domingo, 7 de maio de 2023

O NEOLIBERALISMO AUTORITÁRIO DE MACRON ABRE CAMINHO À EXTREMA-DIREITA

Acusado pelos sindicatos de só saber comunicar com o povo com repressão policial, o presidente francês quer um “apaziguamento” rápido da contestação social para poder avançar com novas leis sobre direitos laborais. À margem da luta política e sindical, a extrema-direita espera e observa, enquanto sobe nas sondagens.

João Biscaia | Setenta e Quatro

O presidente francês anda inquieto. Há semanas que Emmanuel Macron é recebido pelos franceses nas suas viagens pelo país com “concertos de caçarolas”. Dezenas de manifestantes juntam-se onde a agenda do chefe de Estado o leva, seguindo-o batendo em tachos e panelas. O incómodo é tanto que um município antecipou mais um protesto proibindo o porte de “dispositivos sonoros portáteis”, o que culminou com agentes da polícia a confiscar inteiros jogos de cozinha.

Com Macron acossado e sem que a contestação social dê sinais de acalmar, a primeira-ministra, Élisabeth Borne, tem tomado a dianteira na defesa do programa político do Palácio do Eliseu ao ponto de já ter recebido o cognome de “dama de ferro”, à semelhança de Margaret Thatcher. Tem sido a fiel executora da infame reforma das pensões que o presidente diz ser inevitável e a sua relação com os sindicatos é um nó cego que não quer desatar. E a repressão das manifestações tem sido constante e violenta. 

Os protestos deste 1.º de Maio foram mais uma prova disso mesmo. As celebrações francesas deste dia comemorado em quase todo o mundo foram as maiores dos últimos vinte anos em França. Nas contas da CGT, a principal confederação sindical do país, cerca de 2,3 milhões de franceses uniram-se em manifestações e cortejos por todo o país, com mais de meio milhão a juntar-se em Paris. Os números recolhidos pelas autoridades são mais conservadores: 112 mil manifestantes na capital, 782 mil no total.

Olhando somente para os números da mobilização popular, foi um dia particular. A deliberação positiva do Conselho Constitucional sobre o projeto de reforma das pensões, no dia 14 de abril, permitiu ao presidente Emmanuel Macron promulgar a lei, rejeitada por mais de 80% dos franceses. Antecipando a expectável promulgação, a intersindical, que agrega os diversos sindicatos e organizações estudantis e juvenis, convocou para o 1.º de Maio mais um dia de greves e manifestações nacionais, o 13.º desde janeiro. O seu objetivo era celebrar a efeméride transformando-a num momento de intensificação da contestação social, forçando o executivo a ceder nas negociações.

A lei da idade de reforma, que Macron prometia desde 2017, estipula a passagem da idade mínima de aposentadoria dos 62 para os 64 anos e um mínimo de 43 anos de descontos como condição para se receber pensão completa (cerca de €1400). Além da impopularidade da reforma, a sua passagem sem votação nas duas câmaras do parlamento francês, através da invocação da alínea 49.3 da Constituição gaulesa (seguindo-se entretanto a sua promulgação), fez com que as ações de protestos se intensificassem a partir de meados de março. 

A particularidade numérica deste 1.º de Maio parece ter sido o culminar de uma continuidade: quatro meses de intensos protestos, embora com altos e baixos (tanto de adesão como de violência), contra o governo de Élisabeth Borne e a presidência de Macron. Houve mais de 300 manifestações por todo o país e Paris foi, como se esperava, o centro de efervescência social, mas em cidades como Nantes, Rennes, Lyon, Bordéus ou Marselha a tarde do Dia Internacional dos Trabalhadores também foi intensa, com montras partidas e carros incendiados. 

Na capital, os confrontos entre a polícia e o black bloc que encabeçava a manifestação começaram ao início da tarde. Ao longo do percurso da manifestação, da Praça da República à Praça da Nação, algumas dezenas dos autonomistas radicais vestidos de negro atacaram violentamente paragens de autocarro, restaurantes McDonald’s e sucursais do banco BNP Paribas. E os mais de cinco mil agentes mobilizados para manter a ordem e proteger a propriedade privada entraram em ação.

