João Pedro Barros, editor online | Expresso (curto)
O Natal é feito de tradições e é
por isso que deve estar a abrir este email ainda a sentir-se empanturrado com
peru, bacalhau, bolo-rei e doces vários. Depois de ter visto o “Sozinho em
Casa” pela 23.ª vez, de andar à procura daquele talão de troca perdido no meio
de quilos de papel de embrulho rasgado e de resistir àquele tio chato que conta
sempre as mesmas histórias, já se estava a sentir feliz com o abrandar dos
rituais da quadra. Mas ainda faltava um: provavelmente a passar como ruído de
fundo lá na sala, o primeiro-ministro picou ontem à noite o ponto da
mensagem de Natal.
Nunca é de esperar nada de verdadeiramente surpreendente nesta comunicação:
António Costa repetiu o guião dos últimos meses, inteligentemente estruturado em torno de três palavras: paz,
solidariedade e confiança. Os conteúdos são fáceis de encaixar nestes três
substantivos, a começar pela guerra na Ucrânia – um tema bastante consensual na
sociedade portuguesa –, passando pelos apoios do Estado e pelo quase pleno
emprego e terminando nas “contas certas”.
Todos estes elementos estiveram ontem presentes, de forma a criar uma narrativa
que pode ser descrita como “irritantemente otimista”. Imagino mesmo que o caro
leitor possa ter olhado de lado para a televisão quando o primeiro-ministro
falou de uma aproximação às “economias mais desenvolvidas da
Europa” – uma declaração difícil de engolir quando ainda recentemente
noticiamos que as previsões apontam para que a Roménia ultrapasse Portugal no
PIB per capita em 2024 (e sim, sabemos que o PIB não é tudo, mas a convergência desde que
Costa chegou ao poder, em 2016, tem a espessura e a solidez de uma folha de
papel).
Outro ponto que pode ter levado a um franzir de sobrolho foi quando Costa
situou Portugal como estando ao “abrigo das turbulências do passado”: uma
referência subtil ao tempo da troika – chamada, como se sabe, no âmbito do
governo PS de José Sócrates – e ao controlo recente do défice e da dívida.
Esperamos todos, portugueses, que de facto assim seja, porque o que aí vem é
difícil de prever – e a despesa com juros da dívida pública já aumenta uns bons
milhões em 2023.
Portugal no “pelotão da frente” face à incerteza internacional soa um pouco ao
“oásis” dos tempos de Cavaco, mas a enésima rabanada é bem capaz de ter feito
esse pensamento desvanecer-se. Nada disto interessa muito agora, porque é
Natal, e até a reação da oposição foi previsível: o PSD vê um primeiro-ministro
“de braços caídos”, o Iniciativa Liberal fala em “autoelogio” e mentira na
referência à progressão económica, o PCP diz que o país “não se reconhece” nas
palavras de Costa e o PAN quer “abertura” para ser ouvido.
Mas o Natal do primeiro-ministro veio com uma fava (ou talvez seja um
“casinho”): a indemnização de 500 mil euros que, de acordo com o “Correio da Manhã” de sábado, foi paga a
Alexandra Reis, atual secretária de Estado do Tesouro, por ter abandonado o
cargo de administradora executiva da TAP. Quatro meses depois, a agora
governante foi nomeada para a presidência da Navegação Aérea de Portugal (NAV).
Talvez devido às festas, o caso ainda não foi comentado ou confirmado pelo
Governo ou pela companhia aérea. O tema também nunca faria parte da mensagem
institucional da quadra do chefe de Governo, pelo que Marcelo Rebelo de Sousa lá veio dar uma ajuda e
antecipar uma explicação.
O Presidente da República garante tratar-se "de uma situação de rescisão
por parte da empresa onde exercia funções de administração a meio do mandato, o
que daria lugar a uma indemnização completa" e acabou por ser negociado
“um terço”. Porém, acrescenta o Presidente, "há quem pense" que
seria "bonito" Alexandra Reis prescindir da indemnização da TAP,
ainda que a ida para o Governo pareça “não ter problemas de
incompatibilidade", em termos jurídicos.
A história fica ainda incompleta: Alexandra Reis saiu pelo próprio pé (o que
tornaria a indemnização impossível de compreender) ou por imposição da empresa,
que está a receber ajuda do Estado? De acordo com o que noticiamos em
fevereiro, a administradora saiu porque tinha sido nomeada por Humberto Pedrosa, que entretanto
deixou de estar representado no capital da TAP SA. Sobra então uma questão
de 500 mil euros: não era possível manter a gestora tendo em conta que a
mesma tutela (Ministério das Infraestruturas e Habitação) a considerou a pessoa
certa para liderar a NAV, apenas quatro meses depois?
