O filme deveria se
chamar deserto, pois o protagonista do filme é o deserto. Também, ele é
cenário. Apresentado logo de início em uma perspectiva de câmera aberta, com
uma “dolorida” paisagem desértica
O ator coadjuvante
vem em seguida, rodeada por crianças que brigam. É ele, um jarro, o qual abriga
a essência vital: a água. O jarro armazena água em meio ao deserto. A ele é
dado a revelação da situação no deserto, apresenta-nos ao conflito que
pulsa. O jarro que armazena água em uma escola está quebrado,
rachado. Está sem proteção e o essencial escorre por ele sem “controle” e
cuidado.
Em torno do
conflito, crianças gritam, lutam, disputam território para beber da essência. O
trabalho do professor é apresentado como o articulador que tenta conduzir a
resolução do conflito, amenizar seus impactos. Seu trabalho se compromete
enquanto não é localizado o conflito, inclusive parece ser parte de seu
trabalho conduzir a localização, a investigação para tal descoberta.
A miséria no deserto
é marca maior: denúncia condições de estrangeirismo. Os personagens secundários
mostram-se distantes e alheios ao conflito. Além de uma paisagem que nos gasta
os olhos, as relações travadas permeiam a escassez profunda, ao lado da
impossibilidade de haver novo jarro que substituirá o antigo e preservará a
essência transformadora.
O Estado, com seu
estigma de poder absoluto, não se aproxima das necessidades, é inalcançável,
burocrático e desprezível, porque ausente. Em torno gira uma comunidade mesquinha
e fragmentada refletida nesse despotismo, imitando o descaso das autoridades em
relações mais íntimas e de interesse. No caso, o interesse de “sobrevivência”
daquelas crianças, a matéria primordial.
As sensações
durante o filme foram inúmeras: estranhamento, tristeza, desconforto, ânsia de
vômito, dor...
A maneira que os
personagens se tratavam refletia a falta de escuta e percepção do Outro. Não
havia Desejo. A fala deles era gritada e parece que todos eram impermeáveis,
sendo que para ser atingindo era necessário o grito, ou adventos mais graves
que atingissem limite mais duramente. Todos pareciam se desconhecer. O deserto
é assim quando protagoniza. Terra é de ninguém, o árido se sobrepõe a qualquer
outra condição.
Algo no deserto
exige que tudo dê errado para que percebam/aceitem um problema, mas o problema
não atinge graus de aprofundamento. O exemplo, quando o jarro é percebido
quebrado, a primeira coisa que acontece é a tentativa de descobrir “quem”
errou, “quem” quebrou, ao invés de “o que” quebrou, “como” consertar. Mas o
jarro já estava quebrado, começou com um jarro quebrado. Perdeu-se foi a
dimensão de proteção e importância que o jarro possui.
Os meninos estavam
lá, enlouquecidos por beberem a água, que por uma gota permitiria que se
corresse por mais algum tempo pelo deserto, até que fosse descoberto um oásis.
Talvez, quem sabe. O risco ali é uma possível solução.
Os outros, que não
o professor, os pais, os habitantes daquele deserto haviam desistido,
desacreditado da água, da importância da água. Não tinha mais ação e a ação do
professor, do que ele representa, de alguma maneira, os atingia e não era
confortável. Nunca era. Interesses individuais se sobrepõem todo tempo em
detrimento do coletivo, do macro. Sempre era a “proteção” das ações.