Contra pedras, garrafas e fogos de artifício atirados pelos manifestantes equipados com roupa negra, balaclavas, lenços ou bonés, a polícia respondeu com gás lacrimogéneo, granadas de atordoamento, canhões de água e diversas cargas indiscriminadas. Fê-lo de forma desordenada e com golpes de cassetete na cabeça e no flanco, contra uma maioria de manifestantes pacíficos — sindicalistas, trabalhadores, estudantes, aposentados e jornalistas de serviço. Ao final da tarde, cerca de 80 pessoas já tinham sido detidas.

Já noite, durante a tentativa de contenção de uma manifestação “selvagem” (ou seja, relativamente espontânea e sem aviso prévio às autoridades), um cidadão terá sido atirado ao rio Sena por um agente da BRAV-M, a brigada motorizada de repressão de ações violentas. Ainda nessa noite, o ministério da Administração Interna anunciou que havia 108 agentes feridos nos protestos em todo o país. Na manhã seguinte, Gérald Darmanin, ministro da Administração Interna, corrigiu o número para 406, quase o triplo do anunciado na noite anterior — 259 ficaram feridos só em Paris.

Do outro lado, o Observatoire des Street-médics, organização não governamental que calcula o número de feridos civis nas manifestações através da sua equipa de socorristas voluntários no terreno, documentou 590 feridos em todo o país, 118 dos quais graves, recebendo tratamento hospitalar. Mais de seis mil pessoas foram assistidas por envenenamento por gás lacrimogéneo. Foi a maior contabilização de feridos num dia de mobilização nacional desde o início dos protestos contra a reforma das pensões.

A primeira-ministra Élisabeth Borne considerou no Twitter que “as cenas de violência à margem das manifestações” de um 1.º de Maio de “mobilização responsável e empenhada” são “inaceitáveis” e expressou o seu apoio às forças de autoridade. Darmanin salientou que “a polícia enfrentou criminosos extremamente violentos” que se infiltraram nas manifestações para “matar polícias e atacar a propriedade alheia”. A extrema-esquerda, continuou o ministro, deve ser combatida por “todos”. Não fez qualquer referência aos civis feridos, entre os quais idosos e jornalistas devidamente identificados.

O próprio governo de Borne está sob crescente pressão de Macron. Em abril, o chefe de Estado deu ao executivo um prazo de 100 dias para a primeira-ministra pôr o seu governo nos eixos: garantir maiorias nas duas câmaras do parlamento para aprovar leis sobre trabalho e fraude fiscal. Ou seja, evitar-se ao máximo usar-se novamente o artigo 49.3 da Constituição francesa. É que Macron quer virar a página da contestação contra a reforma das pensões passada à revelia do poder legislativo e da maioria dos franceses, fazer esquecer o assunto, mas continua a ser acusado de desprezar os cidadãos e de acentuar a sua deriva autoritária.

Há um mês, Laurent Berger, dirigente do sindicato CFDT, afirmou que a “crise social criada pelo governo” estava a tornar-se numa “crise de regime”. Em declarações ao Setenta e Quatro, à margem da manifestação do dia 28 de março, em Paris, Fabien Roussel, secretário nacional do Partido Comunista Francês, considerou que Macron estava a atirar “a França para uma crise democrática” ao “endurecer a sua abordagem ao descontentamento popular através da polícia, causando feridos e suscitando ainda mais raiva entre a população”.

UM USO “DESMESURADO” DA VIOLÊNCIA “LEGÍTIMA”

"Temos assistido centenas de feridos nas manifestações”, diz Elza, socorrista, profissional de saúde. “Golpes na cabeça, sobretudo”. Prefere não dar o seu apelido ao Setenta e Quatro. Ela e mais três colegas caminham à frente de uma manifestação estudantil que se desloca pacificamente da Sorbonne à Praça da Bastilha. É 4 de abril, uma terça-feira, e atravessamos a ponte de Sully sobre o Sena. Elza carrega uma mochila de aparência militar de onde pende um cantil, um capacete com uma cruz vermelha desenhada a fita-cola e uma máscara anti-gás. Veste calças com mais bolsos do que é possível contar e no casaco tem cosido um crachá com o seu tipo sanguíneo: ARh+.

