sábado, 14 de outubro de 2017

Angola | O MEMORIAL DA BATALHA DO CUITO CUANAVALE E A HISTÓRIA





Terça-feira 19 de Setembro de 2017 ficou marcada pela inauguração de um Memorial à “Batalha do Cuito Cuanavale (BCC)”, um dos símbolos que representam não só uma das principais vitórias da luta pela soberania de Angola, mas também o cumprimento de um dos legados deixados pelo primeiro Presidente da República, Agostinho Neto.

General Paulo Lara*

O primeiro Presidente de Angola, da então República Popular de Angola. Agostinho Neto foi definindo desde sempre que um dos deveres indeclináveis de solidariedade e “internacionalismo” devidos ao nosso país eram a Independência da Namíbia e o fim do apartheid na África do Sul. José Eduardo dos Santos, após oito anos como Presidente e Comandante em Chefe das FAPLA, vencedor na luta contra a invasão sul-africana, inaugurou o monumento três décadas depois.

Ao ver as imagens na televisão, surgiram-me na memória companheiros com quem compartilhei alguns momentos históricos naquele teatro operacional: Sanjar, José Pedro, Ita, Ngueto, Piricas, Mingó e Cowboy que tiveram um papel importante em diferentes fases daquele período e que hoje já não compartilham este momento.

Para a maioria do povo angolano, “cúmplice” deste sonho e que contribuiu sofridamente para a sua concretização, e sobretudo para os combatentes e para os familiares dos heróis tombados durante a longa guerra, acredito ser alentador este reconhecimento para quem, afinal de contas, estava do lado certo da história, não só na defesa do país como no combate para a libertação total do continente africano.

Se na referida cerimónia de inauguração estiveram alguns representantes de combatentes da BCC, brilharam pela ausência figuras conhecidas como os Generais Ndalu, Ngongo, Vietname, Hanga e outros, que tiveram um papel preponderante no quadro estratégico e operativo nesta BCC. Estavam sim presentes alguns Comandantes de diferentes unidades daquela altura. Foi possível reconhecer um dos destacados combatentes do Cuito Cuanavale, o actual General Valeriano, comandante da única brigada que se manteve como “testa de ponte” a Este do rio daquele município no último combate ali realizado no dia 23 de Março. Também se reconheceram protagonistas como os agora oficiais-generais Sousa, Nando, o intrépido Remijo e alguns outros.

Praticamente despercebidos estavam igualmente representantes das embaixadas da Rússia e de Cuba, aliados de Angola naqueles difíceis momentos. Não nos podemos esquecer que, ao contrário do insinuado nos últimos anos, a presença das forças cubanas teve um papel importante nos três últimos meses dos combates em redor do Cuito Cuanavale.

Passados 30 anos da Batalha do Cuito Cuanavale e 42 anos da nossa Independência, estamos convencidos que sem a atitude assumida por Angola com a solidariedade activa de Cuba, a história das independências efectivas no continente africano seria totalmente diferente.

Apreciando a envergadura do Memorial, lamentei a falta de imagens da reportagem sobre o seu  conteúdo museológico. Tenho a esperança que o Memorial esclareça uma grande parte das interrogações que surgirão inevitavelmente, e naturalmente, pela distância que o passar do tempo imporá. Face à dimensão do empreendimento, é necessário que o seu conteúdo consiga elucidar os visitantes com a verdade histórica, a verdade mais  completa possível.

E é igualmente importante:

que tenha existido o cuidado de homenagear nominalmente o maior número dos heróis tombados durante o período da BCC com os seus nomes devidamente evidenciados;

que o Memorial esclareça a confusão criada entre os conceitos de “Batalha”, “Operação” e “Combate” e principalmente entre a “Batalha do Cuito Cuanavale”  e o “Combate do Tumbo”;

que esteja esclarecida a extensão e profundidade da BCC; as Regiões, Agrupações e Unidades que nela participaram; as datas em que ela iniciou e terminou; as principais operações e combates que a integraram; identificados os principais comandantes aos diferentes níveis; o sistema de direcção criado desde o estratégico ao tactico. [É nosso entender que se se considera a Batalha do Cuito Cuanavale como símbolo da derrota contra as SADF e consequentemente da libertação da Namíbia e termino do regime do apartheid, a Frente do Cunene onde se realizou o golpe final contra as SADF ser parte integrante da BCC];

