quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Angola | Os Adoradores da Desgraça -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

No piquete da polícia estavam registados os mais palpitantes casos do dia. Os bombeiros também registavam todas as desgraças, desde incêndios a acidentes com mortos e estropiados. No banco do Hospital Maria Pia sabíamos dos feridos ligeiros e graves, quase todos em rixas e bebedeiras. Se as desgraças aconteciam na cidade de asfalto cada notícia rendia pelo menos cinco paus. Na morgue descobríamos os mais desgraçados. Algumas vítimas de crimes passionais davam, no mínimo, cinco manchetes seguidas.

Repórter informador diligente mas muito incompreendido era lixado e mal pago pelos patrões. Até que um dia Bobela Mota me convidou para trabalhar no boletim da poderosa Associação Comercial de Luanda. Pouco trabalho e grande salário. Obrigado Alfredo. Recebi o primeiro ordenado milionário e seguro. Chamei Ernesto Lara Filho, Álvaro Novais (Caixa de Fósforos) e Pedro Jara para comemorarmos nas cervejarias da cidade. Começámos na Biker e fechámos a loja no Baleizão. A meio da festa Mano Arnesto sentenciou: Em Luanda não se faz jornalismo, isto é um antro de fascistas e colonialistas. Vamos para Benguela amanhã. Fomos.

Bobela Mota nunca me perdoou o “abandono de serviço”. Eu também não. Desde então acumulava desgraças. Chamava por elas. Se não vinham, desgraçava-me eu. As pessoas próximas eram adeptas fervorosas deste clube. O Zé (ZAN) Andrade aprendeu muito de aviação. Era técnico da TAP e tinha um excelente salário. Foi atraído para a desgraça pela Armanda Catanhô. Eram namorados muito aconchegados, apaixonados, arrebatados. Casal perfeito.

O Zé Andrade pegou de namoro com outra colega. A Armanda descobriu e apanhou o casalinho, de mão dada, na esplanada da aerogare. Kavanza. Mialala. Mialala. Foi um escândalo tão grande que as meninas ficaram e o meu amigo despedido. Assediou duas colegas de trabalho! Desde então foi desgraçado até morrer. O ZAN é conhecido pelo seu trabalho de artistas plástico. Mas pela fé de quem sou vos digo que foi um dos maiores cronistas de Língua Portuguesa. O Rola da Sila chamava-lhe o Maravilhoso Zé Andrade. 

Também foi líder de um conjunto musical, Os Electrónicos. Grande músico! Fez contrato com uma boate na Praia dos Rotários. Muito dinheiro e bebidas por conta da casa. Eu fazia parte do grupo como “técnico de som”. Bebia mais do que os outros, porque não actuava. Sabem como acabou este paraíso? 

O Zé Andrade apaixonou-se por uma menina que fazia companhia aos clientes. Ela despia-se languidamente enquanto o conjunto fazia chorar os instrumentos. Um rapagão mexeu na dama, o músico poisou a guitarra eléctrica e atacou o mexedor. A mesa era de quatro. Quando os outros se levantaram entrei na maka triunfalmente à cabeçada e arrumei o cliente que, ao contrário de mim, pagava para beber. O pandemónio acabou com a intervenção da polícia e o conjunto musical foi despedido. O Zé Andrade chamava a desgraça. Se ela não vinha em passo de corrida ele desgraçava-se.

Quando morreu escrevi um texto de despedida. Uma crónica sofrida. A direcção do Jornal de Angola censurou o material. Não me permitiu a despedida do grande cronista.

E a Aurora? Ninguém chamava tanta desgraça como ela. Daquela mulher irradiava uma auréola de beleza nunca vista. Entrou na vida desprevenida porque várias desgraças a deixaram sozinha no mundo. Foi trabalhar no Rex mas tinha categoria de Tamar. Quando era desafiada para fazer umas porcarias estava sempre indisponível. O Rex tinha um trio. Ao piano o maestro Casal Ribeiro. O Jazzbandista era marreco. Solitário, sonolento, desengonçado. A Aurora (nós chamávamos-lhe Órora) apaixonou-se pelo Marreco e amigaram.

O baterista foi convidado para integrar o conjunto privativo da Dona Benvinda na cidade do Namibe. E ele não contou a ninguém. Foi à Mamã Cagalhoça e convidou a Jacinta para o acompanhar na viagem ao Sul. Nessa noite o trio virou duo e a Órora foi à polícia comunicar o desaparecimento do seu amado. Qual o quê! Ele fugiu e acompanhado. A nossa amiga vociferava: Aquele bandido traiu-me e com uma gentia da Cagalhoça! Não aceitava a realidade.  