Está ali de forma completamente voluntária e, sublinha, para ajudar qualquer pessoa que precise de assistência médica, seja civil ou polícia. A maioria dos feridos que socorre são pessoas “atingidas por cassetetes ou projéteis” e que ficam em pânico, desorientadas, por causa do uso “desmesurado” de granadas de atordoamento. Na anterior manifestação, a de 28 de março, teve de assistir colegas seus — os voluntários ora acabam no fogo cruzado, ora usam os seus próprios corpos como escudo para proteger feridos. 

“A maioria dos agentes da polícia deixa-nos trabalhar e até nos respeitam, mas não é bom sinal se começarmos a ser alvos também”, avisa, acrescentando que compreende por que há quem chame às autoridades “forças de desordem”. “Já vi agentes da BRAV-M gasear gendarmes por engano”, declara, encolhendo os ombros. 

Mas os socorristas voluntários não correm apenas o risco de serem atingidos pela polícia. Alguns até são encarados como ameaças à segurança nacional. Numa das manifestações desde janeiro, um amigo socorrista de Elza foi detido e identificado, e “hoje é ficha S”. Elza não sabe se ela própria o é, mas diz que “não se espantaria” se for. “Muita gente é e não o sabe e há muitos socorristas ‘fichados’”, garante. 

Os “ficheiros S” são uma base de dados usada pelas autoridades francesas para categorizar e catalogar indivíduos considerados potenciais ameaças à segurança nacional. Inclui pessoas ligadas a grupos terroristas e extremistas e ao crime organizado, mas também ativistas ecologistas, membros de movimentos políticos de esquerda e, aparentemente, paramédicos e socorristas voluntários. O seu uso constante tem sido considerado um abuso de poder por parte do Estado francês, por cercear as liberdades civis de quem não cometeu qualquer crime e por a sua aplicação discriminar cidadãos com base na etnia, religião ou ideologia política.

Elza sente que o governo e as forças de segurança querem “fichar” toda a gente. Durante uma discussão com um agente da Polícia Nacional, enquanto tentava socorrer uma pessoa ferida à margem do cortejo de uma manifestação, este disse-lhe que “quem está numa manifestação deve ser considerado perigoso, porque se está a opor ao governo”. Assumindo que há, também, um uso abusivo da detenção sob custódia policial, Elza acha essa ideia ridícula: “Somos perigosos? Eu nunca disparei uma bala de borracha contra a cara de ninguém”. 

A violência policial contra manifestantes já é uma característica de como os governos sob a presidência de Macron lidam com a contestação social. Na sequência de uma lei de aumento dos combustíveis, em outubro de 2018, milhares de franceses saíram à rua em protesto, bloqueando estradas e organizando manifestações. Seguiu-se uma dura repressão policial e a contestação extravasou as suas razões iniciais para se transformar numa oposição generalizada à presidência de Macron e ao seu programa neoliberal. Milhares de manifestantes e centenas de polícias ficaram feridos ao longo de um ano de contestação ininterrupta, ainda que com altos e baixos, dos quais mais de 40 manifestantes perderam olhos na sequência de disparos de balas de borracha.

No conjunto dos fortes protestos que têm abalado a França este ano, o momento mais violento terá sido a repressão à tentativa de ocupação de uma colina em Sainte-Soline, na região da Aquitânia, no sudoeste do país, no final de março. Ecologistas, cientistas, anarquistas, agricultores, sindicalistas, professores, famílias inteiras e demais populares afetos à causa ecológica dirigiram-se até ao local onde está a ser construída uma mega-bacia de retenção de água retirada do subsolo. Num ato de desobediência civil, por estar interdito qualquer ajuntamento naquele local, foram protestar contra o que consideram ser um crime ecológico praticado em nome do lucro de grandes empresas de produção agrícola.

