Há
décadas, boneca uniformiza desejos, padrões estéticos e visões de
mundo das meninas. Agora, versão “interativa” registra dados privados
e “dialoga”. Talvez, com apelos de marketing…
Lais
Fontenelle – Outras Palavras
Barbie:
uma imagem que aprisiona. Esse é o título do meu trabalho de conclusão de
curso de Psicologia, há quase duas décadas. Essa boneca sempre chamou minha
atenção. Não pelos modelitos que exibia ou por seus 10 cm de quadril e 12,5 de
busto, mas pelo que ela representa para várias gerações de meninas ao redor do
mundo.
Nascida
nos Estados Unidos, Barbie foi durante décadas a boneca mais vendida no
planeta. Dona de um fã clube de mais de 18 milhões de colecionadores pelo mundo
todo, exemplo de beleza para mulheres que tentaram reproduzir seu rosto com
cirurgias plásticas, ela completou meio século de existência com direito a
desfile de moda em Nova York, exposição em museu suíço e sem nenhuma marca do
tempo – com os mesmos cabelos longos, lisos e loiros e olhos de estrela.
A
boneca, que não envelhece nas prateleiras, atravessou cinco décadas imbatível,
com um sorriso no rosto e influenciando meninas do mundo inteiro com valores
materialistas e ideais de beleza inatingíveis. E agora, mais uma vez, se
reinventou com o lançamento da versão Hello Barbie, a primeira da linha que
fala e responde às perguntas das crianças.
Vale
voltar um pouco no tempo para contextualizar alguns fatos. No final dos anos
50, o casal Ruth e Elliot Handler, fundadores da fábrica de brinquedos Mattel,
encontraram um nicho de mercado ao observarem as brincadeiras de sua filha, de
7 anos, com bonecas de papel. Na época não existia uma boneca tridimensional de
corpo adulto com a qual a criança pudesse fantasiar e realizar seus sonhos. Foi
nesse momento que Ruth criou Barbie e seu mundo cor-de-rosa, revolucionando
para sempre as brincadeiras de meninas que, até então, brincavam,
exclusivamente, com bonecas bebês como um exercício de maternagem.
Com
a chegada da Barbie as meninas passaram a experimentar, em suas brincadeiras, a
falsa ideia de que as mulheres adultas podiam ser o que desejassem: médicas,
astronautas, bailarinas – desde que fossem magras e belas. A boneca parece ter
virado o jogo, passando a ditar não só as regras das brincadeiras como também
os desejos das meninas, esgotando em seu corpo magro, oco e de plástico as
possibilidades de ser e de brincar. A Barbie diz para as meninas que para ser é
preciso ter… carro conversível, coleção de sapatos, namorado sarado e muitos
acessórios.
Isso
dito, fica claro que essa boneca e seu mundo exercem uma forte influência nos
ideais femininos contemporâneos. Se, de alguma maneira, nós mulheres nos
libertamos dos espartilhos de nossas bisavós, parecemos estar hoje aprisionadas
no culto ao corpo e busca incansável da magreza. Nossos corpos desejantes,
supostamente libertos, estão agora entrelaçados a objetivos mercadológicos. A
estética “Barbie” disseminada pelo mundo todo é imposta pela cultura da moda,
principalmente pelas imagens publicitárias. Vendido como passaporte para a felicidade,
influencia também no desenvolvimento de transtornos alimentares.
Esse
fato é tão verdadeiro que em 2012 duas adolescentes inglesas de 16 anos, da
cidade de Crewkerne, chegaram ao baile de formatura do colégio empacotadas dentro
de caixas da Barbie em tamanho natural, como verdadeiras bonecas de plástico
encenando uma entrada triunfal.
As
caixas de papelão de 1,80 m X 0,60, com flores pintadas à mão, foram feitas por
uma mãe que gastou 250 libras para realizar essa fantasia. Se a intenção era
roubar a cena, elas conseguiram. A cidade toda parou para vê-las passar,
aprisionadas em seu sonho de infância.
Já
com a Hello Barbie, o último lançamento da Mattel em parceria com a Toytalk
brinquedos, outros sonhos de infância serão aprisionados, melhor, armazenados
numa nuvem. Nesse Natal a Mattel, na tentativa de retomar seus lucros com a
venda da boneca, inovou colocando à venda no mercado a Barbie que usa um
aplicativo Toytalk, transmite as conversas das crianças com a boneca via wifi e
as armazena num servidor da empresa. A Hello Barbie usa inteligência artificial
e reconhecimento de voz, sendo capaz de armazenar mais de 8 mil diálogos das
crianças.
