Em entrevista à
Carta Maior, governador do Rio Grande do Sul fala sobre as consequências da
transição imperfeita para a democracia na vida do Brasil hoje.
Marco Aurélio
Weissheimer – Carta Maior
Porto Alegre
- “O Brasil viveu uma transição imperfeita da ditadura para a democracia e essa
transição trouxe efeitos que perduram até hoje. Ela carrega consigo uma
ambiguidade: ao mesmo tempo em que abre um ciclo democrático novo no país, com
a Constituinte de 1988, ela carrega as dores de um parto não terminado. A
transição democrática foi jurídica e politicamente completada, sem que se
resgatasse para a história o que foi efetivamente a ditadura. Essa história,
até hoje, não foi resgatada”. A opinião é do ex-ministro da Justiça e atual
governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, ao avaliar o significado dos 50
anos do golpe de 1964 e o atual estágio da democracia brasileira.
Em entrevista à Carta Maior, Tarso Genro fala sobre o golpe de 64 e a ditadura,
sobre a transição conciliada para a democracia, a Constituinte, a Lei da
Anistia e as tarefas democráticas que ficaram incompletas, como o julgamento
dos responsáveis por tortura e morte durante a ditadura. Para o governador
gaúcho, a Lei da Anistia teve um resíduo de conquista democrática, mas
representou um habeas corpus preventivo para quem torturou durante a ditadura.
Tarso reafirma a sua crítica à decisão do Supremo que estendeu a Lei da Anistia
aos torturadores: “Bastaria o Supremo dizer: a Lei da Anistia não se aplica a
quem torturou e matou. Mas até agora, o Supremo não teve a coragem de tomar uma
decisão desse tipo”. E aponta, por fim, aqueles que são para ele os principais
problemas de democracia hoje: a opacidade do Estado e a captura do Estado pelo
capital financeiro.
Carta Maior: 50 anos do golpe de 64: o que essa data significa hoje para a
política e a democracia brasileira?
Tarso Genro: Olhando hoje para 1964, com uma perspectiva histórica, pode-se
dizer, em primeiro lugar, que o golpe no Brasil teve algumas particularidades
em relação aos golpes militares típicos de um determinado momento da história
da América Latina, que derrubaram vários governos constituídos
democraticamente. O golpe de 64 foi resultado de um processo gestado por
setores da burguesia brasileira e do latifúndio temerosos das reformas sociais
e da reforma agrária que o governo Jango propunha.
As elites políticas desses dois setores se integraram e incidiram sobre as
forças armadas, aproveitando o clima extremado da guerra fria, da disputa entre
o bloco soviético e o bloco norte-americano no espaço geopolítico mundial. Essa
resistência às reformas e a abertura de um novo ciclo de acumulação no país,
associado de maneira profunda ao capitalismo norte-americano principalmente, é
que deu substrato social e apoio político para que se instalasse uma ditadura
no Brasil. O poder não foi apropriado diretamente pelos militares para eles
próprios. Foi um projeto político desses setores mais conservadores e
reacionários que tiveram nas forças armadas um apoio e um protagonismo muito
grande.
A trajetória dos governos militares não foi uniforme. Tivemos, em um primeiro
momento, um setor da intelectualidade das forças armadas dirigindo o processo,
com Castelo Branco. Depois, houve uma degradação dessas lideranças,
especificamente com Costa e Silva e Médici. Digo degradação porque eram pessoas
despreparadas para gerir o próprio projeto no qual as classes dominantes
apostavam. Mais tarde veio o governo Geisel, que manteve os mecanismos
ditatoriais e iniciou um processo de abertura. Geisel tinha uma compreensão de
que o poder militar puro era incabível numa economia com as características que
a brasileira apresentava naquele momento e que, por isso, era preciso criar
espaços políticos novos onde as forças sociais pudessem se movimentar. Esse
processo de abertura controlada redundou na Assembleia Nacional Constituinte,
após a ditadura dizimar a esquerda que fazia a resistência através da luta
armada.
O processo de conciliação para a abertura colocou no mesmo campo a oposição e
os setores que apoiavam a ditadura e vai se consolidar no governo Figueiredo,
desaguando na Lei da Anistia. Essa lei foi, na verdade, um habeas corpus
preventivo para quem exerceu a ditadura. Os que lutaram contra a ditadura já tinham
sido presos, torturados, julgados, assassinados, exilados, expostos. Ela teve
um resíduo de conquista democrática, ao devolver direitos, estabelecer
indenizações e corrigir algumas injustiças. Mas ela foi um grande habeas corpus
preventivo para aqueles que exerceram uma espécie de poder paralelo, exercido
nos porões da ditadura por estruturas irregulares e regulares. O Doi-Codi
funcionou como um aparato clandestino de repressão, com um grupo de bandidos e
assassinos fazendo o ‘trabalho sujo’ da ditadura.