Era um sábado, 25 de março, e mais de três mil agentes das forças de autoridade foram destacados para impedir o acesso à mega-bacia e dispersar os protestos e a tentativa de ocupação. Os confrontos começaram pouco depois das 12 horas, quando os manifestantes tentaram avançar em direção ao local. Nas duas horas seguintes, as forças de autoridade dispararam mais de cinco mil granadas (de atordoamento e de gás lacrimogéneo) e várias viaturas da Gendarmerie foram incendiadas. 

Foram contados mais de 200 feridos entre os manifestantes, incluindo vários por tiros de bala de borracha, disparados por agentes da brigada móvel, que atiravam indiscriminadamente sobre as pessoas como se a colina da Sainte-Soline fosse uma coutada. Um dos manifestantes, Serge D., foi atingido na cabeça por uma granada de atordoamento. Esteve 32 dias em coma. No rescaldo dos acontecimentos, o ministro da Administração Interna, Gérald Darmanin, propôs a dissolução imediata de uma das associações ecologistas organizadoras da manifestação, a Soulèvements de la Terre, alegando tratar-se de uma organização extremista.

“Tenho colegas que testemunharam o que se passou em Sainte-Soline”, afirma Elza, referindo que muitos deles “foram impedidos de fazer o seu trabalho”. Segundo o jornal francês Le Monde, os próprios serviços de urgência, chamados ao local para assistir vários feridos graves, terão sido impedidos de lá chegar num primeiro momento. “Havia poucos socorristas para tantos feridos e um uso tremendo de granadas de atordoamento e projéteis de borracha”, explica. Foi um momento que, para Elza, significa um novo patamar no uso da violência que o ministro Darmanin considera “legítima”. Havia blacks blocs e manifestantes violentos, mas “toda a gente levou, até famílias que estavam lá no meio”. 

A tensão e os confrontos constantes dos últimos meses parecem estar a desgastar a moral tanto da população como dos polícias. Perante o aumento da violência policial nos protestos, muitos franceses dizem apoiar o movimento social alargado contra a reforma das pensões e a ação política de Macron, mas têm medo de sair de casa para se manifestar pelos seus direitos — os manifestantes dizem que é esse precisamente o objetivo da repressão policial.

"Há muitos polícias cansados, também”, nota Elza. “Não só estão fartos da violência, como estão a ficar doentes, porque levam repetidamente com o próprio gás que atiram às pessoas”. Essa preocupação específica já foi admitida pela própria polícia. Além disso, há três anos que as demissões de agentes e guardas da Police Nationale e da Gendarmerie não param de aumentar, quebrando recordes a cada ano.

Ainda que, aparentemente, a violência nas ruas não sirva àqueles diretamente envolvidos nela, essa tem sido a resposta — intensa e desproporcional — do governo e do chefe de Estado à contestação popular. Macron e Borne são acusados de não ouvir o povo nem ter qualquer intenção de o fazer, sequer através dos sindicatos. Entretanto, e enquanto falha a estratégia de “apaziguamento” do governo, o ministro Darmanin tem defendido a abordagem repressiva e autoritária das forças de autoridade e segurança. Apesar de críticas, tanto domésticas como internacionais, às ações violentas das polícias francesas, o governante repudia-as como mentiras, preferindo falar de um problema para a segurança nacional e para a manutenção da ordem chamado “extrema-esquerda”.

A retórica do ministro da Administração Interna tem tentado descredibilizar quaisquer atos de protesto, tomando a parte pelo todo e falando de radicais violentos e da destruição, de modo a enfraquecer o movimento social que já transbordou para lá da questão das reformas. Darmanin parece sentir a pressão da atenção que grupos de defesa de direitos e liberdades civis têm dado às práticas violentas com que as polícias têm reprimido os protestos.

As cargas policiais sobre manifestantes pacíficos, depois golpeados na cabeça e nos membros com cassetetes ou atingidos por gás-pimenta ou gás lacrimogéneo, são já costume e não uma exceção. Jornalistas queixam-se de serem alvo de violência e impedidos de fazer o seu trabalho, especialmente de filmar as ações ilegais das forças policiais. Cercos policiais a manifestantes pacíficos (chamadas de “nasses”, literalmente armadilhas), que depois são identificados e revistados, também são usuais, apesar de considerados ilegais. Há relatos de pessoas detidas arbitrariamente, espancadas, insultadas e vexadas pela polícia.

