segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

As Bases da Guerra Suja Contra Angola -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Documentos secretos dos racistas da África do Sul aos quais tive acesso, serviram de fontes à reportagem que hoje partilho, porque é tempo de por os pontos nos “is” e os traços nos “tês”. A UNITA, partido que lidera a Oposição, tem um passado tenebroso, desde que combateu ao lado dos colonialistas contra a Independência Nacional, na Frente Leste. Mais grave foi alinhar com os independentistas brancos em Maio de 1974, nos esquadrões da morte. Gravíssimo e imperdoável foi  o seu líder ter assinado o Acordo de Bicesse e apenas cinco dias depois esconder 20.000 homens e as suas melhores armas, em bases secretas no Cuando Cubango.

A UNITA secou tudo à sua volta. O deserto já chegou ao MPLA. Faltam pouco para Angola ser uma democracia sem organizações politicas e partidárias. Hoje a Oposição é liderada por dois partidos que tiveram de se coligar, para formarem um Grupo Parlamentar, FNLA/PRS. Registaram em 2022 uma votação residual. Da FNLA já nada há a dizer. O PRS, nas eleições de 2012, fez um discurso racista, xenófobo, tribalista e homofóbico. É a sua marca. O partido da Oposição sem mácula é o Humanista. Votação residual. 

O MPLA foi levado por João Lourenço para o covil do estado terrorista mais perigoso do mundo, outrora chafurdado pela UNITA de Jonas Savimbi. Nesse tempo e apenas cinco dias após a assinatura do Acordo de Bicesse, obedecendo a ordens dos restos do regime de apartheid e dos EUA, os sicários do Galo Negro aceitaram alinhar numa conspiração para tomarem o poder pela força. Aí vão os pormenores, chancelados por documentos aos quais tive acesso fornecidos por “arrependidos” do regime racista de Pretória.

Isaías Samakuva, na época tratado por “coronel” e Abílio Camalata Numa alcunhado de “brigadeiro” pelos dirigentes racistas sul-africanos, foram executores da operação que consistiu em esconder 20.000 soldados da UNITA, para o partido tomar o poder pela força, caso Savimbi perdesse as eleições de 1992 como perdeu estrondosamente. As instruções foram dadas pelo chefe do Estado-Maior da Inteligência Militar da África do Sul, comandante De la Ray.

Abílio Camalata Numa, antigo deputado e general na reforma, colocou-se às ordens dos restos dos racistas e do estado terrorista mais perigoso do mundo (EUA). Tinha mais peso do que Samakuva porque era apresentado como “cunhado” de Savimbi. O documento, classificado de “secreto”, foi emitido no dia 5 de Junho de 1991, apenas cinco dias depois da assinatura do Acordo de Bicesse, a 31 de Maio.

O comandante De la Ray mandou uma cópia das ordens para o chefe das Forças de Defesa e Segurança (SADF), general Geldenhuys, um dos oficiais do regime de apartheid que assinou a capitulação nos Acordos de Nova Iorque, depois da derrota no Triângulo do Tumpo, à vista do Cuito Cuanavale. 

A mensagem secreta foi também enviada ao chefe dos Serviços de Combate e ao chefe da Logística sul-africanos, para garantir abastecimentos aos 20.000 soldados, aquartelados em bases no Cuando Cubango, em locais entre as fronteiras da Zâmbia e da Namíbia.

A ordem de operações enviada a Isaías Samakuva e a Abílio Camalata Numa, é detalhada. O comandante sul-africano de La Ray diz aos dois dirigentes da UNITA que foi autorizada a “transferência urgente de 20.000 tropas da UNITA para o Sul”. O Chefe do Estado-Maior da Inteligência Militar de Pretória indicou as bases na mensagem secreta: “Girafa, Palanca, Tigre e Licua, cerca de sete mil homens em cada uma”. 

A ordem à UNITA tinha um detalhe: “escolher os melhores comandantes”. Numa e Samakuva obedeceram, sem qualquer hesitação. O comandante De la Ray, na sua mensagem secreta, mandou também transferir para aquelas bases “todas as antiaéreas, incluindo os mísseis Stinger”. Também esta ordem foi cumprida por Samakuva e Numa. 

A parte final da mensagem secreta do chefe do Estado-Maior da Inteligência Militar sul-africana ordenava a transferência para as bases Girafa, Palanca, Tigre e Licua, de “todas as armas pesadas”. O que foi também integralmente cumprido por Samakuva e Numa.