O Marreco também foi traído. A sua Jacinta fugiu para o Tombwa com o dono de uma pescaria. Já afeiçoado à presença feminina no leito nupcial amigou com uma menina mucubal. A família deu-lhe de dote três vacas e um boi de cobertura. O baterista dormia durante o dia. A noiva descobriu as maravilhas da bebida e também curava as bebedeiras dormindo durante o dia. O gado estava abandonado à sua sorte. Aí veio a desgraça.

O baterista vendeu as vacas (uma já estava coberta) e o boi. Quando a família da noiva soube, avançou para o Namibe a fim de tirar desforço da traição. Ele conseguiu fugir de comboio para o Lubango onde tinha aberto uma boate. Não sabia que mucubal anda milhares de quilómetros por ano, a pé. Sobe do deserto às alturas da Lola e Quilengues à procura de água e pastagens. Os familiares da noiva subiram a serra e apareceram no Lubango. O Marreco escapou por pouco e fugiu para o Huambo. Arranjou trabalho na boate Kandumbo. 

O clima no planalto central é traiçoeiro e o jazzbandista ficou doente dos pulmões. O meu amigo Lotas levou-o a Luanda no seu carro, já ele respirava mal. Com os dois pulmões contaminados morreu. A Órora ia uma vez por semana cuspir-lhe na campa no Cemitério Novo. Mas ela também se desgraçou. Casou na Missão de São Paulo com um capitão da tropa que poucos meses depois levou um tiro na cabeça perto do rio Mbridge. Ela recebeu uma pensão de lágrimas, uma pensão de suor e uma pensão de sangue. Com tanto dinheiro abriu uma loja. O Kid Kindumba propôs-lhe um negócio milionário e ficou sem nada. Perdeu tudo. Chamou a desgraça. Desgraçou-se. 

O Marto Era um grande pianista. Mal acabou o liceu tocava piano nos antros nocturnos de Luanda. Esse só dormiu à noite em bebé e enquanto andou a estudar. Depois a noite era para tocar, beber e conviver. Aos domingos aparecia na explanada do São Jorge com a menina mais bela da boate onde tocava. Todos o invejavam. Marto o invejado. Um dia foi na canção da bandida. Uma secretária tradutora numa empresa inglesa deu-lhe a volta e o Marto foi com ela para Durban. Sabem o que aconteceu?

A noiva tinha um afiançado karkamano que levou a mal ter sido apeado pelo pianista noctívago. Começou a persegui-lo de tal maneira que fugiu da África do Sul para parte incerta. Nunca mais soubemos dele. O Marto chamou a desgraça. Voltou a chamar. Como ela não veio desgraçou-se com a tradutora. 

O Presidente João Lourenço faz-me lembrar o Zé Andrade, o Marto, o Jazzbandista e a Órora. Chama desgraça de manhã à noite. Se ela não vem é ele que se desgraça. Como o compreendo. Ninguém consegue melhor do que eu. Era jovem repórter informador e o meu inesquecível mano Gilberto Saraiva de Carvalho (Gigi) disse que tínhamos de lutar sob a bandeira do MPLA. Respondi assim: Eu sou libertário. Se cada ser humano puser uma bomba num congresso de milionários e matar um banqueiro não precisamos de partidos para nada. 

O Gigi era muito ortodoxo. Comunista de verdade. Chamou-me pequeno burguês de fachada radical e disse que em Angola não havia outra saída: Ou MPLA ou ao lado dos colonos fascistas. MPLA! MPLA! MPLA! Não estou arrependido mas continuo na minha. Despachar banqueiros e outros milionários não é tão difícil assim. Somos biliões e eles são poucos.

Camarada João Lourenço. Por favor. Como está sempre a chamar a desgraça e quando ela não vem célere vossa excelência desgraça-se, pelo menos fique como Presidente da República e deixe a liderança do partido. Temos na direcção grandes homens e mulheres com capacidade de liderança. Não desgrace o MPLA!

Se abdicar da liderança do MPLA, nas próximas eleições a UNITA leva uma tareia eleitoral tão grande que tem de se associar à FNLA e ao PRS para conseguir um grupo parlamentar. É fatal como o destino. Chame a desgraça, grite por ela. Se não vier desgrace-se vossa excelência, mas não destrua o MPLA. Nunca se esqueça que há sempre uma Órora pronta para cuspir na campa de quem a desgraça. 

*Jornalista

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