sábado, 11 de fevereiro de 2023

A INFLAÇÃO ESTÁ A ABRANDAR, MAS O MAL ESTÁ FEITO

«Vejo muitas pessoas na expectativa do abrandamento da inflação este ano, como se, nesse abrandamento, estivesse alguma solução para o problema que agora vivem e que se traduz na perda de poder de compra. A essas pessoas deve ser dito que a perda de poder de compra que agora sentem é definitiva, uma vez que não é previsível que venhamos a ter uma variação negativa da inflação. Enquanto os salários não aumentarem de forma proporcional à inflação que conhecemos no ano passado, e à deste ano, estaremos a empobrecer.»

Carmo Afonso* | opinião 

Eram dois homens embriagados que passeavam. Tropeçaram e, sem se aperceberem disso, caíram para a via férrea.

Diz um: “Caraças, vem aí um comboio!”

Responde o outro: “Calma, calma, que está a abrandar.”

Morreram os dois atropelados pelo comboio.

Vejo muitas pessoas aliviadas, porque a taxa de inflação está a abrandar, ou seja, continua alta, mas com uma taxa mais baixa do que a verificada nos meses anteriores. Vejamos: a taxa de inflação homóloga em Portugal abrandou para 8,3% e foi o terceiro mês consecutivo de desaceleração. Relativamente à inflação subjacente (que não conta com os preços dos produtos energéticos e alimentares não transformados) também abrandou para 7% em janeiro, o que representa uma descida de 0,3 pontos percentuais face à verificada em dezembro último.

O que significa?

Significa muito pouco. Os preços continuam a aumentar, embora um pouco menos do que há três meses. A questão é que mesmo que neste momento não houvesse inflação, ou seja, mesmo que os preços não estivessem a subir, ninguém nos poderia aliviar do que já aconteceu e que já se cristalizou na economia.

Este é um assunto que deveria ser clarificado de uma vez por todas. Vejo muitas pessoas na expectativa do abrandamento da inflação este ano, como se, nesse abrandamento, estivesse alguma solução para o problema que agora vivem e que se traduz na perda de poder de compra. A essas pessoas deve ser dito que a perda de poder de compra que agora sentem é definitiva, uma vez que não é previsível que venhamos a ter uma variação negativa da inflação – único cenário em que se reverteriam os novos preços. Atenção que um fenómeno de deflação seria catastrófico. A solução não está aí.

As pessoas não têm uma grande cultura económica, mas diga-se que o Governo ajudou a este equívoco: António Costa afirmou que o aumento da inflação era extraordinário e que por isso não iria aplicar medidas estruturais para lhe fazer frente. Outra vez: o aumento era extraordinário no sentido em que era superior ao que tivemos nos últimos anos, mas as suas consequências, e refiro-me ao aumento dos preços, estão estruturalmente consolidadas na vida dos portugueses. Os novos preços vieram para ficar.

Isto significa que apenas medidas estruturais — como são o aumento ou atualização dos salários — podem fazer face à inflação que vivemos e de cujo impacto, mesmo que agora abrande drasticamente, não nos livraremos. Mais, o crescimento da inflação abrandou, mas ela continua a existir e para já ainda muito alta, ou seja, os portugueses continuam a perder poder de compra todos os dias, a somar ao que já perderam.

A realidade, para todos os que vivem dos rendimentos do seu trabalho, é que estão cada vez mais pobres e a celebração que pode ser feita relativamente à desaceleração da inflação é de facto muito parecida ao alívio daquele homem embriagado que viu o comboio a abrandar antes de ser atropelado. Somos aqueles bêbedos.

Não seria o mínimo os portugueses terem consciência daquilo que lhes está a acontecer? Enquanto os salários não aumentarem de forma proporcional à inflação que conhecemos no ano passado, e à deste ano, estaremos a empobrecer. Disto ninguém nos livra. Chegámos a discutir aumentos salariais efetivos em anos anteriores, mas agora estamos sempre a falar de atenuação nas perdas salariais que tivemos.

Esta semana António Costa, demonstrando um domínio absoluto da arte de ser entrevistado, nada disse aos portugueses que vivem dos rendimentos do seu trabalho que lhes permita sentir o alívio que todos querem sentir e que, mal informados, experimentam a propósito destas notícias sobre a descida da inflação.

O nosso primeiro-ministro respondeu com tranquilidade às perguntas que o jornalista lhe fez e deu conta de novos números e indicadores que apontam para algum otimismo já num futuro próximo. Dir-se-ia que vai ficar tudo bem.

Mas lembrem-se dos nossos dois amigos embriagados. É que também morreram cheios de alívio. E lembrem-se de outra coisa: as variações da inflação não são picos e vales; são picos, seguidos de planaltos.

*Fonte: “Público”, 1.02.2023 – em O Diário.info

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