quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

ESTÁ ESCRITO EM ACTA - Pretória Reconheceu Vitória de Angola – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O Presidente da África do Sul, PW Botha, convocou para o dia 28 de Agosto de 1988 uma reunião classificada como ultra secreta para tomar decisões de Estado sobre a derrota das forças armadas de defesa e segurança no Triângulo do Tumpo.

Estavam presentes os mais altos dirigentes sul-africanos e tomaram uma decisão dolorosa: Acabar com o regime de apartheid e acatar a Resolução 435 da ONU sobre a Independência da Namíbia.

O documento secreto ao qual tive acesso tem poucas palavras, mas são significativas. Volto a revelar a “Acta da Derrota” em homenagem aos heroicos combatentes que libertaram África do odioso regime de apartheid. E particularmente aos comandantes das forças, Generais José Domingos Baptista (Ngueto) e, Fernando Amândio Mateus (Nando Cuito), na época majores. E os capitães que comandavam as brigadas: Maximiliano, Zenzeca, Incendiário, Kiluange, Keba, Sacudido, Ngueleca, Kambiçula e o recentemente falecido Valeriano.

Na reunião de alto nível estiveram presentes além do Presidente da República PW Botha, o ministro da Defesa, general Magnus Malan, o ministro das Relações Exteriores, Pik Rudolf Botha, o general Jannie Geldenhuys, o major-general Neil Van Tonder e o major-general Kat Liebenberg. Todos os derrotados no Triângulo do Tumpo.

A agenda da reunião tinha quatro pontos: Fracasso na tomada do Cuito Cuanavale (número um), fracasso na tomada da aldeia do Tumpo (número dois), material de guerra capturado pelo inimigo (número três) e as baixas em combate (número quatro). 

Uma correcção. Na “Acta da Derrota” é feita referência à “aldeia do Tumpo”. Na verdade é a aldeia de Samaria que fica no alto de uma colina sobranceira à grande chana do Tumpo, que baptizei de triângulo porque naquela imensa planície correm os rios Tumpo, Dala e Cuanavale.

O secretário da reunião escreveu na acta que o Presidente da República, usando os seus poderes constitucionais decidiu “desmobilizar a 82ª Brigada e o 61º Batalhão Mecanizado, que foram formados para a Batalha do Tumpo”. 

O momento mais importante da reunião estava para vir. A acta refere taxativamente: “O ministro da Defesa, genral Magnus Malan, e o general Geldenhuys, assumem aqui a total responsabilidade da derrota”. Está escrito!

A acta da reunião ultra secreta revela outro aspecto dramático para o regime de apartheid mas bom para a África Austral e o mundo civilizado: “Dadas as consequências da derrota no Cuito Cuanavale, o Governo da África do Sul foi obrigado a aceitar a Resolução 435 da ONU sobre a Independência da Namíbia”. PW Botha e os seus pares reconheceram naquele momento que a Batalha do Cuito Cuanavale os deixou de tal forma vulneráveis, que foram obrigados a abrir mão da sua colónia.

Libertação de Mandela

A acta da reunião datada de 28 de Agosto de 1988 (já lá vão 35 anos) revela um detalhe fundamental para compreender o alcance político da vitória das FAPLA na Batalha do Cuito Cuanavale. O Presidente PW Botha, mais uma vez invocando os seus poderes constitucionais “delegou no Dr. Neil Barnard, Chefe da Inteligência Nacional, para preparar negociações com Nelson Mandela e providenciar a sua libertação”.

Os grandes chefes do regime de apartheid perceberam que a derrota no Triângulo do Tumpo era o fim do regime e tinham que agir rapidamente para não perderem tudo. Por isso, correram a abrir as portas da prisão domiciliária onde se encontrava Nelson Mandela. 

Em Angola estavam combatentes do ANC, prontos para “explorar o sucesso” da derrota das Forças de Defesa e Segurança da África do Sul na Batalha do Cuito Cuanavale.

A acta secreta entra, a seguir a este ponto, nas justificações para a derrota no Triângulo do Tumpo. Primeira justificação descrita no documento: “todos os ataques para desalojar as FAPLA do seu último reduto, fracassaram”.

Mais uma justificação: “todos os ataques a Este do rio Cuito (Tumpo) também falharam. A partir daí, o Alto Comando das SADF convenceu-se de que só era possível destruir o inimigo introduzindo forças massivas o que ia implicar pesadas perdas de vidas sul-africanas. Politicamente isso era inaceitável”. Perdão pela crueza da linguagem. Estavam a morrer muitos jovens loiros de olhos azuis que falavam afrikâner. E a partir de Março de 1988 os homens de Ngueto e Nando Cuito iam fazer uma razia maior.

PW Botha e os seus generais foram forçados a reconhecer a derrota. Abílio Camalata Numa, Paulo Lukamba (Gato) e outros sicários da UNITA dizem que a Batalha do Cuito Cuanavale “está mal contada”. Que apresentem uma versão diferente desta que está escrita na acta secreta da reunião de 28 de Agosto de 1988, no gabinete do Presidente PW Botha.

Os assuntos tratados na reunião eram de tal forma melindrosos que PW Botha obrigou todos os presentes a assinar a acta. O documento foi de facto assinado em primeiro lugar pelo Presidente PW Botha, a seguir assinaram Magnus Malan, Pik Rudolf Botha, Jannie Geldenhuys, Neil Van Tonder e Kat Liebenberg. 

