Novos
estudos sugerem: ao invés de convocar as populações a sacrifícios, Estados
deveriam imprimir e distribuir dinheiro – recuperando um papel usurpado pelos
bancos
Antonio
Martins – Outras Palavras
O
que começou, em 2009, como uma extravagância europeia espalhou-se nos últimos
anos pelo mundo. Em resposta à crise financeira, um número crescente de
governos passou a adotar políticas de “austeridade”, ou “ajuste fiscal”. No
Velho Continente, a pretexto de “reduzir o déficit público”, desmantela-se o
Estado de bem-estar social. No Brasil, a presidente Dilma Roussef realiza, dias
depois de eleita, o que o economista Paul
Singer classificou como “um giro de 180 graus, sem explicar nada”,
“uma política que só os banqueiros apoiam”. Sintomaticamente, o tema nunca vai
a debate: a quase totalidade dos políticos, mídia e “especialistas” asseguram
que “não há alternativas”. Será verdade?
Em
contraponto a esta nova manifestação do “pensamento único” tem crescido, nas
últimas semanas, uma crítica radical. Ela parte de uma constatação facilmente
demonstrável. Em todos os casos, as políticas de “austeridade”
ampliam abruptamente as desigualdades. Ou seja, não são neutras: impõem
sacrifícios à maioria, mas ampliam os privilégios e o poder de uma reduzida
aristocracia financeira.
Ao
buscar os mecanismos que produzem tal efeito, a crítica encontra algo
inusitado. As políticas econômicas adotadas nas últimas quatro décadas
permitiram que os bancos capturassem, dos Estados, uma condição essencial: a de
principais emissores de moeda. É este setor, portanto (em especial 28 mega-instituições
globais, chamadas pelo G-20 de “sistêmicas”), que impõe o ambiente “sem saídas”
em que mergulhamos. No entanto – e talvez aqui esteja o aspecto mais brilhante
e libertador da nova crítica – o beco sem saída é apenas aparente. As
sociedades e os Estados não perderam as condições e os instrumentos
necessários para recuperar o poder usurpado pelos bancos. Basta ter vontade
política e sabedoria para agir.
Por
que e como a emissão de dinheiro foi privatizada? François Morin,
professor emérito da Universidade de Toulouse, ex-membro do conselho do banco
central francês e um dos expoentes da nova críticaexplica,
numa entrevista recente ao jornal francês Libération. A longa onda de
liberalização financeira que varreu o mundo a partir dos anos 1970 criou
instituições financeiras com poder de atuação global, e capacidade de
concentrar dinheiro muito superior à dos Estados. O balanço dos 28 bancos
“sistêmicos” soma 50,34 trilhões de dólares – algo como três vezes o
PIB dos Estados Unidos. Para efeito de comparação, considere: são doze
vezes o volume
total de dólares em circulação no mundo…
Mas
o poder do oligopólio bancário, prossegue Morin, não para aí. São os bancos (e
não os Estados) que controlam os mercados financeiros – câmbio, bônus de
dívidas, derivativos por
onde circulam papéis e obrigações que podem ser facilmente convertidos em
moeda. Estes mercados movimentam 710 trilhões de dólares por ano, um
pouco mais de dez vezes o PIB mundial. É com números assim que devem ser
comparadas cifras como o chamado “déficit primário” que o Brasil registrará,
calcula-se, em 2015. São 51,8 bilhões de reais (US$ 21,6 bi). Foram chamados de
“rombo”
pela velha mídia. Porém, equivalem a míseros 0,003% do que movimenta
a ciranda global de produtos financeiros. Esta desproporção abissal dá uma
ideia sobre o poder que a oligarquia financeira tem, diante dos Estados…
O
raciocínio de François Morin é complementado por outro economista veterano —Adair
Turner, ex-presidente da Autoridade de
Serviços Financeiros da Grã-Bretanha, hoje à frente do Instituto
para um Novo Pensamento Econômico, um thinktankcom base em Nova York.
Ementrevista à
jornalista Lynn Parramore, editora contribuinte da revista digital
norte-americana Alternet,Turner
lembra que o imenso volume de dinheiro nas mãos de um punhado de bancos é
responsável, por exemplo, pela especulação imobiliária que atinge grandes
cidades em todo o mundo. Faltam aplicações para tanto capital, argumenta ele:
apenas uma parte pode ser empregada na expansão da atividade produtiva. Uma
fração maior, gigantesca, acaba financiando operações com imóveis. Como o poder
de compra da oligarquia é descomunal, ela tem condições de inflacionar os
preços e expulsar rapidamente, das áreas que cobiça, a população comum.
Mas
a contribuição mais original de Turner é sua visão sobre como enfrentar o
agigantamento da esfera financeira – causa da crise que serve de pretexto para
“austeridade” e “ajustes ficais”. Os Estados precisam agir de duas maneiras,
diz ele. Primeiro, reintroduzindo os controles sobre os mercados financeiros.
Entre eles estão os depósitos compulsórios que drenavam, entre o pós-guerra e o
início do período neoliberal, o dinheiro disponível e o poder dos bancos.
