Macau
é uma cidade onde o jogo é, de longe, o principal motor económico. Com quase 40
casinos em pouco mais de 30 quilómetros quadrados, não é de estranhar que o
vício de jogo seja algo endémico no território. O HM foi à procura de quem
sofre e de quem trata
Na
cidade dos néones, o brilho ofusca aqueles que apostam mais do que podem
cobrir. “Se tiver mil patacas, e for obrigado a escolher entre droga ou jogo,
escolho o jogo”, revela S., um veterano de vários vícios. Com um historial
vasto de consumo de opiáceos, este homem de 58 anos é um fantasma da velha
Macau, em que o crime nos casinos era visível e transbordava para as ruas.
Aos
14 anos a vida levou-o a entrar num gang onde vendia e consumia heroína. Foi
agiota e fez de tudo um pouco no lado negro que ensombrava o glamour dos
casinos. Hoje em dia, com a luz que a regulação fez incidir na indústria, já
não dispõe das largas somas de dinheiro que apostava. No passado, como o
dinheiro não era problema, o jogo também não.
O
destino trocou-lhe as voltas, mas o jogo e a heroína continuam no seu percurso.
No entanto, S. não tem dúvidas de que, no menu dos vícios, “o jogo é a sua
prioridade”. O seu caso não é único e encaixa perfeitamente no conceito de
personalidade aditiva. Algo que não é de estranhar, uma vez que o vício dos
jogadores patológicos tem perigosas semelhanças com a toxicodependência.
“Em
termos biológicos, cerebrais, o jogo e a droga acabam por tocar na mesma zona
do cérebro, acontecem as mesmas reacções químicas, são libertadas as mesmas
hormonas, são realidades muito semelhantes.” As palavras são de Marta Bucho,
Coordenadora do Centro Feminino da Associação de Reabilitação de
Toxicodependentes de Macau (ARTM). Aliás, estudos indicam que os jogadores
também têm sintomas de privação semelhantes, ou seja, ressaca. Em ambos os
casos, o cérebro é inundado por serotonina e dopamina, hormonas que regulam o
humor, a ansiedade, o humor, o sono, o stress e o prazer. “Normalmente, não
temos uma libertação tão forte destes químicos”, explica Marta Bucho.
Quem
cai nas malhas do jogo, frequentemente, encontra neste prazer algo que lhe
falta na vida. São coisas que andam de mãos dadas. Problemas psicológicos como
depressão, traumas, stress, ansiedade e fobias podem ser precursores à adição.
Estas pessoas acabam, muitas vezes, por “usar o jogo como forma de
auto-tratamento”, explica a terapeuta. O uso de álcool e drogas também servem
de meio de medicação, num mosaico aditivo muito complexo de tratar. Pessoas que
têm deficit de atenção e hiperactividade fazem parte de outro grupo de risco,
vulneráveis ao vício, encontrando no jogo uma forma para se focarem.
CASINO OMNIPRESENTE
Este
problema agiganta-se com diversos factores. O sentimento de vergonha, e a
aceitação social e cultural são dois elementos explosivos.
“A
cultura é um problema, porque entre os chineses há a ideia de que pode ser
escondido e que a família consegue resolver a situação sozinha”, conta Elaine
Tang, assistente social na Casa da Vontade Firme, uma instituição da Divisão de
Prevenção e Tratamento do Jogo Problemático.
Estes
factores levam a que, na maioria dos casos, a procura de apoio seja tardia.
“Quando procuram ajuda é porque já têm muitas dívidas e o problema é muito
maior”, explica. Além disso, a rede familiar incorre no erro de julgar que se
pagar as dívidas do jogador, a lição é aprendida. Mas o vício não funciona
dentro destes parâmetros. Recusar ajuda a um familiar que esteja desesperado,
com agiotas à perna, pode ser o mais aconselhável.
Outro
dos problemas é a facilidade de acesso, a conveniência do jogo. Macau tem perto
de 40 casinos, espalhados por pouco mais de 30 quilómetros quadrados. Além de
ser mais bem visto que o consumo de estupefacientes, o jogo é uma presença
constante e a cidade está estruturada para que se jogue. Os casinos facultam
quartos, têm caixas ATM estrategicamente colocadas, comida e bebidas grátis.
Aliás, a omnipresença é de tal magnitude que a Casa de Vontade Firme está
ironicamente ao lado do L’Arc Casino. Ou seja, quem procurar ajuda na
instituição, que funciona sob a égide do Instituto de Acção Social (IAS), passa
por vários casinos até lá chegar.
ATACAR
O MAL
Elaine
Tang, do IAS, destaca a complexidade da questão e a forma como cada caso é
único. Quem chega à Casa de Vontade Firme fala com uma assistente social para que
sejam aferidos os problemas que enfrenta. De seguida, delimitam-se prioridades
na abordagem a cada caso, uma vez que os viciados que ali chegam trazem consigo
dificuldades financeiras, familiares, laborais e sociais.
