Montenegro decidiu-se pelo tudo ou nada. Dada a situação, e excluída a hipótese da decência, que obrigaria o primeiro-ministro a renunciar sem se recandidatar, ele fez a opção menos arriscada.
Manuel Afonso*, opinião | Esquerda.net
Todos imaginávamos que o governo da AD não cumpriria a legislatura, que a dado momento Luís Montenegro forçaria uma crise, seguindo o guião do «deixem-nos governar», procurando alcançar uma maioria numas eleições antecipadas. O guião de Cavaco e Costa. Só não esperávamos que fosse agora, que fosse assim. Montenegro também não, mas perante as revelações sobre a sua empresa, a Spinumviva, e a crise por elas aberta teve de decidir. Decidiu-se pelo tudo ou nada. Dada a situação, e excluída a hipótese da decência, que obrigaria o primeiro-ministro a renunciar sem se recandidatar, Montenegro fez a opção menos arriscada. A hipótese da reeleição neste contexto é baixa, mas, após uma Comissão Parlamentar de Inquérito que escrutinasse os seus negócios dúbios, seria provavelmente nula. Como o tempo demonstrará, Montenegro poderá ter no armário esqueletos a que não sobrevive politicamente.
Todo o caso é inusitado. Nos
partidos do capital, a promiscuidade com os grandes negócios é a regra. É a
concretização do caráter de classe desses partidos. Porém, essa ligação entre o
capital e os seus governantes costuma seguir protocolos que, ainda que mal,
disfarçam o fenómeno. As portas giratórias, por exemplo. Ou, pelo menos,
circuitos mais sofisticados para que o dinheiro vindo dos grupos capitalistas
não seja despejado diretamente nos cofres de uma empresa, em grande medida de
fachada, de um primeiro-ministro
Talvez a resposta se encontre no que pode ser considerado um ato falhado, de estilo freudiano, de Montenegro. Na sua inenarrável intervenção de 1 de março, em que deu supostas explicações ao país, o líder do PSD pergunta se deveria ter abandonado os seus negócios apenas porque «circunstancialmente fui para Presidente do PSD e agora estou primeiro-ministro». «Estava» primeiro-ministro e agora já não «está». A habilidade taticista e as circunstâncias improváveis criadas pela demissão de António Costa fizeram com que um barão intermédio do PSD, periférico às elites lisboetas, acabasse a «estar» como primeiro-ministro. Marcelo Rebelo de Sousa, sem disfarçar o seu elitismo lisboacêntrico (uma outra forma de provincianismo) chamou «rural» a Montenegro, exprimindo este paradoxo. Talvez tenha sido esta particularidade do líder do PSD que o aproximou de Cavaco Silva, um outro líder da direita vindo da periferia das elites. No fim, talvez essa ascensão do barão de Espinho ao centro do poder tenha sido tão rápida que este nunca largou as vestes da chico-espertice das negociatas locais, do clientelismo de escalão intermédio. De um primeiro-ministro de um grande partido burguês, espera-se que represente o grande capital, que encarne um capitalista coletivo, relativamente autónomo de negociatas de baixo calibre. Isso implica protocolos políticos que, pelo menos, criem um aspeto de independência e transparência. Ainda que esperto nas jogadas táticas e nas manobras políticas, faltou a Montenegro essa inteligência estratégica e pagou por isso. Irremediavelmente, ao que tudo indica.
* Assistente editorial e ativista laboral e climático
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