<> Artur Queiroz*, Luanda
Hoje é um marco especial do Março Mulher. Dia de todas as mulheres do mundo. As angolanas têm um lugar único nos nossos corações. Tudo o que conquistámos até agora, só foi possível pela acção directa das mulheres angolanas. Sem elas, nada feito. Por isso quero saudar todas as mulheres do mundo nas figuras de Esperança da Costa, Vice-presidente da República, Carolina Cerqueira, Presidente da Assembleia Nacional (Casa da Democracia), Mara Quiosa, Vice-Presidente do MPLA, e Florbela Malaquias, Presidente do Partido Humanista. Uma saudação especial à rainha Nyakatolo Tchilombo Ngambo (Ana Bela) que no mosaico cultural e social de Angola representa o que resta do matriarcado.
Nzola era uma menina bailarina que comparecia todos os sábados à noite nas farras do Candombe. Muita música, muita animação, muita alegria. Eu estava internado num colégio e frequentava o segundo ciclo do ensino liceal. Quando todos recolhiam às camaratas e apagavam a luz, a turma do Negage saltava da janela para o quintal e na liberdade da noite corríamos para o bairro mais populoso do Uíje, a cidade do café, do Sardinha, do Miala e dos manos Vitória Pereira (Rui e Milo), reis do futebol. Sardinha, Milo e Rui jogavam no “Porto”. Miala no Recreativo, que equipava à Sporting. Lá no Negage, o Desportivo era Benfica.
O gramofone despejava muita música brasileira, desde xaxados e baiões aos sambas de enredo, dançados di lento, corpo contra corpo, caras coladinhas. A meio da noite entrava em cena um conjunto que abria com a trepidante música dos congoleses. O buffet vendia sandes de chouriço e bebidas frescas. As garrafas de cerveja eram de litro.
A dançarina Nzola dava nas vistas. Eu passava mais tempo a vê-la dançar do que dançando. Até que um dia enchi-me de coragem e fui fazer-lhe uma vénia: A menina dança? Ela disse que sim. Quando regressámos ao internato ainda estava a ver estrelas e sentia o seu perfume. Nessa semana passei as enfadonhas “salas de estudo” a escrever poemas de amor. No sábado seguinte corri para a dançarina e ofereci-lhe os papéis. Dançámos toda a noite. Mais uma semana de poesia. E no sábado perguntei-lhe: Leste os poemas?
Ela com uma voz impregnada de tristeza respondeu: Eu não sei ler…
Travei uma discussão feia com o poeta. E concluí que ele era um inútil. Incapaz de escrever para quem não sabe ler. Nunca se revoltou contra os promotores do analfabetismo. Cortámos relações e nunca mais o levei às farras do Candombe.15 de Março 1961, dia da Grande Insurreição no Norte de Angola. Os ricaços do café, com Ferreira Lima à cabeça, amigo de Ngola Kabangu, criaram as milícias armadas. Para se vingarem dos massacres nas pequenas vilas e fazendas, os colonos invadiram o Candombe e mataram centenas de pessoas. Incendiaram casas. Quando os tiroteios terminaram fui ao bairro saber da bailarina Nzola. Não estava entre os mortos nem os vivos. Pedi ao poeta para voltar a escrever poemas de amor para ela. Ainda hoje lhe escreveu uma trova tristonha.
O Ano Judicial abriu com uma cerimónia oficial na cidade do Uíje, lá onde fui estudante e estremeci de amor. Compreendi que tão importante acontecimento não fosse aberto pelo Presidente João Lourenço. Os deuses também se cansam e a sua ausência não me escandalizou. Mas fiquei perplexo por ser o chefe da Casa Civil a presidir e discursar. Já não temos ministro da Justiça? O senhor é apenas uma mascote ou só serve para desnatar dinheiro do Orçamento Geral do Estado? Adão de Almeida fez um discurso notável que posso qualificar como lição de sapiência. Lembrou que em 1975 não tínhamos tribunais. Não tínhamos magistrados. Não tínhamos advogados.
Juntando todos os recursos humanos não conseguíamos pôr a funcionar um Tribunal. Adão de Almeida disse que em 1975 “o Tribunal da Relação de Luanda era composto por cinco juízes para além de mais alguns poucos, nos outros níveis da organização judiciária. No final da década de 80, o número de juízes no País se aproximava já das duas centenas e hoje, 50 anos depois, Angola dispõe de perto de 800 juízes ao nível da jurisdição comum”.
E no Ministério Público? Adão de Almeida responde: “Ao nível do Ministério Público o percurso foi muito similar. De seis, em 1975, o número tem vindo a crescer ao longo dos anos, posicionando-se hoje em perto de 800 Magistrados do Ministério Público. Também no domínio da advocacia a transformação é inegável. De um número de advogados que, em 1975, se podiam literalmente contar com os dedos das mãos, passando para cerca de 250 em 1996, altura em que é proclamada a Ordem dos Advogados de Angola, o País dispõe hoje de cerca de 13.000 advogados, sendo cerca de metade advogados estagiários.”
Mais esta parte do seu discurso: “Para esta caminhada foi determinante a oferta formativa do curso de Direito no País, que saiu de uma única Faculdade de Direito, criada em 1979, e menos de 100 licenciados por ano, para uma oferta formativa de mais de uma dezena e meia Faculdades de Direito e cerca de 1.000 licenciados em direito por ano”. Aproveitou para homenagear quem se bateu pela construção do edifício da Justiça e a “oferta formativa”. Esqueceu-se de Garcia Bires, na época responsável pela Universidade Agostinho Neto e um do que mais se bateu pela abertura da Faculdade de Direito. Ninguém é perfeito.
Agora a parte mais importante: “. Um sistema judiciário ao serviço da nossa sociedade não pode deixar de preservar a sua isenção e a sua credibilidade (…) Para construirmos um futuro melhor, precisamos de continuar a trabalhar para que o sistema de justiça em Angola seja independente, isento, credível e funcional (…) Queremos e precisamos de um Poder Judicial cada vez mais independente”.
O Decreto Presidencial 69/21 de 16 de Março dava dez por cento de todos os valores recuperados, no âmbito do regime da perda de bens, aos órgãos de administração da justiça, nomeadamente à Procuradoria-Geral da República e aos Tribunais. O Tribunal Constitucional, no Acórdão 845/2023 sobre o processo de fiscalização abstrata sucessiva, remetido pela Ordem dos Advogados de Angola (OAA), declarou a “inconstitucionalidade orgânica e formal das normas” do Decreto Presidencial 69/21. E declara também a sua “inconstitucionalidade material” por violação de artigos da Constituição da República de Angola.
Vou partir do princípio que Adão de Almeida nada tem a ver com este Decreto Presidencial celerado. E que a partir de agora ele vai ser o primeiro guardião do edifício da Justiça. E defensor intransigente da separação de Poderes. Nada disso tem acontecido na era João Lourenço. Vai passar a acontecer. A não ser que as suas palavras sejam ocas.
* Jornalista
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