“Pedem
largas somas de dinheiro, dizem que pagam em prestações e chegam, também, a
pedir que sejamos fiadores para recorrerem a empréstimos” junto da banca, conta
Elaine Tang. Obviamente, os serviços não emprestam apoio monetário, mas fazem
algo muito mais valioso no longo prazo. “Há pessoas que não têm um conceito do
que é o dinheiro, porque nunca tiveram problemas financeiros”, explica a
assistente social. Normalmente, este tipo de viciados não apresenta quadros
clínicos de consumo de droga, mas não têm noções de poupança. “Tenho um caso de
uma pessoa que tem de marcar todas as suas despesas diárias. Depois de seis
meses, aprendeu quanto dinheiro precisa para sustentar a família todos os
meses”, revela Elaine. Este paciente, com um casamento destruído pelo jogo,
vive hoje em dia com o pai e é a ele que confia as suas finanças.
Um
dos casos que preocupa a assistente social é o de uma mulher que trabalha
exclusivamente para sustentar o vício. Quando sai do emprego, vai para o casino
onde passa a noite inteira a jogar, largando as mesas de jogo apenas quando
chega a hora de regressar ao trabalho. Este ciclo pode durar três dias
seguidos, sem interrupção, até que cai exausta na cama e dorme um dia inteiro.
Depois do descanso, o ciclo repete-se.
Na
Casa de Vontade Firme não há uma abordagem farmacológica ao vício do jogo. Já
no centro de reabilitação da ARTM essa é uma realidade incontornável, uma vez
que a doença carece de um reequilíbrio químico. Depois de ser prescrita
medicação, começa-se a atacar a desestruturação que o jogo patológico trouxe à
vida da pessoa. “Voltamos a puxar os valores como a dignidade, honestidade,
porque tudo se foi perdendo com o vício”, explica Marta Bucho.
Inicia-se
o processo de ressocialização do doente. Primeiro, tal como nas drogas, é
necessário enfrentar a realidade de que a pessoa não deixará de jogar de um dia
para o outro, há que proceder a uma redução de danos e a um desmame gradual. O
passo inicial é aceitar o problema, só depois se pode ir reduzindo, aos poucos,
a frequência com que se joga, a quantidade de dinheiro e o tempo que se passa
no casino.
Os
estágios seguintes no caminho para a cura são a intervenção psicossocial e a
vida em comunidade. Quem entra no centro de reabilitação da ARTM reaprende
valores da ajuda mútua, o respeito pelos outros. Outro dos pilares de suporte é
a solidariedade e a experiência dos jogadores que se encontram em recuperação
há mais tempo.
NÚMEROS
AZARADOS
Elaine
Tang conta que conhece jogadores com perdas que ascendem a dois milhões de
patacas e que apenas auferem 20 mil por mês. A maioria destes casos chega ao
IAS já numa situação complicada de resolver, com agiotas à perna, os pacientes
a sentirem-se ameaçados. Com alguma frequência, este tipo de viciados, depois
de receberem aconselhamento financeiro, não voltam à instituição.
Os
serviços do IAS começaram a registar os casos de viciados em jogo que
procuraram ajuda nos seus centros a partir de 2011. Desde então, até 2016, 856
pessoas recorreram aos serviços do instituto.
Quanto
à taxa de reincidência, o IAS apenas revelou que o caminho para a recuperação é
longo e árduo, e as recaídas muito frequentes.
Um
estudo elaborado pelo Instituto de Estudos sobre a Indústria do Jogo da
Universidade de Macau revelou que, em 2015, havia 14 mil jogadores viciados, o
que representa 2,15 por cento da população. Em 2016, a incidência de pessoas
com problemas com jogo era de 2,5 por cento, um ligeiro aumento.
No
ano passado, segundo informação da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos
de Macau, pediram auto-exclusão dos casinos 351 pessoas. Em contrapartida, as
receitas brutas do sector continuam numa curva ascendente.
Mas
para que alguém ganhe, outros têm de perder, e há quem perca tudo. Entre a
panóplia de casos de adição, os jogadores são os que têm maior tendência para o
suicídio, mais significativa do que entre os consumidores de drogas.
Apesar
de ser uma realidade pouco estudada na região, a Universidade de Hong Kong fez
um estudo que revelou que, em 2003, dos 1201 suicídios registados na cidade,
233 estavam relacionados com problemas de jogo, o que representa quase 20 por
cento.
De
resto, uma larga fatia dos telefonemas recebidos pela Linha de Prevenção de
Suicídio da Cáritas é relativa a desespero nascido nas mesas dos casinos. “Há
diversos estudos que apontam que jogo e o suicídio estão muito ligados”,
completa Marta Bucho.
Apesar
do brilho do Cotai, há uma parte de Macau que sente nas entranhas os excessos
que o jogo arrasta consigo.
L.,
de 46 anos, vai ao serviço extensivo do ARTM na Areia Preta, um centro de
redução de danos que distribui seringas e refeições, comer uma sopa e conviver
um pouco. Com um largo historial de consumo de heroína, metanfetaminas, álcool
e tudo o que vier à mão, o jogo é uma das constantes da sua vida. Partilhou
casa com toxicodependentes durante três anos e pensou várias vezes no suicídio.
Parecia-lhe a única saída da miséria. Perdeu todo o dinheiro, perdeu a família,
e teve dias em que perdeu a vontade de viver. A meio da entrevista ao HM
levanta-se para mostrar a identificação para poder usufruir da refeição quente
que a ARTM lhe providencia. A vida não lhe corre bem, mas quando fala no prazer
que lhe dá um jogo de bacará os seus olhos brilham como os néones.
João Luz – Hoje Macau
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