Segundo,
e mais inspirador, imprimindo e distribuindo dinheiro ao público! Turner frisa
que se trata de um antigo tabu a ser rompido. Já no Fausto, de
Goethe, este tipo de ação do Estado era o que Mefistófeles recomendava ao
Imperador, em tentação. Em tempos mais recentes, imprimir dinheiro é visto,
pela pensamento econômico ortodoxo, como caminho certo para provocar
hiperinflação.
Por
meio de uma série erudita de exemplos históricos, Turner desconstroi este
preconceito. Ele demonstra que, assim como há episódios em que os Estados
criaram moeda ativamente, e provocaram hiperinflação (na Alemanha da
República de Weiner, ou no Zimbabwe do
final da década de 2010), há inúmeros outros em que este efeito não se
produziu.
O
caso de sucesso mais eloquente – porque mais conhecido – é o do pós-II Guerra
Mundial, nos EUA, Europa e Japão. O esforço bélico havia feito disparar a
dívida de todos estes países (veja gráfico abaixo), em alguns casos
para até 250% do PIB. Mas as políticas econômicas adotadas após o conflito
priorizaram, invariavelmente, o aumento do gasto estatal – inclusive
para financiar o Estado de Bem-estar Social. Em nenhum caso houve
hiperinflação. Pelo contrário: os índices de inflação moderados com os quais as
sociedades conviveram ajudaram a desvalorizar a dívida contraída
durante a guerra.
Num
terceiro texto, surpreendente e mordaz, a advogada, escritora e ativista
norte-americana Ellen
Brown aplica outra pancada na ideia segundo a qual os Estados produzem
hiperinflação, quando criam moeda. Ellen, criadora do Public Banking Institute,
recorre à história do pensamento econômico. Como se sabe, Keynes notabilizou-se
por propor, nos anos 1930, que os governos movimentassem suas economias
ampliando o suprimento de moeda. Numa imagem sugestiva e irônica, ele
argumentou que seria útil imprimir dinheiro e enterrá-lo em minas de carvão,
autorizando os desempregados a resgatá-lo. Ao seguirem sua receita (ainda que
sem os exageros retóricos…), os países ocidentais foram capazes de se livrar da
depressão pós-1929 e, mais tarde, de viver as três décadas de prosperidade que
se seguiram à II Guerra.
Mas
a refinada Ellen não se limita a este exemplo. Ela recorre também a Milton Friedman,
arqui-inimigo teórico de Keynes e um dos inspiradores do neoliberalismo. Ele
defendeu, em 1969, que, em alguns casos, a redução da oferta de dinheiro era a
causa de crises. E defendeu, nestes casos, uma saída curiosa: “despejar
dinheiro de helicópteros”…1
Paradoxo
final: de certa forma, a ideia de imprimir dinheiro passou a ser empregada,
desde 2009, pelo banco central dos EUA (Federal Reserve, ou FED); e,
alguns anos mais tarde, também pelo Banco Central Europeu (BCE). Porém, com
sentido e resultados invertidos… Não se tratou de criar moeda e distribuí-la
socialmente, visando contrabalançar o poder da oligarquia financeira; mas, ao
contrário, de imprimir dinheiro para os mais super-ricos.
Por
meio de iniciativas conhecidas pelo nome hermético dequantitative easing [“flexibilização
quantitativa”], FED e BCE emitiram, nos últimos cinco anos,
respectivamente US$ 4,5 trilhões e € 1,1 trilhão. O dinheiro não foi nem
oferecido aos desempregados, nem despejado de helicópteros, mas usado para
recomprar títulos públicos – ou seja, dirigido exatamente à elite global que
cada vez se diferencia mais do restante da sociedade. Na Europa, chega-se a
praticar simultaneamente o quantitative easing e a “austeridade”. Ou
seja, suga-se dinheiro dos programas sociais para distribuir ao 1% mais rico…
Foi
diante desta distorção surreal que o atual líder do Partido Trabalhista
britânico, Jeremy Corbin, passou a defender, em julho último, a reversão
completa da iniciativa, de modo a convertê-la numquantitative easing for the
people. “Defendo um reequilíbrio, que implica tirar recursos das finanças para
os setores sustentáveis da economia do futuro”, disse ele. E acrescentou: “Uma
das opções seria dar ao Banco da Inglaterra um novo mandato – o de renovar
nossa economia para investir em habitação de larga escala, energia, transporte
e projetos digitais. Em suma, quantative easing para as pessoas, ao
invés de para os bancos.
A
proposta tornou-se um dos pontos centrais de campanha de Corbin à liderança
trabalhista. Ao final, ele obteve vitória
inesperada e arrasadora, mesmo enfrentando uma máquina partidária poderosa
e hostil. O desfecho revela: em nossa época contraditória, defender que os
Estados imprimam dinheiro e distribuam entre as sociedades pode ser mais que
uma forma de enfrentar os “ajustes fiscais” e desfazer mitos econômicos. É um
caminho para enfrentar os ventos conservadores e restaurar a política como meio
de inventar o futuro coletivo.
1 Milton Friedman, Optimum Quantity of
Money. Aldine Publishing Company. 1969. p. 4.
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