que esteja explicado o funcionamento e  papel desempenhado pelo Centro de Direcção das Operações (CDO) dirigido pelo Comandante em Chefe das FAPLA e que integrava o Ministro da Defesa e o Chefe do Estado Maior General assim como os Chefes da  Missão Militar Cubana [MMCA] e a da Missão Militar Soviética em Angola [MMSA];

que estejam integrados neste Memorial e explicados os principais “combates” realizados como os de Setembro de 1987 no rio Lomba, os de Outubro no Lungue-Bungo (Moxico), os de Novembro em Chambinga com a 16ª Brigada; os de Fevereiro de 1988 no famoso duelo de tanques entre forças da 21ª, 59ª Brigadas, Grupo Tactico Cubano e as SADF (forças sul-africanas) entre outros;

que no Memorial esteja referenciado, para além das SADF, o papel exercido pelas FALA (Forças Armadas da UNITA) e a sua Direcção ao longo do período da BCC nas diferentes frentes;

que no Memorial esteja clarificado o papel das forças cubanas e assessores soviéticos ao longo da BCC, na sua real dimensão e isenta de reinterpretações a posteriori, suceptíveis de serem feitas por qualquer das partes intervenientes;

que seja rigorosamente verificada a linguagem utilizada na terminologia militar ou na identificação de objectos ou localidades,  para não corrermos o risco de que termos como “Triângulo do Tumpo” ou “Caixa de Chambinga” de origem das SADF sul-africanas passem a fazer parte do nosso vocabulário.

Que não se deixe de referenciar a importância da BCC no surgimento da primeira doutrina militar elaborada unicamente por oficiais angolanos – “O Novo Pensamento Militar”, que viria a alterar profundamente a organização político-militar e operacional no teatro de operações militares nos anos seguintes.

Como referiu o Presidente da República, o principal objectivo do Memorial consiste em divulgar a História do que foi a Batalha do Cuito Cuanavale para as novas gerações e as vindouras.

O Memorial do Cuito Cuanavale só terá importância se, para além da imponente obra arquitectónica e da exaltação aos valores patrióticos, ele consiga transmitir uma mensagem pedagógica, científica de forma objectiva, simples e convincente.

Temos uma forte expectativa que numa altura em que a História sobre a Batalha do Cuito Cuanavale tem sido objecto de estudos aprofundados e de interessantes confrontações por investigadores internacionais, este nosso Memorial possa servir para a promoção de vários encontros regionais e internacionais com o objectivo de aprofundar o conhecimento sobre o que se passou naquela decisiva região da África Austral. As infraestruturas e condições de alojamento parecem existir para o efeito.

Levanta-se pois uma questão fulcral para os investigadores angolanos: - continuarão estes a estar limitados a fazer as suas investigações históricas com base nos documentos de arquivos estrangeiros, ou poderão num futuro muito próximo ter também acesso aos arquivos nacionais para poderem confrontar, com propriedade e fundamento, as teorias que sugerem que Angola desempenhou um papel aparentemente secundário nessa importante fase da luta de libertação do continente africano?

É pois imprescindível – para que protagonistas e investigadores possam realizar cabalmente o seu trabalho – que, quem de direito, coloque os arquivos à disposição, algo que pensamos já ser possível passados que foram 30 anos desde a Batalha do Cuito Cuanavale.

A obra física do Memorial foi inaugurada. O Presidente José Eduardo dos Santos deixa para a História não só o papel que desempenhou, mas o seu nome gravado na placa de inauguração.  Estão de parabéns os arquitectos e artistas pela qualidade da obra que observamos. Surge agora a necessidade de a preservar e enriquecer, dar-lhe o seu profundo e verdadeiro sentido, e garantir que não sofra as amarguras enfrentadas pelo Monumento de Kifangondo. Uma tarefa que será seguramente complicada neste período de crise para quem tenha recebido tal responsabilidade. É mais uma tarefa importantíssima para a preservação da nossa dignidade como angolanos e como povo herdeiro da valentia e do heroísmo de todos os que tombaram naquela terra sacrificada.