Uma iniciativa cidadã conseguiu, em abril, reunir mais de 260 mil assinaturas numa petição para extinguir a BRAV-M, a brigada motorizada de repressão de ações violentas, acusada de promover ações violentas. Se o número de assinaturas chegasse aos 500 mil, a petição levaria a uma discussão no parlamento francês, mas foi arquivada antes sequer da data limite de recolha de apoiantes, por "deslegitimar" as forças de segurança. 

Entretanto, as Nações Unidas, o Conselho da Europa e a Amnistia Internacional já denunciaram os visíveis abusos de poder das polícias francesas dos últimos quatro meses. Mas sem sucesso junto do governo francês. Na tarde de 3 de maio, segundo a FranceInfo, o governo francês admitiu tentar promulgar uma nova lei “anti-banditismo” que criminalizaria a construção de barricadas.

Ainda assim, Darmanin decidiu neste 1.º de Maio juntar à repressão policial novos aparelhos de vigilância de massas e permitiu o uso de drones para controlo de multidões e reconhecimento facial, na sequência de um decreto-lei aprovado em meados de abril. Segundo a legislação assinada por Gérald Darmanin, fica autorizado o uso de drones para “prevenir ataques à segurança das pessoas e da propriedade em locais expostos”, mas também para ajudar as forças de autoridade a “manter ou a repor a ordem”. Foi ainda aprovada para Paris, cidade anfitriã dos Jogos Olímpicos de 2024, a instalação de um sistema de vigilância com reconhecimento biométrico, a operar com recurso a inteligência artificial. 

A Amnistia Internacional avisou que França “corre o risco de se transformar permanentemente num Estado de vigilância distópico” e que tais “violações em larga escala” das liberdades civis podem espalhar-se para outros países europeus.

A EXTREMA-DIREITA À ESPREITA

À margem de toda esta confusão tem estado a extrema-direita parlamentar francesa, materializada no partido Rassemblement National (RN), casa de Marine Le Pen, e no seu novo líder Jordan Bardella. O também deputado europeu declarou há duas semanas que o seu partido está pronto para formar governo. Argumentou que seria um “pólo de estabilidade” em contraste com a “violência social do governo” e da “violência verbal” da esquerda, unida na coligação NUPES. As sondagens mostram que a extrema-direita está a lucrar com a crise democrática em França.

Uma sondagem do IFOP, publicada a 27 de março, revelou que, em caso de eleições legislativas antecipadas, o partido do presidente Macron e da primeira-ministra, Élisabeth Borne, o En Marche!, teria 22% dos votos, enquanto o RN conseguiria 26%, praticamente o mesmo que a NUPES. Em junho do ano passado, as sondagens davam uma intenção de voto no RN na casa dos 19%. Uma semana depois, uma sondagem da agência Elabe para a BFMTV calculou que caso a segunda volta das eleições presidenciais francesas de 2022 acontecesse hoje, Le Pen venceria com 55% dos votos. 

A tática de camuflagem do partido de extrema-direita perante a instabilidade social e política parece dar frutos. Nicolas Massol, jornalista do Libération, considera que este “método cómodo” permite ao RN “não se expor aos golpes” de um movimento social cujas causas e reivindicações o partido “não domina”. Ao nível local, os representantes eleitos tentam passar uma imagem “despolitizada”, uma mistura de “cortesia republicana, selfies e obras feitas”, como se fossem “assistentes sociais”, o que lhes permite aumentar a capilaridade autárquica e criar uma rede alargada de poder de base.

Se nas duas últimas presidenciais Macron apresentou-se como o último bastião contra a extrema-direita, chantageando a esquerda francesa, agora o chefe de Estado já não poderá candidatar-se a um terceiro mandato. Marine Le Pen, por sua vez, parece ter planos para entrar na corrida ao Palácio do Eliseu em 2027. É provável que o seu principal adversário seja Jean-Luc Mélenchon, líder do partido La France Insoumise, parte da coligação NUPES. Um terceiro possível candidato será Édouard Philippe, antigo primeiro-ministro de Macron entre 2017 e 2020 e hoje presidente da cidade de Havre. 