A Inteligência Militar de Pretória, apoiada pela CIA e o Pentágono, continuava a fomentar a guerra suja da UNITA, mesmo depois dos Acordos de Nova Iorque. Adalberto da Costa Júnior revelou na época  algo que torna este comportamento normal: “em 1995, Jonas Savimbi recebeu um importante convite para visitar a África do Sul, dirigido por Nelson Mandela, então Presidente da República. Nelson Mandela recebeu o Dr. Savimbi e a sua delegação na sua aldeia natal, em Qunu, dia 17 de Maio de 1995. Os africanos sabem o que significa receber alguém na sua própria aldeia”. 

O autor desta afirmação tem pouca credibilidade, mas se é verdadeira, está explicado o envolvimento da Inteligência Militar da África do Sul, na preparação da guerra depois das eleições de 1992, nas quais a UNITA foi estrondosamente derrotada. O acto eleitoral foi blindado e as eleições fiscalizadas pela ONU e pela Troika de Observadores, o que tornava impossível qualquer fraude. Informações credíveis dão conta que Nelson Mandela mandou Savimbi parar com a guerra e aconselhou-o a respeitar os resultados eleitorais. 

Primeira Tentativa de Golpe

Jonas Savimbi e os seus homens nunca tiveram a intenção de respeitar o Acordo de Bicesse. Por isso, logo no dia 5 de Junho foi montada a operação de esconder 20.000 homens em bases secretas do Sudeste de Angola. Quando o comandante De la Ray, Samakuva e Numa concluíram a operação, estavam criadas as condições para a UNITA tomar o poder através de um golpe militar. Sean Cleary foi um dos mentores deste projecto, como é amplamente demonstrado em documentação que constava nos arquivos de Savimbi, abandonados no Andulo, Chitunda, abandonados na delegação de São Paulo, em 1992, e do partido.

A primeira tentativa de golpe militar foi proposta por Savimbi ao subsecretário de Estado Herman Cohen, na sua casa do Miramar, em Luanda. Mas o criminoso de guerra foi surpreendido com a recusa do político norte-americano, que insistiu na necessidade de serem realizadas as eleições e respeitados os seus resultados. 

Savimbi argumentou: “As FAA não existem e o Governo está desarmado. Eu tenho tropa para tomar o poder, as eleições não interessam nada”. Herman Cohen recusou. Exigiu que a UNITA respeitasse o que estava acordado. Mas a direcção da UNITA fez outras tentativas de impedir as eleições para tomar o poder pela força. Estão registadas documentalmente e foram recusadas pela representante do Secretário-Geral da ONU em Angola, Margareth Anstee, pelos membros do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) e por quase todos os partidos concorrentes. 

Curiosamente, o partido dos golpistas de 27 de Maio de 1977 (PRD) reforçado com o padre Joaquim Pinto de Andrade, mais a Frente para a Democracia (FpD),  alinharam na golpada e foram ao beija-mão a Jonas Savimbi no Huambo!

Denúncia de Tony e Puna

Nzau Puna e Tony da Costa Fernandes abandonaram a UNITA em conflito directo com Savimbi. E eram fundadores do partido! O assassinato de figuras importantes do movimento ditou o divórcio. Jorge Sangumba, padre Camilo Cangombe, a família Chingunji, quase toda dizimada, António Vakulukuta, Wilson dos Santos e tantos outros provocaram a cisão.

Tony e Puna já não estavam nos segredos da organização. Mas souberam que a UNITA tinha escondido um grande exército e armamento, para tomar o poder pela força caso perdesse as eleições. Margareth Anstee foi apanhada de surpresa. E garantiu que a ONU ia investigar se a denúncia dos dois generais de Savimbi eram verdadeiras. Poucos dias depois saiu o veredicto: Não há indícios de existência de tropas escondidas em Angola! Mas existiam 20.000 homens, entre eles os melhores comandantes, que dispunham de antiaéreas incluindo mísseis Stinger e armas pesadas. E não tardou a chegar a segunda tentativa de golpe militar.

Isaías Samakuva concluiu a operação secreta e partiu para outras missões, no estrangeiro. Abílio Camalata Numa ficou e acabou por ser uma peça importante nos acontecimentos que se seguiram. Houve um momento em que a tensão era tal que foi colocada ao Conselho Nacional Eleitoral, presidido por Onofre Martins dos Santos, a hipótese de um adiamento das eleições.

