domingo, 7 de maio de 2023

Angola | DO PRENDA À RUA DOS MERCADORES – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Fernão Simões de Carvalho (Carvalhinho) é um luandense de eleição. Marcou a cidade ao criar o projecto arquitectónico do edifício da Rádio Nacional de Angola. Vasco Vieira da Costa, arquitecto do Porto e Paris. Deixou em Luanda a marca do seu génio ao criar o projecto do demolido Mercado do Kinaxixi, um exemplo universal de como se constrói em meio tropical. Luís Taquelim, arquitecto algarvio que dedicou décadas à sua cidade de Luanda. Era funcionário da Junta Autónoma das Estradas. José Troufa Real arquitecto angolaníssimo.  Deixou o seu talento em vários projectos de Luanda. Fez um trabalho ímpar que visava urbanizar os musseques da capital. Professor de arquitectos. Meu amigo.

Francamente. A Luanda de asfalto era verdadeiramente desenraizada. Rainha de um mau gosto que transpirava por todos os poros de colonos incultos e ignorantes, mas derreados ao peso do seu dinheiro. Os arquitectos com que abri este texto salpicavam, aqui e ali, a cidade de talento e bom gosto. Ao nível da velha Cidade da Assumpção de São Paulo de Loanda que entretanto apodreceu. Sempre que vou à Rua dos Mercadores o meu coração quer paralisar ao ver uma pequena oficina de automóveis nas ruínas do Teatro Providência. E a minha cidade sem teatros. Mesmo ao lado a imponente fachada da Minerva, primeira grande fábrica de artes gráficas na nossa cidade, propriedade do Ramiro, uma figura da cidade.

A Luanda dos grandes arquitectos foi dotada, em 1961, do Gabinete de Urbanização da Câmara Municipal, dirigido pelo arquitecto Carvalhinho. Naquele tempo tinha oito arquitectos, três engenheiros, um topógrafo, um artista plástico, dez desenhadores e um maquetista.

O arquitecto Carvalhinho desenhou a Unidade de Vizinhança do Prenda para a Cofinca, construtora espanhola que iniciou em Angola o negócio da propriedade horizontal. Uma senhora muito prendada, rica e belíssima comprou um apartamento no quarto andar, com uma varanda para a Baía de Luanda, Baía da Samba e Baía do Mussulo. Eu fui o seu príncipe com sorte durante algum tempo. Passava a vida na varanda contemplando o mar e seus mambos. Ela despediu-me com justa causa.

Quando me sentia um cão tinhoso escorraçado ficava a meditar em frente ao prédio. A meditação levava-me invariavelmente à mesma conclusão: Sou uma vítima do imperialismo. Desandava e depois parava no primeiro botequim bebendo uns copos de vinho do puto, vendido a granel, envasilhado em barris de aduelas e arcos de ferro. Um dia a senhora rica e bonita teve pena de mim e ajudou-me a comprar um botequim no bairro. O Pedro Jara de Carvalho arranjou um financiamento com Dona Babolina. Juntámos o capital e de um dia para o outro, os leões d’anhara passaram para o lado de dentro do balcão.

As estatísticas nada dizem mas estou convencido de que fomos os empresários que mais rapidamente faliram. Menos de meio ano depois, o poeta Álvaro Novais (Caixa de Fósforos), um barra em contabilidade, descobriu que a coluna do deve eras infinitamente maior do que do haver. Comprávamos um barril de vinho de bebíamos mais nós do que os clientes. Oferecíamos fuba e peixe seco aos clientes mais necessitados. Vendíamos a crédito fósforos e cigarros jucas, francesinhos ou caricocos. Vendíamos grades de cerveja a prestações suaves. Mas pagávamos a pronto aos fornecedores, Cuca e Nocal.

Um vendedor impingiu-nos caixas de aguardente Neto CosTa. Nem um cálice foi vendido. Bebemos tudo. O repórter e poeta Ernesto Lara Filho foi o melhor cliente. Dizia que aquilo era conhaque Eu nada. Quem me tirava o tinto, tirava-me a vida. Hoje estou ameaçado do corte das telecomunicações e da energia eléctrica. Não se atrevam a cortar! Isso é uma sentença de morte. A dama ricaça cortou comigo para todas a vidas. Eu que estava pronto a ser o seu admirador paras sempre. Não quero mais cortes vitais. 

Os Media dizem-me que a Unidade de Vizinhança do Prenda pode ruir. Lá se vai uma marca do arquitecto Carvalhinho. E mais ruínas vão ensombrar a minha vida. Mais uma sentença de morte. Gostava de subir ao quarto andar do prédio onde vivi e ficar uns intantes olhando para a Baía de Luanda, Baía da Samba e Baía do Mussulo. A última vontade de um condenado à morte. Mas a vida é um tango. Quando pensava que a fita tinha chegado ao fim, eis que Paulina Chiziane, a minha escritora favorita, começou a falar comigo. Venho de África.  Sou negra. Sou mulher. A Língua Portuguesa, de Camões, o contestatário, é falada e tratada à minha maneira! Ouvi isto e ressuscitei.

A morte regressou logo, ameaçadora. O Presidente Filipe Jacinto Nyusi não assistiu à entrega do Prémio Camões a Paulina Chiziane. Foi a Londres prestar vassalagem ao rei dos escravocratas e piratas ingleses. Chamem uma ambulância! Chamem uma ambulância! O meu coração vai parar. 

Um dia a rainha Isabel II foi à cidade do Porto. Eu frequentava um alfarrabista na Praça da República e fui até lá mergulhar em leituras de velhos alfarrábios. A loja estava fechada. Na porta, um grande letreiro. Tinha no topo uma vaca leiteira e por baixo: Fui Beber um Copo com a Rainha. Fiquei com uma sede ensurdecedora e atirei abaixo uma garrafa de vinho. Obrigado, rainha dos escravocratas e piratas ingleses. Nunca tive pretexto tão bom para bebericar.

A RTP (canal público português) está em Londres à grande. Portugal foi sempre um protectorado dos escravocratas e piratas ingleses, compreende-se a subserviência. Uma tal Rosário Salgueiro fez vários “directos” da capital do Reino Unido. E em todos dizia que a Língua Portuguesa estava bem representada: O Tio Célito (a lamber as feridas da tareia que levou do António Costa), Lula da Silva e Filipe Jacinto Nyusi. Excluiu sempre o meu Presidente. Fiquei grato pela censura. Custa-me muito ver João Lourenço prestar vassalagem ao rei dos escravocratas e piratas. 

Mas censura é censura. O Presidente da República de Angola, João Lourenço, foi censurado pela RTP, o canal oficial português.

Hoje mando-vos esta a foto (acima) de uma trovoada em Luanda, a cidade em derrocada. Autor: Paulo Pizarro, um menino com quem andei ao colo. Filho da Vera e do Mário, meus amigos e meus protectores.  Quando não tinha onde dormir, o sofá deles estava sempre ao dispor. E uma comidinha também. Um dia a dívida será paga.

* Jornalista

Sem comentários:

Mais lidas da semana