sexta-feira, 21 de março de 2014

O JARRO – divulgação de filme de Ebrahim Foruzesh em Cinema à Séria (integral)




O filme deveria se chamar deserto, pois o protagonista do filme é o deserto. Também, ele é cenário. Apresentado logo de início em uma perspectiva de câmera aberta, com uma “dolorida” paisagem desértica

O ator coadjuvante vem em seguida, rodeada por crianças que brigam. É ele, um jarro, o qual abriga a essência vital: a água. O jarro armazena água em meio ao deserto. A ele é dado a revelação da situação no deserto, apresenta-nos ao conflito que pulsa.   O jarro que armazena água em uma escola está quebrado, rachado. Está sem proteção e o essencial escorre por ele sem “controle” e cuidado.

Em torno do conflito, crianças gritam, lutam, disputam território para beber da essência. O trabalho do professor é apresentado como o articulador que tenta conduzir a resolução do conflito, amenizar seus impactos. Seu trabalho se compromete enquanto não é localizado o conflito, inclusive parece ser parte de seu trabalho conduzir a localização, a investigação para tal descoberta.

A miséria no deserto é marca maior: denúncia condições de estrangeirismo. Os personagens secundários mostram-se distantes e alheios ao conflito. Além de uma paisagem que nos gasta os olhos, as relações travadas permeiam a escassez profunda, ao lado da impossibilidade de haver novo jarro que substituirá o antigo e preservará a essência transformadora.

O Estado, com seu estigma de poder absoluto, não se aproxima das necessidades, é inalcançável, burocrático e desprezível, porque ausente. Em torno gira uma comunidade mesquinha e fragmentada refletida nesse despotismo, imitando o descaso das autoridades em relações mais íntimas e de interesse. No caso, o interesse de “sobrevivência” daquelas crianças, a matéria primordial.

As sensações durante o filme foram inúmeras: estranhamento, tristeza, desconforto, ânsia de vômito, dor...

A maneira que os personagens se tratavam refletia a falta de escuta e percepção do Outro. Não havia Desejo. A fala deles era gritada e parece que todos eram impermeáveis, sendo que para ser atingindo era necessário o grito, ou adventos mais graves que atingissem limite mais duramente. Todos pareciam se desconhecer. O deserto é assim quando protagoniza. Terra é de ninguém, o árido se sobrepõe a qualquer outra condição.

Algo no deserto exige que tudo dê errado para que percebam/aceitem um problema, mas o problema não atinge graus de aprofundamento. O exemplo, quando o jarro é percebido quebrado, a primeira coisa que acontece é a tentativa de descobrir “quem” errou, “quem” quebrou, ao invés de “o que” quebrou, “como” consertar. Mas o jarro já estava quebrado, começou com um jarro quebrado. Perdeu-se foi a dimensão de proteção e importância que o jarro possui.

Os meninos estavam lá, enlouquecidos por beberem a água, que por uma gota permitiria que se corresse por mais algum tempo pelo deserto, até que fosse descoberto um oásis. Talvez, quem sabe. O risco ali é uma possível solução.

Os outros, que não o professor, os pais, os habitantes daquele deserto haviam desistido, desacreditado da água, da importância da água. Não tinha mais ação e a ação do professor, do que ele representa, de alguma maneira, os atingia e não era confortável. Nunca era. Interesses individuais se sobrepõem todo tempo em detrimento do coletivo, do macro. Sempre era a “proteção” das ações.

É claro, diante disso, o professor é visto, nos é apresentado, no cenário-protagonista, como um personagem também secundário e também de ações isoladas, ainda bem por que senão corre o risco de ser superhomem. É isolado. Busca encontrar meios de manter a água no vaso. Proteger a fonte. Mas sozinho não é possível. O deserto é grande demais para ser percorrido só. Intenta “micro” ações, entre os meninos, que dá resposta a algumas coisas, como a solução com os ovos. Que embora seja resposta a mesquinhez, dá aos meninos um exemplo, prático sobre cuidado, sobre interesse/ intenção. O que ele queria não era comer os ovos, objeto de delírio coletivo, no filme, mas consertar a rede de proteção, que era o jarro. Além disso ,sua ação quando decide ir embora aproxima-se da jornada do herói. Ele é expulso do deserto. Decidira ele abandonar a comunidade no Deserto, o professor é tido como a consciência. A comunidade, finalmente, percebe que há um problema. O filme nos alegra nesse momento, parece nascer uma célula de aproximação.

Ele starta o processo de consciência da comunidade, claro que não antes de uma quase tragédia que colocou em movimento a senhora que foi lá tirar satisfações e finalmente foi tocada pela existência de uma rede de proteção, o jarro, e que essa rede estava quebrada. Sendo assim, o que temos é uma personagem que corre pela comunidade, tentando costurar uma emenda no Deserto. 

Hoje, diria algumas palavras para traduzir nossa realidade, o que pra mim é emergente: a ausência de discussões sobre o que é autoridade e representação política, o isolamento de ações e a problematização.

Muitas vezes, no nosso modelo educacional, que por si é fragmentado, percebe-se em ações que ao invés de serem verticalizadas, se horizontalizam e por outros momentos, deve ser horizontais e são verticais, a reflexão não é atingida. A autoridade e a representação política se mistura a pena pelas águas já perdidas, das águas já ultrapassadas, já vazadas. A reflexão deveria estar a favor de uma qualificação, se perde em meio a números. Tudo num universo misturado, seco, improdutivo, como o Deserto.

Longe, igual ao Deserto, em que tudo é longe, não enxergamos a necessidade, quais são e para quem são. Números tentam deduzir as ações. Nesse sentido a proteção que já não funciona - porque vem de modelos antigos e já gastados e que tentam repetir, restaurar, recuperar, não prevê necessidades do agora, do presente, do novo espaço possível a ser criado – é dado à falência. Não há espaço para fugir, para reinventar modelos, para descobrir novas possibilidades.

Assim, há os que tentam recuperar o jarro. Esses participam de uma solidão que espera encontrar nova proteção, que espera possibilitar a construção de nova proteção, através do diálogo, da desconstrução de corpos dóceis e disciplinados, mas num trabalho de rede, reinventando novas relações que desencadeiem equidade e hierarquias distantes desse sistema de classe, tão antigo e que cria esses desertos, essas comunidades, que precisa excluir para incluir.

O entendimento dos papéis sociais, como se deu essas construções de poder. Para quem sabe, lá adiante, em algum novo espaço possa “desexistir” o Deserto. Ao menos esse Deserto que protagoniza, que ele seja apenas cenário, então.

Penso, qual será nosso deserto? Quem é nosso ator principal? O jarro é a ausência de algo que é necessário, mas “quem” ou “o que” descobrirá o que é necessário, ou melhor, o que dirá a necessidade? Tenho algumas sugestões, a distribuição equitativa de renda, de direitos, de cuidado...

Lembro que o jarro quebrado, com efeito bumerangue, na velocidade da volta, gera a delinqüência, que retorna em resposta ao Deserto. Não porque o jarro está quebrado, apenas, mas porque toda a água limpa está vazando e se misturando a terra. O que o professor tenta mostrar é quem tem poder sobre a água.

O filme trouxe reflexões que não se encerram. Instigou a pesquisa. O incómodo gerado, fez ter um olhar sobre a educação numa esfera ampliada. Não somos os únicos a padecerem no deserto. O jarro quebrou-se, mas resta água dentro e é possível criar proteção para que a água não acabe. Precisamos de muita conversa e muito afeto. 

Gisele Sodré Paes, em Românticos Conspiradores

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