Os membros daquele órgão assumiram as suas responsabilidades e decidiram prosseguir com o processo eleitoral. Onde a UNITA não permitiu a presença de delegados dos outros partidos, as eleições faziam-se na mesma. Um avião ao serviço do CNE foi atacado pelos sicários do Galo Negro  na província do Uíge. Noutros locais os funcionários da instituição eram impedidos de trabalhar. Mas houve mesmo eleições em 29 e 30 de Setembro de 1992. O segundo golpe foi então posto em marcha.

Acordo de Bicesse Rasgado

No dia 31 de Maio de 1991 a UNITA assinou o Acordo de Bicesse. No momento em que o Presidente José Eduardo dos Santos estendia a mão a Savimbi, o comandante De la Ray tratava de esconder 20.000 militares do Galo Negro nas bases “Girafa”, “Palanca”, “Tigre” e “Licua”. Para os “acantonamentos” foram soldados que nunca fizeram a guerra e as armas eram obsoletas. No dia 5 de Junho, com a mensagem secreta do Chefe do Estado-Maior da Inteligência Militar da África do Sul, Isaías Samakuva e Abílio Numa começaram a rasgar o acordo. Mais uma vez, a UNITA fugia das eleições. Fez o mesmo em 1975 com o Acordo de Alvor. Não é e nunca  será uma organização fiável.

Apesar das demonstrações de força em Luanda e noutras cidades do país, a UNITA não conseguiu travar o processo eleitoral. O Bairro do Miramar estava sitiado por “comandos” da UNITA que nem sequer respeitavam diplomatas e membros do Governo que habitavam a zona. Existia uma efectiva ocupação militar dos centros urbanos, patrulhados por tropas armadas até aos dentes, transportadas nas famosas “GMC”, simpática oferta do estado terrorista mais perigoso do mundo (EUA). Mas nos dias 29 e 30 de Setembro houve mesmo eleições e os eleitores falaram alto.

O MPLA venceu com maioria absoluta. A UNITA disse que houve fraude, usurpando o papel dos árbitros que eram a ONU e a Troika de Observadores (Portugal, Rússia e EUA).
Savimbi decidiu ser ao mesmo tempo jogador e árbitro. Quando em nome da comunidade internacional Margareth Anstee proclamou os resultados eleitorais e considerou as eleições “transparentes, livres e justas”, Savimbi partiu para a guerra. 

Salupeto Pena, Ben-Ben, Jeremias Chitunda, Abel Chivukuvuku, Alicerces Mango e outros altos dirigentes da UNITA lançaram novo golpe militar em Luanda. Foram derrotados pelos angolanos. Primeiro, nas urnas de voto. Depois durante os combates nas ruas da capital e outros centros urbanos. O Acordo de Bicesse foi reduzido a cinzas e ensopado com o sangue de milhares de angolanos.
 
A base de Licua

Uma das bases onde foram escondidos os militares da UNITA era a de Licua. No Cuando Cubango há uma aldeia Licua, entre Luengue e Dirico. Há outra aldeia Licua entre Mavengue e Lumeia, na estrada para Xamavera. 

A Licua da operação secreta foi inventada pela Inteligência Militar da África do Sul. Fica na confluência dos rios Luengue e Lumuna, na reserva do Mucusso. Tem as seguintes coordenadas: Latitude, 17 graus e um segundo Sul. Longitude, 21 graus e 17 segundos Este.

As outras bases que serviram para pulverizar o Acordo de Bicesse, estavam localizadas algures entre a fronteira da Zâmbia e da Namíbia, no Sudeste de Angola, mas longe da Jamba para não levantar suspeitas. 

A guerra depois das eleições de Setembro de 1992 foi da exclusiva responsabilidade da UNITA, Jonas Savimbi e seus sicários. A traição, o golpismo e a sedição não se negoceiam, são simplesmente intoleráveis. A UNITA perdeu em todas as frentes. Continua activa para esvaziar o regime democrático. Nessa empreitada tem um aliado de peso: João Lourenço na versão amigo do estado terrorista mais perigoso do mundo. Mas o MPLA vai resistir e, mais uma vez, triunfar.

* Jornalista

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