domingo, 8 de janeiro de 2023

O BIFE DE PAKAÇA E A CAIXA DE SAPATOS – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O senhor Andrade viajou das Ilhas de Cabo Verde para Angola e desaguou no Negage. Fez um levantamento do mercado de trabalho e descobriu que não existiam carpinteiros na vila. Pediu aos seus conterrâneos que lhe mandassem da capital um banco de carpintaria e as ferramentas indispensáveis. Logo nos seus primeiros desempenhos ganhou o título depreciativo de Estraga a Tábua. Injustiça! Acabou por se revelar um grande carpinteiro.

Anos mais tarde apareceu no Negage um chefe de posto cabo-verdiano, homem de fino trato e que bebia uísque com o mesmo souplesse do amante da rainha de Inglaterra, morta ou por morrer, coroada ou por coroar. O senhor Andrade Estraga a Tábua foi ao posto, apresentou-se à nova autoridade. Grandes abraços e efusivos cumprimentos. O honesto e competente carpinteiro convidou-o para um jantar na sua humilde casa, que ficava na descida para o rio Kaua. Convite aceite!

No dia aprazado, o senhor Andrade foi ter com o Luís Ferreira, padeiro e grande caçador, para lhe arranjar 11 bifes de pakaça. Do lombinho. Porquê 11? E ele respondeu: Lá em casa somos sete filhos, eu e minha mulher. Convidei o senhor chefe de posto para jantar, somos dez. Por isso levo 11 bifes. Um para cada membro da família e dois para a autoridade, se quiser repetir.

O jantar correu muito bem. O senhor Andrade dedilhava o violão com grande mestria e cantava as mais belas mornas alguma vez criadas pelos crioulos das Ilhas de Cabo Verde. Prometeu aos filhos que ia actuar. 

As travessas do jantar vieram para a mesa. Numa, batatas fritas. Na outra, bifes com ovos a cavalo. Os filhos foram devidamente instruídos para dizerem que não, quando a mãe ou o pai lhes perguntassem se queriam repetir. E na travessa ficou o bife solitário destinado ao “bis” da autoridade.

Naquele tempo no Negage, meia hora antes de ser desligado o grupo gerador da luz, o sipaio dava um breve corte. Como ainda não estavam acesos os candeeiros a pitrol, quando a luz foi e sabendo quem tinha em casa, o senhor Andrade pôs a mão em cima do bife. A luz veio e ele tinha sete garfos espetados na mão. 

O Executivo reduziu o desemprego para 30 por cento. Em vez de elogios, recebe críticas e ataques descabelados. É emprego sem qualidade. É tudo precário. Salários rastejantes. Será. Mas um bife de pakaça é melhor do que nada, mesmo que esteja mal confeccionado ou tenha muito nervo mais parecendo carne dos cornos. Como dizia Júlio César aos seus soldados na campanha da Gália, com fome há sempre apetite e tudo é bom. As angolanas e os angolanos estão famintos de trabalho. 

A dívida caiu para 30 por cento do Produto Interno Bruto. Minhas senhoras e meus senhores. Para um país como Angola isso não é dívida, é crédito ilimitado nos mercados financeiros. Como eu gostava de ler um texto de Alves da Rocha ou José Cerqueira sobre este tema! O seu silêncio será por causa da caixa de sapatos?

Nós, os do mato, só podemos estar felizes com as obras em catadupa no âmbito do Plano Integrado de Intervenção nos Municípios  (PIIM). As populações que ainda resistem à desertificação humana no interior sabem o que isso significa e como esses equipamentos sociais mudam as suas vidas. Mais os fundos do Programa Kwenda!

O problema é a caixa de sapatos. Quando era miúdo, meu Pai andava na permuta e minha Querida Mãe geria a pousada que tinha um restaurante e bar muito bem frequentado, porque sob o alpendre existiam mesas e cadeiras de bambu. Os clientes adoravam beber naquele espaço. Quando um cliente pagava com notas novinhas, a Mamã dava-mas e eu guardava-as numa caixa de sapatos. Dizia ela: Quando fores estudar para o Puto levas esse dinheiro para as tuas coisinhas…

Já em Luanda as notas novas começaram a rarear mas ainda caíam algumas na caixa. E eu de peito alto. Sabem como a poupança voou? A SOCA R importou pela primeira vez para Angola motos japonesas. Eu fui à caixa para comprar uma Honda que até tinha motor de arranque. Ficaram lá uns restos de notas novas que eram novas porque tinham alto valor facial e, por isso, não andavam de mão em mão.

Alves da Rocha e José Cerqueira deixaram de nos brindar com as suas análises competentíssimas. O espaço público ficou mais pobre. A caixa de sapatos do MPLA ficou mais vazia.

João Lourenço era o competentíssimo dirigente do aparelho. Fez um trabalho notável ao longo dos anos, sobretudo depois de 1992. Foi uma ideia brilhante colocá-lo na Assembleia Nacional porque, afinal, as deputadas e deputados do MPLA passavam pelo seu crivo. Homem certo no lugar certo. Gerir maiorias qualificadas é mais difícil do que gerir maiorias simples. Porque há a tendência de dormir à sombra da bananeira ou ignorar a Oposição. João Lourenço estava lá para exigir o respeito pelo programa de governo do partido.

O MPLA colocou João Lourenço como cabeça de lista às eleições de 2017. Foi à caixa dos sapatos e deixou lá poucas notas valiosas. Se a caixa ficar vazia o partido também fica. Vejam o caso de Manuel Nunes Júnior. O Presidente José Eduardo dos Santos só o chamava para o Governo quando o circo estava a arder. Apagados os fogos, voltava à sua condição de membro do Secretariado do Bureau Político para a área económica. A sua chamada para o Executivo de João Lourenço sem nada estar a arder foi mais um rombo na caixa dos sapatos.

Os mais optimistas vão dizer que ainda há muita nota valiosa na caixa dos sapatos. Isso só é verdade se as dezenas de membros do Bureau Político forem notas valiosas e tiverem lugar na caixa de sapatos. Pelo que conheço de algumas e alguns, não tenho a certeza disso. Tomara que todas e todos sejam notas valiosíssimas.

Tratem bem o Conselho de Honra do MPLA porque na hora do aperto os seus membros ainda podem prestar serviços relevantes. Militantes como Roberto de Almeida, “Dino Matrosse”, “Nvunda”, “Petroff”, “Inga”, “ “Xietu”, “Ndalu”, Escórcio, Lopo do Nascimento, “Ingo”, Engrácia Francisco Cabenha (Rainha do 4 de Fevereiro), Ismael r Martins, Brito Sozinho, “Kito” ou “Toka” ainda podem valer ouro em tempo de penúria. Não esgotem a caixa de sapatos. Nenhuma mota merece esse esbanjamento.

*Jornalista

Sem comentários:

Mais lidas da semana