domingo, 10 de dezembro de 2023

Portugal | Pedidos, cunhas e corrupção

Eduardo Barroso* | Diário de Notícias | opinião

Devo ter recebido centenas de pedidos durante as décadas em que fui responsável por um dos maiores Serviços de Cirurgia do País, que incluía uma grande Unidade de Transplantação. Pedidos vindos das mais variadas pessoas, desde colegas, amigos, políticos, jornalistas, artistas, empresários, dirigentes desportivos, escritores e muitos mais. Pedidos para receber mais cedo nas consultas, operar e até transplantar mais depressa, mas também para facilitar em exames e concursos. Muitos destes pedidos, a serem contemplados, tinham contrapartidas, algumas devo dizer bem significativas.

Sempre soube distinguir os pedidos feitos por compaixão e genuíno desinteresse, daqueles que até podiam compaginar casos de verdadeira tentativa de corrupção. Alguns destes pedidos eram legítimos e até comoventes, e mereceram-me atenção especial. A minha querida tia Juginha, quando foi primeira-dama e recebia em Belém os mais desesperados pedidos de ajuda, era uma cliente de primeira. "Meu querido, tens no teu hospital internada uma senhora muito humilde da Fuseta (terra onde ela e a minha mãe nasceram), vê se a podes ajudar, e tratar rapidamente - os filhos estão muito aflitos." Nunca deixei de a tranquilizar, nunca ela quis com esses pedidos prejudicar ninguém, resultavam da sua genuína compaixão. Eu ia sempre ver esses doentes e informá-los do seu interesse; como também nunca esses apelos sinceros e desinteressados me fizeram alterar planos já traçados e definidos. Em meia-dúzia de casos, tentaram corromper-me, fingia não perceber, nunca os denunciei, mas nunca os contemplei. Só uma única vez estive quase a fazê-lo, tão escandalosa, ofensiva e despudorada foi a proposta, mas decidi apenas ignorá-la. Tenho a noção de ter exercido os meus pequenos poderes de médico, de uma maneira correta, e as vezes em que tenho a noção de ter infringido algumas regras, fi-lo por iniciativa própria, consciente de que tinha o direito de o fazer. Operei por exemplo no SNS, as mulheres dos meus chefes em situações graves, e obviamente atendi-as fora das consultas normais, não as coloquei em listas de espera, arranjei-lhes os melhores quartos, e até autorizei os maridos a visitá-las a qualquer hora. Nenhum dos meus queridos chefes, já reformados nessa altura, me pediu qualquer tratamento de favor, a iniciativa partiu de mim, e acho que me limitei a demonstrar-lhes a minha amizade, consideração, respeito e gratidão.

Nenhum medicamento ministrado num hospital do SNS a qualquer doente, independentemente do preço, pode ser prescrito por um não-médico. É, portanto, muito fácil saber quem o prescreveu: essa ordem está no processo clínico bem identificada. Acho que nos últimos 20 anos em que fui director de serviço, nunca o meu nome apareceu em qualquer processo clínico como prescritor. Alguém o fazia no computador sob as minhas ordens, sobretudo os internos tutelados, mas sempre sob a minha inteira responsabilidade. No meu serviço, para todos os efeitos, o responsável máximo por qualquer prescrição medicamentosa, das mais baratas, às mais caras, sempre fui eu.

Alguém acredita que um médico director de um serviço do SNS, possa argumentar que prescreveu um medicamento a um qualquer doente sob a sua responsabilidade clínica, contra a sua vontade ou, ainda pior, sabendo que não havia indicação, porque recebeu uma ordem de um superior hierárquico, mesmo que fosse o director clínico do hospital? Ou, ainda pior, de um superior hierárquico mesmo que fosse o Presidente do conselho de administração? Ou, ainda pior, de um qualquer secretário de Estado ou mesmo de um ministro da Saúde? Alguma vez eu poderia dizer que prescrevi um qualquer medicamento sem indicação porque alguém me obrigou a fazê-lo? Ou que o prescrevi a um doente sabendo que havia outros que, sendo prioritários, eu deixava para trás? Poderia eu aceitar ceder a esse tipo de ordem ou mesmo apenas pressão? Claro que não! Eu teria, obviamente, de não o fazer e denunciar imediatamente essa pressão ou essa ordem ilegítima à Ordem dos Médicos. Alguma vez eu poderia aceitar que alguém, por mais poderoso que fosse, me obrigasse a transplantar um fígado a um doente que não estivesse prioritário na nossa lista de espera? Esse pedido, essa ordem, ou apenas essa pressão até poderia existir, mas se eu a aceitasse, era eu o único responsável. Merecia ser expulso da Ordem dos Médicos, independentemente do que acontecesse a quem se provasse ter feito essa pressão.

Não resisto a contar uma história passada no nosso grupo, na altura dirigido pelo meu querido chefe João Pena. Havia um nosso doente à espera há anos por um transplante renal, porque pertencia a um grupo sanguíneo raro e tinha muitos anticorpos, o que fazia com que, até essa altura, nunca os computadores do Centro de Histocompatibilidade, o tivessem seleccionado para receber qualquer rim. Certo dia, apareceram no serviço, um grupo de familiares que pediram para falar com o Dr. Pena. A conversa acabou com uma proposta concreta, estavam dispostos a dar-nos cinco mil contos se transplantássemos o seu familiar. O Dr. Pena, explicou-lhes que não era bonito o que nos propunham, mas ao mesmo tempo explicou-lhes novamente a razão por que, até essa altura, nunca houvera um rim compatível. E não deixou de lhes explicar, que a selecção dos doentes era feita sempre por computador, face às análises do plasma do dador e do potencial receptor. E que essa análise não era feita por nós, mas pelo tal laboratório, a quem enviávamos sempre o sangue colhido no dador e que tinham na sua posse sangue de todos os doentes em lista de espera. Depois de me contar esse episódio, obviamente uma tentativa de corrupção, decidimos não fazer queixa dessa tentativa, que não era senão afinal o desespero de uma família angustiada.

Acontece que uns dias depois desta conversa que ficou apenas entre nós, apareceu finalmente um rim compatível e o doente foi transplantado com sucesso. A feliz coincidência podia-nos ter saído muito cara, porque o pai do doente apareceu no hospital desesperado, porque ainda não tinha tido a possibilidade de reunir os cinco mil contos prometidos. João Pena bem lhes explicou que não precisavam de pagar nada, tinha apenas sido uma inconcebível e feliz coincidência. Mas foi muito difícil convencê-lo, estava decidido a cumprir a sua promessa. Isto passou-se há muitos anos e não teve quaisquer consequências. Mas imaginemos os dias de hoje, o pesadelo por que teríamos passado se se têm dirigido a uma qualquer televisão a denunciar-nos que, após a promessa dos milhares, nós tínhamos finalmente arranjado o rim salvador. Apesar de não terem obviamente pago nada, ficamos sempre convencidos que não acreditaram, e que nos consideraram corruptos. E se têm aparecido com o dinheiro? Hoje faz-me sorrir contar esta história. Na altura, embora de consciência completamente tranquila, tememos as consequências que esta incrível coincidência, mal e precipitadamente contada, poderia ter tido para todos os programas de transplantação do nosso país.

* Cirurgião

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