OUTRAS NOTÍCIAS
Guerra na Ucrânia – Vladimir Putin voltou ontem a mostrar-se disponível para
negociações para terminar com o conflito, acusando Kiev e os aliados
ocidentais de as recusarem. E o que quer o Ocidente? “Dividir a Rússia, a
Rússia histórica" – ou seja, o Presidente russo recupera igualmente o
discurso de que a Ucrânia não deve existir como país independente.
Greve – Trabalhadores da CP e da Infraestruturas de Portugal agendaram para hoje mais um dia de paralisação, como forma
de luta pela atribuição de um prémio para compensar a perda do poder de compra
e a atualização do subsídio de alimentação. Foram definidos serviços mínimos de
25% dos comboios.
Um ano de austeridade monetária – Juro médio mundial mais que duplicou em 2022.
Ataque em Paris – O homem de 69 anos suspeito de matar três curdos, na sexta-feira, vai ser hoje
presente a um juiz de instrução, com vista a uma possível acusação
Tempestades – Pelo menos 34 pessoas morreram nos Estados Unidos, num
fenómeno quase sem precedentes: cerca de 60% da população norte-americana
recebeu um aviso meteorológico. No Japão, há pelo menos 17 mortos e mais
de 90 feridos como resultado dos nevões registados um pouco por todo o país.
Covid-19 – Cientistas temem nova mutação do vírus na China.
Animais de estimação – Ter um custa hoje, em média, quase 21% mais do que em 2021, de acordo com o Instituto
Nacional de Estatística.
Mais ricos em Portugal – Unidade do FIsco que fiscaliza as maiores
fortunas e as empresas mais poderosas está a acompanhar cinco vezes mais contribuintes do que em 2014.
Futebol regressa à Europa – Um guia para o que há para ver nas próximas semanas, de
Portugal a Espanha, Itália e Inglaterra, onde a Premier League retoma hoje a
atividade, com sete jogos agendados.
FRASES
O nosso tempo vive uma grave carestia de paz
Papa Francisco, na leitura da mensagem de Natal, no Vaticano, referindo-se
à guerra na Ucrânia, mas também aos “exemplos da Síria e da Terra Santa”
Há uma superioridade latente na forma como o normal de Lisboa olha para o que é
de fora. Como se fôssemos uma espécie de Tino de Rans
João Moreira, criador de Bruno Aleixo, no podcast Posto Emissor, da Blitz
PODCASTS A NÃO PERDER
As sugestões da equipa multimédia do Expresso:
António Guterres: “A única parte do futuro que me preocupa é
acabar este mandato não apenas evitando o pior, mas tentando lançar as bases
para que seja possível um multilateralismo mais eficaz do que aquele que temos
hoje”. Oiça a entrevista do secretário-geral da ONU a Francisco Pinto
Balsemão no podcast Deixar o Mundo Melhor.
A má educação política e cívica de Costa e a 'pop star'
Zelensky. A entrevista do PM à “Visão” e outras atitudes de António Costa estão em análise no podcast Miguel Sousa Tavares de Viva
Voz, com a diretora-adjunta do Expresso Paula Santos.
Especial Natal: canção “Os Sonhos da Má Língua”. Com que
sonham os portugueses? Júlia Pinheiro, Rui Zink, Manuel Serrão e Rita Blanco
confessam os sonhos de Natal numa música original e com os direitos de autor
devidamente assegurados. Boas festas!
O QUE EU ANDO A LER
Caiu-me ao colo este Natal, pelo que ainda só posso falar pelas primeiras
páginas. “Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos” (Cavalo de Ferro, 2022)
chegou-me vestido de policial mas já percebi que é mais do que isso: o
crime surge como gancho para acompanharmos uma série de personagens, a começar
pela excêntrica Janina Duszejko, uma professora reformada e incansável defensora
dos direitos dos animais.
Tudo começa no inverno, com neve a rodos, o que me fez imaginar um cenário como
o de “Fargo”, o filme de meados dos anos 90 dos irmãos Coen, com uma
inesquecível Frances McDormand no papel principal. A autora do livro dispensa
apresentações: é Olga Tokarczuk, Nobel da Literatura em 2018.
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