É claro, diante
disso, o professor é visto, nos é apresentado, no cenário-protagonista, como um
personagem também secundário e também de ações isoladas, ainda bem por que
senão corre o risco de ser superhomem. É isolado. Busca encontrar meios de
manter a água no vaso. Proteger a fonte. Mas sozinho não é possível. O deserto
é grande demais para ser percorrido só. Intenta “micro” ações, entre os
meninos, que dá resposta a algumas coisas, como a solução com os ovos. Que
embora seja resposta a mesquinhez, dá aos meninos um exemplo, prático sobre
cuidado, sobre interesse/ intenção. O que ele queria não era comer os ovos,
objeto de delírio coletivo, no filme, mas consertar a rede de proteção, que era
o jarro. Além disso ,sua ação quando decide ir embora aproxima-se da jornada do
herói. Ele é expulso do deserto. Decidira ele abandonar a comunidade no
Deserto, o professor é tido como a consciência. A comunidade, finalmente,
percebe que há um problema. O filme nos alegra nesse momento, parece nascer uma
célula de aproximação.
Ele starta o
processo de consciência da comunidade, claro que não antes de uma quase
tragédia que colocou em movimento a senhora que foi lá tirar satisfações e
finalmente foi tocada pela existência de uma rede de proteção, o jarro, e que
essa rede estava quebrada. Sendo assim, o que temos é uma personagem que corre
pela comunidade, tentando costurar uma emenda no Deserto.
Hoje, diria algumas palavras para traduzir nossa realidade, o que pra mim é
emergente: a ausência de discussões sobre o que é autoridade e representação
política, o isolamento de ações e a problematização.
Muitas vezes, no
nosso modelo educacional, que por si é fragmentado, percebe-se em ações que ao
invés de serem verticalizadas, se horizontalizam e por outros momentos, deve
ser horizontais e são verticais, a reflexão não é atingida. A autoridade e a
representação política se mistura a pena pelas águas já perdidas, das águas já
ultrapassadas, já vazadas. A reflexão deveria estar a favor de uma
qualificação, se perde em meio a números. Tudo num universo misturado, seco,
improdutivo, como o Deserto.
Longe, igual ao
Deserto, em que tudo é longe, não enxergamos a necessidade, quais são e para
quem são. Números tentam deduzir as ações. Nesse sentido a proteção que já não
funciona - porque vem de modelos antigos e já gastados e que tentam repetir,
restaurar, recuperar, não prevê necessidades do agora, do presente, do novo
espaço possível a ser criado – é dado à falência. Não há espaço para fugir,
para reinventar modelos, para descobrir novas possibilidades.
Assim, há os que
tentam recuperar o jarro. Esses participam de uma solidão que espera encontrar
nova proteção, que espera possibilitar a construção de nova proteção, através
do diálogo, da desconstrução de corpos dóceis e disciplinados, mas num trabalho
de rede, reinventando novas relações que desencadeiem equidade e hierarquias
distantes desse sistema de classe, tão antigo e que cria esses desertos, essas
comunidades, que precisa excluir para incluir.
O entendimento dos
papéis sociais, como se deu essas construções de poder. Para quem sabe, lá
adiante, em algum novo espaço possa “desexistir” o Deserto. Ao menos esse
Deserto que protagoniza, que ele seja apenas cenário, então.
Penso, qual será
nosso deserto? Quem é nosso ator principal? O jarro é a ausência de algo que é
necessário, mas “quem” ou “o que” descobrirá o que é necessário, ou melhor, o
que dirá a necessidade? Tenho algumas sugestões, a distribuição equitativa de
renda, de direitos, de cuidado...
Lembro que o jarro
quebrado, com efeito bumerangue, na velocidade da volta, gera a delinqüência,
que retorna em resposta ao Deserto. Não porque o jarro está quebrado, apenas,
mas porque toda a água limpa está vazando e se misturando a terra. O que o
professor tenta mostrar é quem tem poder sobre a água.
O filme trouxe
reflexões que não se encerram. Instigou a pesquisa. O incómodo gerado, fez ter
um olhar sobre a educação numa esfera ampliada. Não somos os únicos a padecerem
no deserto. O jarro quebrou-se, mas resta água dentro e é possível criar
proteção para que a água não acabe. Precisamos de muita conversa e muito afeto.
Gisele Sodré Paes,
em Românticos Conspiradores
Sem comentários:
Enviar um comentário