Tivemos muitas debilidades no processo de transição. Aqui nunca se pediu que se
julgassem pessoas que exerceram cargos executivos e ministeriais, como os
ministros da Justiça da época da ditadura, por exemplo. Pessoas que faziam de
conta que não havia tortura. Aqui no Brasil, o que se pediu foi que se
julgassem os assassinos e torturadores e nem isso aconteceu. Essa transição
imperfeita é o que vivemos hoje. Ela carrega uma ambiguidade: ao mesmo tempo em
que abre um ciclo democrático novo no país, com a Constituinte de 1988, ela
carrega as dores de um parto não terminado. A transição democrática foi
jurídica e politicamente completada, sem que se resgatasse para a história o
que foi efetivamente a ditadura. Essa história, até hoje, não foi resgatada.
Carta Maior: A Argentina vive hoje uma nova etapa do processo de julgamento de
crimes da ditadura e discute a responsabilização de civis por esses crimes. Vê
alguma possibilidade de acontecer algo parecido com isso no Brasil ou essa é
uma batalha que já foi perdida?
Tarso Genro: Acho que é uma batalha difícil de ser ganha, mas também é difícil
de ser encerrada. Ela é difícil de ser ganha porque as forças armadas na
Argentina saíram da ditadura completamente derrotadas, desprestigiadas e
aniquiladas moralmente. Aqui no Brasil não ocorreu isso. A transição para a
democracia se deu por meio de uma conciliação com a oposição. Essa conciliação
carregou para dentro do novo regime que surgiria um acordo de prestigiamento
das forças armadas que acabaram passando praticamente incólumes por esse
processo.
Isso também carrega uma ambiguidade. A primeira possibilidade é aproveitar
essas características da transição conciliada para apostar numa
profissionalização cada vez maior das forças armadas, isolando-as das influências
politicas que ordinariamente se manifestam a partir de uma vocação golpista de
direita extremada. A segunda questão é que essa radicalização pela direita está
sempre colocada de maneira potencial. Veja, por exemplo, a desfaçatez com que o
Círculo Militar defende os torturadores e a tortura. Isso reflete uma sensação
de prestigiamento histórico que as forças armadas tiveram na transição, que faz
com que essas viúvas do regime ditatorial se expressem dessa maneira perversa.
Acho que o caminho mais provável é que tenhamos uma trajetória de reparações, o
que está sendo feito hoje, e que as forças armadas majoritariamente afirmem o
seu profissionalismo. Não vejo outra possibilidade na atual conjuntura.
Carta Maior: Qual sua opinião sobre as novas gerações de oficiais das forças
armadas, a partir da sua experiência à frente do Ministério da Justiça? Há uma
percepção diferente sobre o que aconteceu no Brasil durante a ditadura?
Tarso Genro: Durante o período em que estive no Ministério da Justiça,
conversei muito com as forças armadas, em diversas circunstâncias e com
diversos chefes militares. Como ministro da Justiça, eu integrava o Conselho de
Defesa Nacional e participei de vários debates sobre a política nacional de
defesa. Junto à maioria dos oficiais com quem tive contato não vi qualquer
resíduo de antagonismo com a democracia, embora a gente ainda veja, em
determinados quadros, um saudosismo autoritário. Isso, na minha opinião, não
decorre de uma mudança na educação e na ideologia de segurança nacional que
ainda está na cabeça da maioria das forças armadas, mas sim de uma mudança que
ocorreu nos padrões políticos mundiais e do próprio crescimento do Brasil como
país com possibilidade de ter uma presença importante no cenário mundial.
Essas mudanças fizeram com que a maioria dos profissionais das forças armadas
não rezassem mais pela cartilha da guerra fria e passassem a se preocupar mais
com a afirmação do Brasil como projeto de Estado nacional. Isso não quer dizer
que não haja nas forças armadas setores que possam abraçar uma agenda
autoritária e direitista no futuro. Pode ocorrer, mas creio que esse é um
fenômeno presente em todas as forças armadas, não apenas nas brasileiras.
Carta Maior: Qual o balanço que faz de sua passagem pelo Ministério da Justiça
no que diz respeito ao tratamento desses temas?
Tarso Genro: Juntamente com o Paulo Abrão, reorganizei todo o sistema de
anistia no Ministério da Justiça. Aquilo ali não tinha lógica nem estrutura,
não por culpa dos ministros anteriores, mas sim pelo fato não existir uma
preocupação expressa dos governos para organizar essa área de uma maneira
racional e de uma maneira institucional mais elevada. Nós fizemos arquivos,
contratamos servidores, organizamos protocolos. Não havia ordem de preferência
nos julgamentos de anistia. Organizamos as comissões que julgavam esses
processos. O presidente Lula assegurou recursos para que fossem iniciadas
massivamente as indenizações, o que foi muito importante.