Luanda, 19 de Setembro 2017

O CONTRIBUTO CUBANO PARA A VITÓRIA

Por via de documentos tornados públicos em diversos arquivos e publicações e que não foram desmentidos, sabe-se que chegava ao Cuito Cuanavale, em Janeiro de 1988, um reforço cubano que inicialmente contava com forças de 121 homens, tendo atingido mais de um milhar de militares semanas depois. As forças estavam enquadradas num Grupo Táctico (GT) composto por unidades de infantaria, tanque e artilharia. Parte destas forças participaram até finais de Fevereiro em acções a Este do rio Cuito, nomeadamente no famoso combate de tanques em Chambinga no dia 14 de Fevereiro entre as FAPLA das 59ª e 21ª Brigadas contra as forças sul-africanas (SADF), um dos combates mais violentos da BCC em que as FAPLA tiveram dolorosas baixas entra as quais a perda de 17 tanques e 18 veículos. Neste combate participou igualmente uma companhia de sete tanques cubanos (comandada, segundo o registo, pelo Tenente Coronel Ciro Goméz Betancourt). Dos sete tanques só regressaria um. Trinta e dois cubanos perderam a vida em combate ao longo do mês de Fevereiro, catorze dos quais deixaram o seu sangue em Chambinga, para além de vários feridos graves evacuados.

Silenciar ou minimizar a presença cubana na Batalha do Cuito Cuanavale é no mínimo indigno, principalmente de quem com eles compartilhou aqueles momentos decisivos. Foi oportuno e reconfortante o reconhecimento e agradecimento feitos, durante o encerramento da referida actividade, pelo Ministro da Defesa em exercício – General Kianda – à contribuição de Cuba não só no Cuito Cuanavale como na sua participação activa na luta pela independência da Namíbia e na derrota do apartheid. Se a referida referência surgiu durante a intervenção em directo na Televisão Pública, estranho foi não a ver repetida nos noticiários posteriores e nos órgãos de imprensa públicos ou privados.

Fotografia:
Junho 1987. Luena Moxico. Preparação da “Operação Saudemos Outubro” da Batalha do Cuito Cuanavale. Estão identificados de pé da esquerda para direita oficiais do EMG das FAPLA, do Comando da 3ªRM (Moxico) e das Missões Soviéticas e Cubanas em Angola: Welema, José Pedro, Alberto Neto, Bibi, Tozé Miranda, Ndalu, Lebediev (soviético), Paulo Lara, Ngongo, Fleitas (Cubano), Lúcio Amaral. De cócoras, o Mingó, (2º à esquerda). (Arq.PL)

(O Gen. Ochoa, também presente evitaria aparecer na fotografia).

ALGUMA BIBLIOGRAFIA SOBRE A BATALHA DO CUITO CUANAVALE - ANGOLA
JÚNIOR, Miguel (2007). Forças Armadas Populares de Libertação de Angola. (1975-1992).
MUEKALIA, Jardo (2010). A Segunda Revolução. Memórias da Luta pela Democracia.
VICENTE, São (1994). Angola e África do Sul.
ÁFRICA DO SUL
HEITMAN, Helmoed-Romer (1990). War in Angola-The final South African phase
STEENKAMP, Willem (1989). South Africa’s Border War, 1966-1989
CUBA
CHACON, César Gómez (1989). Cuito-Cuanavale: Viaje al Centro de los Héroes.
GOMES, Rubén G. Jiménez (2014) Cuito Cuanavale. Crónica de uma batalha.
RÚSSIA
DOBRYNIN, Anatoly (1995). In Confidence. Moscow’s Ambassador to America’s six cold war presidents (1962-1986).  
SHUBIN, Vladimir (2008), The Hot “Cold War”. The USSR in Southern Africa.
ESTADOS UNIDOS DE AMÉRICA
CROCKER, Chester (1993). High Noon in Southern Africa: Making Peace in a Rough Neighbourhood.
GLEIJESES, Piero (2013). Visions of Freedom. Havana, Washington, Pretoria and the Struggle for Southern Africa 1976-1991.
OUTROS
GEORGE, Edward (2002). The Cuban Intervention in Angola, 1965-1991.
DEUTSCHMAN, David (1989). Changing the History of Africa. 

*Novo Jornal (ver mais no original)

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