segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Portugal | O otimismo de Costa, as justificações de Marcelo e um caso por explicar

João Pedro Barros, editor online | Expresso (curto)

O Natal é feito de tradições e é por isso que deve estar a abrir este email ainda a sentir-se empanturrado com peru, bacalhau, bolo-rei e doces vários. Depois de ter visto o “Sozinho em Casa” pela 23.ª vez, de andar à procura daquele talão de troca perdido no meio de quilos de papel de embrulho rasgado e de resistir àquele tio chato que conta sempre as mesmas histórias, já se estava a sentir feliz com o abrandar dos rituais da quadra. Mas ainda faltava um: provavelmente a passar como ruído de fundo lá na sala, o primeiro-ministro picou ontem à noite o ponto da mensagem de Natal.

Nunca é de esperar nada de verdadeiramente surpreendente nesta comunicação: António Costa repetiu o guião dos últimos meses, inteligentemente estruturado em torno de três palavras: paz, solidariedade e confiança. Os conteúdos são fáceis de encaixar nestes três substantivos, a começar pela guerra na Ucrânia – um tema bastante consensual na sociedade portuguesa –, passando pelos apoios do Estado e pelo quase pleno emprego e terminando nas “contas certas”.

Todos estes elementos estiveram ontem presentes, de forma a criar uma narrativa que pode ser descrita como “irritantemente otimista”. Imagino mesmo que o caro leitor possa ter olhado de lado para a televisão quando o primeiro-ministro falou de uma aproximação às “economias mais desenvolvidas da Europa” – uma declaração difícil de engolir quando ainda recentemente noticiamos que as previsões apontam para que a Roménia ultrapasse Portugal no PIB per capita em 2024 (e sim, sabemos que o PIB não é tudo, mas a convergência desde que Costa chegou ao poder, em 2016, tem a espessura e a solidez de uma folha de papel).

Outro ponto que pode ter levado a um franzir de sobrolho foi quando Costa situou Portugal como estando ao “abrigo das turbulências do passado”: uma referência subtil ao tempo da troika – chamada, como se sabe, no âmbito do governo PS de José Sócrates – e ao controlo recente do défice e da dívida. Esperamos todos, portugueses, que de facto assim seja, porque o que aí vem é difícil de prever – e a despesa com juros da dívida pública já aumenta uns bons milhões em 2023.

Portugal no “pelotão da frente” face à incerteza internacional soa um pouco ao “oásis” dos tempos de Cavaco, mas a enésima rabanada é bem capaz de ter feito esse pensamento desvanecer-se. Nada disto interessa muito agora, porque é Natal, e até a reação da oposição foi previsível: o PSD vê um primeiro-ministro “de braços caídos”, o Iniciativa Liberal fala em “autoelogio” e mentira na referência à progressão económica, o PCP diz que o país “não se reconhece” nas palavras de Costa e o PAN quer “abertura” para ser ouvido.

Mas o Natal do primeiro-ministro veio com uma fava (ou talvez seja um “casinho”): a indemnização de 500 mil euros que, de acordo com o “Correio da Manhã” de sábado, foi paga a Alexandra Reis, atual secretária de Estado do Tesouro, por ter abandonado o cargo de administradora executiva da TAP. Quatro meses depois, a agora governante foi nomeada para a presidência da Navegação Aérea de Portugal (NAV).

Talvez devido às festas, o caso ainda não foi comentado ou confirmado pelo Governo ou pela companhia aérea. O tema também nunca faria parte da mensagem institucional da quadra do chefe de Governo, pelo que Marcelo Rebelo de Sousa lá veio dar uma ajuda e antecipar uma explicação.

O Presidente da República garante tratar-se "de uma situação de rescisão por parte da empresa onde exercia funções de administração a meio do mandato, o que daria lugar a uma indemnização completa" e acabou por ser negociado “um terço”. Porém, acrescenta o Presidente, "há quem pense" que seria "bonito" Alexandra Reis prescindir da indemnização da TAP, ainda que a ida para o Governo pareça “não ter problemas de incompatibilidade", em termos jurídicos.

