Miguel
Guedes* | Jornal de Notícias | opinião
Um
simples buraco na rede é, desde há uma semana, a arma de passagem privilegiada
para o crime organizado. Vive-se a culpa, tal como em Pedrógão Grande, pela
acção do agressor externo e pela personalização das culpas. Para o fogo não há
patentes: atira-se a culpa à trovoada seca ou ao arco voltaico, porque exonerar
as matas do eucaliptal é trabalho para presidiários no inverno. E tudo parece
uma saga de "fake news". No roubo de Tancos, aponta-se ao crime
organizado internacional porque olhar para dentro do buraco da rede é demasiado
exigente. Se alguém acreditar que o submundo internacional do tráfico de
armamento acerta no maior roubo de material de guerra deste século por um
buraco na rede e sem recorrer a detalhada informação interna, belisque-se. Mas
só trancar a porta que alguém terá aberto não chega.
É
claro que seria um enorme ajuda que tivéssemos sentinelas portadores de G3 com
munições. Não para o caso em concreto - tendo em conta que nenhum guardou o
Paiol Nacional de Tancos durante cerca de 20 horas a fio - mas para a dignidade
geral do coldre. 1450 cartuchos de munição de 9 milímetros, 18 granadas de gás
lacrimogéneo, 150 granadas de mão ofensivas, a título de inventário definitivo
que se afigura tão temporário como a exoneração dos cinco comandantes pelo
chefe do Estado-Maior do Exército, Rovisco Duarte. A lista pode crescer, sob
confirmação. Aos responsáveis, não basta assumir responsabilidades políticas
que dispararam para baixo na hierarquia: a falta de videovigilância e de guarda
física numa zona de armazenamento de armamento de guerra é quase tão ofensiva
para a ideia que temos de país como fazerem-nos acreditar que uma rede
degradada é condição que propicia assalto.
A
relação privilegiada com o mal reside no mal com que se usa o que se tem. Toda
esta fragilidade tem um nome: incúria. Está muito para além do desinvestimento,
existe pela incapacidade que convoca o desleixo. É nem querer. Fala-se agora de
voltarmos à segurança que existia nos anos 80: mais dois militares nas secções
de vigia, uma força de reforço para casos de emergência, redobrada atenção aos
paióis pelas rondas dos regimentos e armas desseladas para uso pronto. A
Procuradoria Geral da República abriu inquérito e há quem adiante ligação de
alguns sectores militares a grupos extremistas. Mais uma vez, a questão assenta
muito mais em perceber como é possível que o país funcione sem uma rede mínima
de pensamento em alguns sectores estratégicos. Nada disto se resolve com
investimento. Com mais investimentos mas sem coerência, continuaremos na lógica
do fogo posto, à procura do furo na rede e dos bodes expiatórios, com Tancos à
porta.
O
autor escreve segundo a antiga ortografia
*Músico
e advogado
Título
com acréscimo “depois de casa arrombada” - PG
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