Se Macron joga desde 2017 com o medo da extrema-direita a seu favor, os seus mandatos de “extremo-centro”, marcados por um neoliberalismo autoritário e securitário, que dá borlas fiscais aos mais ricos enquanto erode os direitos laborais e reduz os subsídios aos mais pobres, podem estender a passadeira a Marine Le Pen. Mas as ideias e narrativas de extrema-direita também se tornaram parte do seu discurso mainstream, normalizando nos últimos anos a extrema-direita. 

Alguns ministros de Macron, como o já mencionado Darmanin ou o antigo ministro do Ensino Superior, Frédérique Vidal, apropriaram-se de alguns chavões (e dogwhistles) de extrema-direita, empregando expressões como “islamoesquerdismo” (que estaria a impregnar-se nas universidades francesas), “terrorismo intelectual de extrema-esquerda” (que estaria a tentar minar o governo, a lei e a ordem) ou simplesmente o adjetivo “selvagem” (que seria naquilo em que a nação francesa se estaria a tornar nestes tempos modernos). No ano passado, num debate televisivo, o próprio Darmanin criticou Le Pen por ser “demasiado branda” nas suas posições sobre a comunidade muçulmana no país.

A aproximação retórica à direita mais à direita, com a aplicação de leis de imigração discriminantes, um securitarismo rampante e uma retórica islamofóbica, a que se junta a aplicação da “violência legítima” do Estado de maneira desproporcional, dá a entender estar-se a caminhar para uma “crise de regime” em França. O presidente francês quis afastar-se de qualquer extremo, mas a prática macronista do poder só pode passar, na sua aplicabilidade, pela normalização de um certo grau de autoritarismo, com tendência a intensificar-se. 

Ao mesmo tempo, tem-se registado desde 2021 um crescimento dos ataques de grupos violentos de extrema-direita nas ruas. Nos últimos dois meses, foram diversos os ataques de grupelhos de extrema-direita a manifestações estudantis e bloqueios de universidades e liceus em várias cidades francesas. 

Em Paris, um grupo denominado Waffen-Assas (uma mistura entre Waffen SS e Assas, como é comummente conhecida a Universidade Panthéon-Assas) atacou um bloco estudantil à margem da manifestação de 23 de março. O grupo terá depois atacado o bloqueio da Universidade Panthéon-Sorbonne com cutelos, paus e barras de metal. Ataques de “juventudes fascistas” a ações de apoio ao movimento social contra a reforma das pensões aconteceram também em Lyon e Montpellier.

Xavier, estudante de História na Panthéon-Sorbonne, considera que estes grupos atacam os estudantes para “enfraquecer o movimento social”, como se fossem “satélites das vontades do governo e da violência da polícia”. Para o estudante de 22 anos, estes ataques e o silêncio “suspeito do Rassemblement National" não são por acaso. Existem ligações, mesmo que não sejam diretas: “este clima interessa às forças reacionárias”. 

As sondagens favoráveis a Marine Le Pen “alimentam a coragem” destes grupos, considera Louise, estudante de Ciência Política. “Mas eles não nascem sozinhos: há o desemprego, a pobreza e uma retórica nacionalista que atravessa o espetro político, de Zemmour até Mélenchon”. Os portões do Eliseu já estão “escancarados”, avisa, para a extrema-direita. “Darmanin colaborou com a Action Française [grupo de extrema-direita monarquista], já temos extrema-direita no poder”. Louise não compara Macron a Le Pen, mas crê que o presidente “está a fazer-lhe um grande favor”. Ainda assim, desabafa, “nem tudo está perdido”. Resta saber o que o “país dos direitos do homem” ainda tem a perder.

Imagens:  1 – A polícia francesa “cansada” marcha para a repressão e violência às ordens de Macron; 2 - A polícia francesa tem sido acusada por organizações de direitos humanos de violência policial contra os manifestantes | Teresa Suarez/EPA

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