Não
só as falas da criança – e também as de outras pessoas da casa ou amigos da
criança – são captadas pela boneca e enviadas ao servidor da empresa. A partir
da análise desse material, novos dados são enviados à boneca, que poderá
responder perguntas e travar diálogos com a criança. Vale destacar que a boneca
também armazena outras informações e incorpora às conversas detalhes como
gostos, lugares e até nomes citados pela criança – o que pode ser extremamente
perigoso.
Soube
do lançamento da boneca desde o início de 2015, quando a CCFC (Campaign for a
Comercial-Free Childhood – ONG norte-americana que luta contra a
mercantilização da infância) lançou uma campanha para que a boneca não chegasse
às prateleiras. Foram mais de 45 mil assinaturas apoiando a CCFC, que elegeu a
boneca o pior brinquedo de 2015, com 57 % dos votos.
Mas,
foi somente depois que minha filha de 4 anos ganhou seu primeiro brinquedo
falante, neste Natal, que resolvi me debruçar sobre o assunto. Notícias
recentes me levaram a refletir sobre brinquedos que falam ou são ligados à web,
pelo impacto que podem ter no desenvolvimento saudável das crianças.
Bonecos
que emitem som, cantam ou reproduzem de três a cinco frases não são novidade no
mercado, mas ver de perto o que um simples Furby pode
causar na brincadeira inocente de uma criança – é assustador. Minha filha, ao desembrulhar
o boneco, presenteado esse Natal pelo querido avô, e entender que ele parecia
de fato ter vida independente de sua imaginação, pirou. De início, encantou-se
ao perceber que ele precisava de seus cuidados para se alimentar, brincar e
dormir. Porém, quando se deu conta de que ele não parava de falar quando ela
quisesse e que não tinha um botão para desligá-lo, parece não ter gostado tanto
assim. Não foi à toa que Frankenstein assustou seu criador.
Depois
disso me deparo com o resultado de uma pesquisa sobre
o quanto os brinquedos que falam são piores para o desenvolvimento da linguagem
das crianças. Segundo o artigo, se o brinquedo fala, filhos e pais se calam. E
quando pais e mães usam menos palavras, geram menos conversas e obtêm menos
respostas das crianças – o que tem um enorme impacto no desenvolvimento de sua
linguagem.
Some-se
a isso a notícia de
que a Vtech, empresa de Hong Kong fabricante de tablets, “learning toys” e apps
desenhados para crianças, acabou de experimentar uma das maiores invasões
hackers focadas em crianças na história. Aproximadamente 5 milhões de contas de
pais e mais de 6,4 milhões de perfis infantis contendo dados privados foram
comprometidos, gerando danos às famílias. E quando a Toytalk, assim como a
Mattel, afirmam que não farão uso das gravações feitas pela Hello Barbie para
contactar as crianças ou assediá-las com apelos de marketing, só nos cabe
desconfiar e ficar atentos.
Então
me pergunto: por que estamos permitindo que uma boneca espie as brincadeiras de
nossas crianças? O brincar é a linguagem universal das crianças. Através de
suas brincadeiras elas elaboram conflitos, exercitam comportamentos adultos, se
socializam e usam sua imaginação e criatividade. É uma atividade sagrada que
merece nosso respeito e proteção.
As
crianças ficam concentradas em suas brincadeiras e, na maioria das vezes, não
gostam de ser invadidas ou interrompidas. Imagine se perguntássemos o que
pensam sobre suas brincadeiras serem gravadas – achariam graça? Através do
brincar, as crianças travam diálogos imaginários e perguntam e respondem de
acordo com sua subjetividade, maturidade, medos e angústias. Como será para
elas receber respostas prontas de uma boneca? Não seria muito mais interessante
e benéfico darmos espaço à imaginação?
Nos
Estados Unidos não só ONGs, mas também especialistas e famílias já estão
cobrando dos órgãos responsáveis uma política que regule as novas tecnologias
presentes nesse tipo de brinquedo, e que as produções e vendas sejam
interrompidas até a existência das normas. Deixo aqui essa reflexão na
esperança de que esse tipo de brinquedo não aterrisse por aqui e comece a
hackear dados de crianças expostas e vulneráveis em suas brincadeiras. Façamos
valer o artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz:
“Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família,
no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e
reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a
proteção da lei.”
Fotos:
1) Barbie, brinquedo tirano - 2) Furby, espécie de robô de
pelúcia que fala e não desliga
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