A história fica ainda incompleta: Alexandra Reis saiu pelo próprio pé (o que tornaria a indemnização impossível de compreender) ou por imposição da empresa, que está a receber ajuda do Estado? De acordo com o que noticiamos em fevereiro, a administradora saiu porque tinha sido nomeada por Humberto Pedrosa, que entretanto deixou de estar representado no capital da TAP SA. Sobra então uma questão de 500 mil euros: não era possível manter a gestora tendo em conta que a mesma tutela (Ministério das Infraestruturas e Habitação) a considerou a pessoa certa para liderar a NAV, apenas quatro meses depois?

OUTRAS NOTÍCIAS

Guerra na Ucrânia – Vladimir Putin voltou ontem a mostrar-se disponível para negociações para terminar com o conflito, acusando Kiev e os aliados ocidentais de as recusarem. E o que quer o Ocidente? “Dividir a Rússia, a Rússia histórica" – ou seja, o Presidente russo recupera igualmente o discurso de que a Ucrânia não deve existir como país independente.

Greve – Trabalhadores da CP e da Infraestruturas de Portugal agendaram para hoje mais um dia de paralisação, como forma de luta pela atribuição de um prémio para compensar a perda do poder de compra e a atualização do subsídio de alimentação. Foram definidos serviços mínimos de 25% dos comboios.

Um ano de austeridade monetária – Juro médio mundial mais que duplicou em 2022.

Ataque em Paris – O homem de 69 anos suspeito de matar três curdos, na sexta-feira, vai ser hoje presente a um juiz de instrução, com vista a uma possível acusação

Tempestades – Pelo menos 34 pessoas morreram nos Estados Unidos, num fenómeno quase sem precedentes: cerca de 60% da população norte-americana recebeu um aviso meteorológico. No Japão, há pelo menos 17 mortos e mais de 90 feridos como resultado dos nevões registados um pouco por todo o país.

Covid-19 – Cientistas temem nova mutação do vírus na China.

Animais de estimação – Ter um custa hoje, em média, quase 21% mais do que em 2021, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística.

Mais ricos em Portugal – Unidade do FIsco que fiscaliza as maiores fortunas e as empresas mais poderosas está a acompanhar cinco vezes mais contribuintes do que em 2014.

Futebol regressa à Europa – Um guia para o que há para ver nas próximas semanas, de Portugal a Espanha, Itália e Inglaterra, onde a Premier League retoma hoje a atividade, com sete jogos agendados.

FRASES

O nosso tempo vive uma grave carestia de paz
Papa Francisco, na leitura da mensagem de Natal, no Vaticano, referindo-se à guerra na Ucrânia, mas também aos “exemplos da Síria e da Terra Santa”

Há uma superioridade latente na forma como o normal de Lisboa olha para o que é de fora. Como se fôssemos uma espécie de Tino de Rans
João Moreira, criador de Bruno Aleixo, no podcast Posto Emissor, da Blitz

PODCASTS A NÃO PERDER

As sugestões da equipa multimédia do Expresso:

António Guterres: “A única parte do futuro que me preocupa é acabar este mandato não apenas evitando o pior, mas tentando lançar as bases para que seja possível um multilateralismo mais eficaz do que aquele que temos hoje”. Oiça a entrevista do secretário-geral da ONU a Francisco Pinto Balsemão no podcast Deixar o Mundo Melhor.

A má educação política e cívica de Costa e a 'pop star' Zelensky. A entrevista do PM à “Visão” e outras atitudes de António Costa estão em análise no podcast Miguel Sousa Tavares de Viva Voz, com a diretora-adjunta do Expresso Paula Santos.

Especial Natal: canção “Os Sonhos da Má Língua”. Com que sonham os portugueses? Júlia Pinheiro, Rui Zink, Manuel Serrão e Rita Blanco confessam os sonhos de Natal numa música original e com os direitos de autor devidamente assegurados. Boas festas!

O QUE EU ANDO A LER

Caiu-me ao colo este Natal, pelo que ainda só posso falar pelas primeiras páginas. “Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos” (Cavalo de Ferro, 2022) chegou-me vestido de policial mas já percebi que é mais do que isso: o crime surge como gancho para acompanharmos uma série de personagens, a começar pela excêntrica Janina Duszejko, uma professora reformada e incansável defensora dos direitos dos animais.

Tudo começa no inverno, com neve a rodos, o que me fez imaginar um cenário como o de “Fargo”, o filme de meados dos anos 90 dos irmãos Coen, com uma inesquecível Frances McDormand no papel principal. A autora do livro dispensa apresentações: é Olga Tokarczuk, Nobel da Literatura em 2018.

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