Nós produzimos uma nova cultura sobre a anistia no Brasil. A nossa ideia sobre
a anistia mudou completamente. Até a nossa chegada, a Anistia era tratada como
um perdão do Estado. Nós mudamos isso e a anistia passou a significar que o
Estado é que pede perdão. Nós não estamos perdoando ninguém, mas sim fazendo reparações
e pedindo desculpas pelo o quê o Estado cometeu. Afinal, o Estado é fundado no
Direito e no respeito aos direitos humanos. Foi essa a cultura de anistia que
nós criamos e que teve momentos muito significativos. Estruturamos as Caravanas
da Anistia e também um conjunto de debates para fortalecer essa nova cultura
sobre a anistia. Fizemos uma sessão histórica no Araguaia, anistiando os
guerrilheiros e os mateiros da região. Fizemos isso com absoluta tranquilidade,
levados pela FAB com todo respeito.
Nós também iniciamos um debate no Ministério da Justiça defendendo a tese de
que a Lei da Anistia não se aplica aos torturadores. Isso acabou pervertido
perante a opinião pública pelos jornais e tvs conservadores como se nós
estivéssemos pedindo uma reforma dessa lei para punir os torturadores, o que
representou uma dupla confissão. A primeira confissão foi admitir que a Lei da
Anistia foi feita para anistiar os torturadores. Em segundo lugar foi uma
confissão de que eles não querem que os torturadores sejam punidos.
Esse debate foi feito como se eu fosse uma excrescência dentro do governo. O
presidente Lula, naquela oportunidade, pediu apenas que eu retirasse essa
discussão de dentro do Ministério da Justiça e levasse para fora dele, de modo
a não ferir suscetibilidades em partidos políticos que estavam dentro do
governo e que achavam que esse debate era desnecessário. E foi o que fiz,
fazendo esse debate sobre a necessidade de punir os torturadores, até o momento
em que o Supremo Tribunal Federal, em um voto lamentável do ministro Eros Grau,
entendeu que a Lei da Anistia se aplicava também aos torturadores, sob o
argumento cínico de que era uma lei que promovia anistia ampla, geral e
irrestrita, o que incluiria os torturadores.
Esse foi um momento muito duro do debate político no país. Felizmente, têm
ocorrido algumas decisões no sentido de punir essas pessoas que torturaram e
mataram, mas não sabemos até onde isso vai. O ideal seria que acabasse
provocando uma nova decisão do Supremo. Bastaria o Supremo dizer: a Lei da
Anistia não se aplica a quem torturou e matou. Mas até agora, o Supremo não
teve a coragem de tomar uma decisão desse tipo.
Carta Maior: Quais são, na sua avaliação, os principais problemas e ameaças que
a democracia brasileira enfrenta hoje?
Tarso Genro: A opacidade do Estado e a captura do Estado pelo capital
financeiro. Essa opacidade só pode ser vencida por um controle público da
cidadania sobre o Estado, um controle público que não vai extinguir a
opacidade, mas vai aumentar a interferência da cidadania nas decisões. A grande
questão da democracia brasileira, ao meu ver, é conseguir uma combinação entre
a participação direta da cidadania, por meios presenciais e virtuais, e fazer
permanentes correções e adaptações na democracia representativa, dentro da
perspectiva de estabelecer uma nova relação entre Estado e sociedade.
A segunda questão, a captura do Estado pela dívida, é mais complexa pois só
pode ser enfrentada mediante um novo pacto internacional, entre países que se
disponham a se articular e a resistir ao controle do capital financeiro sobre o
Estado, criando novos parâmetros de sustentabilidade financeira para as
democracias e inclusive criando instituições financeiras alternativas. Já se
falou, por exemplo, da possibilidade dos BRICS criarem um banco semelhante ao
Banco Mundial para conseguir libertar o Estado dessa tutela absoluta do capital
financeiro. Essa tutela é exercida sobre o Direito do Estado, que passa a
funcionar segundo uma lógica normativa que vem de fora para dentro, do capital,
e não da participação da cidadania.
Esse choque entre o Estado capturado pelo capital financeiro e as demandas
sociais cada vez mais volumosas sobre um Estado que não pode responder
representa a grande crise democrática do presente. É ela que está nas ruas
todos os dias. É ela que está no cotidiano das administrações todos os dias e
que deve dirigir os grandes embates políticos daqui em diante. Quem controla o
Estado é o capital financeiro que capturou o Estado pela questão da dívida, ou
quem controla o Estado é a cidadania organizada, participante da representação
política e da democracia direta? Esse é o grande embate global que a democracia
brasileira enfrenta hoje.
Créditos da foto:
Gustavo Gargioni/GERS
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