Nada nem ninguém pode contar a Batalha do Cuito Cuanavale, melhor do que uma acta oficial, secreta, à qual tive acesso, com o respectivo anexo. Para se sentirem moralizados, os grandes chefes do apartheid dão a eles próprios um motivo de ânimo: “As três derrotas no Tumpo foram as únicas sofridas pela África do Sul na guerra em Angola”. Esqueceram o fracasso da “Operação Protéa”, que bateu contra a parede na Cahama. Também esqueceram as pesadas derrotas no Luena, no Ebo e no Morro da Cal. Artilheiros sul-africanos estavam lá. Foram intervenientes directos na Batalha de Kifangondo. Fugiram com o rabo entre as pernas, primeiro do que os oficiais da CIA e os mercenários.

O final da acta tem uma dimensão grotesca e mostra a situação do Presidente PW Botha: “Eu fui mal informado sobre a situação no Tumpo e por isso obrigo todos os presentes a assinarem a acta desta reunião”. 

Directiva Política

Além da acta, a reunião de 28 de Agosto de 1988 produziu uma “Directiva Política” que só por si confirma a estrondosa derrota das forças do apartheid no Triângulo do Tumpo. Eu tive acesso ao documento que significa a liquidação do apartheid (sorte do repórter…). 

“Directiva Política Urgente para o Gabinete do Presidente. Directiva Política das SADF” É assim que se intitula o documento ao qual tivemos acesso e serve de base a esta peça. Contém várias decisões, ponto por ponto. 

Primeiro ponto. “O Tribunal Militar deliberou em relação às responsabilidades assumidas antes, durante e depois das operações militares ‘Hooper’ e ‘Packer’ na Região do Tumpo, expulsar a partir da data efectiva de 28 de Agosto de 1988, os oficiais Mike Muller, Gerhard Louw e Cassie Schoeman”. 

Recordo que Mike Muller foi o comandante sul-africano que afirmou: “se tomo o Tumpo vou direito ao Cuito Cuanavale”. Foi derrotado.

Segundo ponto. “Os seguintes oficiais foram despromovidos na Parada Militar e transferidos para o Quartel-General de Pretória: Jan Malan e Koos Lienbenberg”.

Terceiro ponto. “Origem e data. Tribunal Militar MC/302/5B. Data 28/8/88”. 

Desta directiva política foram enviadas cópias para a Autoridade Controladora do Tribunal Militar Principal, Chefe do Exército, Chefe do Estado-Maior das Operações, Chefe da Força Aérea, General Cirurgião, Chefe do Estado-Maior da Inteligência, General Capelão e Chefe do Estado-Maior das Divisões. O documento é assinado pelo ministro da Degfesa Magnus Malan. 

No dia 28/8/1988, após a reunião ultra secreta onde foi reconhecida a derrota em Angola, os chefes do apartheid arranjaram logo bodes expiatórios para o fracasso no Triângulo do Tumpo.

Os Mísseis de Reagan

Um ano antes da reunião ultra secreta a cuja acta tive acesso, no dia 28 de Agosto de 1987, o poderoso general Jannie Geldenhuys chamou Savimbi à sua presença e disse-lhe que precisava dos mísseis Stinger que o Presidente Reagan lhe tinha dado.

Este episódio vem descrito com muitos pormenores no livro “Guerra em Angola” de autoria do analista militar sul-africano Helmoed Roemer Heitman. Ele revela que o general Geldenhuys chamou Savimbi “para actualizá-lo” e de seguida disse-lhe que precisava dos seus mísseis Stinger para proteger os canhões G5 na guerra de Angola.

O Presidente Reagan sabia que ao dar os mísseis a Savimbi estava a colocá-los nas mãos dos sul-africanos, mas assim não podia ser acusado de violar as sanções impostas pela comunidade internacional ao regime de apartheid. Claro que Savimbi obedeceu de imediato às ordens do general racista. Na página 43 do livro, está descrito o encontro entre ambos. Quem tiver dúvidas, leia o livro de Helmoed Roemer Heitman intitulado “Guerra em Angola”. Leiam estas partes:

 “Não alcançámos os nossos objectivos porque das tropas da UNITA já tinham entrado em desespero, face ao avanço das FAPLA, provocando o nosso retrocesso de forma ordeira, até ao Triângulo do Tumpo, onde montámos um sistema de defesa muito bem organizado”.  

E prossegue: “Nas primeiras horas do dia 23 de Março de 1988, quando as nossas tropas, auxiliadas por dezenas de batalhões da UNITA, pensavam que a tomada da vila do Cuito Cuanavale era apenas uma questão de minutos, foram surpreendidas pelo poder de fogo das FAPLA que descarregaram centenas de obuses dos canhões D-30, 130 milímetros e do lança-foguetes múltiplos BM-21, além dos tanques e de outro material bélico”.

A Força Aérea Nacional, com os caças-bombardeiros S-22, Mig-23, 21 e os helicópteros MI-17, 8 e 35, foi determinante, ao infligir golpes demolidores aos invasores, que deixaram no terreno baixas humanas consideráveis e material bélico.

O tenente-general António Valeriano, sepultado sábado na Caála, participou nos combates. Sobre estes acontecimentos históricos, disse:  “O segredo da vitória esteve na qualidade ofensiva e no patriotismo das nossas tropas, pois estavam em número bastante reduzido”. 

O General Valeriano defendeu na época que, apesar das condições do país, “urge que o Governo dê mais valor aos antigos combatentes e veteranos da pátria, que muito fizeram para que Angola se tornasse independente”. Não foi ouvido.

O heroico combatente sublinhou que a população da aldeia de Samaria e as chanas dos rios Cuito e Cuanavale foram cruciais para a vitórias das FAPLA. Esta parte não está escrita na “Acta da Derrota”. 

Do Tumpo a Nova Iorque foi um instante mas que deu muito trabalho político e diplomático.

Honra e Glória aos Heróis da Batalha do Cuito Cuanavale!

*Jornalista

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