comer carne

ao amanhecer da sua morte

o grilo vermelho ainda canta?

A resposta sobre os desgostos

está naquele que enterrou seus mortos

nosso filho partiu à noite

essa é a outra face da morte

intangível à magra sabedoria

do jovem pastor da cabra velha.

(Eu sei mãe, a ceia está na mesa e só falto eu)

Canto IX

Eis o medo, a lenta asfixia 

dos nossos corações 

kixixi calou o seu canto

a cabeça está virada para baixo

e a terra fresca à porta da sua toca

 foi levada pela brisa como poeira

o viajante pagou o tchiwimbi

e o que come vidas agoirou:

- teme o futuro sem o grilo vermelho

que o passado foi vergado e vencido

e em breve o luto

vai amaldiçoar a abundância de pirão

mesmo que a cabra velha esteja morta

o choro das crias impede o banquete

e a carne vai dormir na podridão.

Não voltarão os que partiram

seus passos não abrem rios

agora é o tempo dos tristes lamentos 

asfixiados pelo medo.

(Eu sei mãe, jamais se perderá a melodia da tua canção de ninar)

Canto X

O kixixi silenciou seu canto

na chana plena de abundância

mas tremem corações de mães

e estão paralisados os passos da dança. 

o que pede comida é rei

o que rouba na lavra é pedinte

mesmo que tenha um trono

seja dono de rios e mares

ou espante o que come vidas.

Nada existe para além do pensamento:

o kixixi virou a cabeça para dentro

o medo abriu a porta e mora na nossa casa.

(Eu sei mãe, vamos pagar o tchiwimbi para esconjurar a morte)

*Jornalista

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