sábado, 14 de outubro de 2017

Portugal | CONHECIDOS E DESCONHECIDOS NA OPERAÇÃO MARQUÊS



Francisco Louça | Público | opinião

Donald Rumsfeld, um assanhado falcão que foi ministro dos EUA durante as suas recentes guerras mesopotâmicas, celebrizou-se por poucas coisas. Era um homem de negócios, a sua empresa foi das grandes beneficiárias da guerra, a ocupação do Iraque foi uma bênção para o terrorismo e uma maldição para os árabes, não é fácil encontrar alguma coisa que o recomende. Mas pelo menos dizia ao que vinha.

Talvez por isso os participantes na cimeira da NATO de 2002 possam ter sido surpreendidos pela sua triste declaração:«A mensagem a transmitir é que não há “conhecidos”. Há coisas que sabemos que sabemos. Há desconhecidos conhecidos. Isto é, há coisas que agora sabemos que não sabemos. Mas também há desconhecidos que desconhecemos. Há coisas que não sabemos que não sabemos.» De um chefe de guerra que conduz as tropas, mesmo que à confortável distância de um ecrã de videojogo, esperava-se certamente mais garbo. Mas as coisas são como são e Rumsfeld ficou-se por esta charada, só há “desconhecidos conhecidos” e “desconhecidos desconhecidos”, seja lá o que isso for.

Pois o caso da Operação Marquês contra José Sócrates, que agora chegou à acusação, prova que Rumsfeld não viu o filme todo: também há outra classe que ele esqueceu, a dos “conhecidos desconhecidos”. Um conhecido desconhecido é um ser bizarro, que está à nossa frente e não sabemos bem o que seja. Tem cheiro e cor, mas ao que vem, isso é desconhecido. O caso Marquês é esse bicho. O processo jurídico, o nosso conhecido (afinal já leva quatro anos de fugas de informação para o Correio da Manhã), se é alguma coisa pela certa, é só uma ponta do iceberg, esse sim menos conhecido, das relações entre política e negócios.

Em todo o caso, que ninguém venha agora dizer que é uma surpresa: se nada se sabe sobre estas culpas, que o tribunal há-de decidir, só por atrevida ignorância ou manhosa cumplicidade pode alguém fingir que não viu as evidências dos triângulos dourados entre políticos e banqueiros e beneficiários de privatizações e PPPs. São conhecidos desconhecidos, porque as contratações e ligações foram todas às claras, mas o que exactamente fizeram delas é desconhecido.

Há meia dúzia de anos, publiquei um livro com alguns colegas (“Os Donos de Portugal”) que investigava as carreiras de alguns governantes; depois completamos o estudo sobre todos os 776 ministros e secretários de Estado que nos governaram até 2011 (“Os Burgueses”). Ficará surpreendido se lhe disser que os governos com mais pessoal recrutado nas grandes empresas foram os de Durão Barroso com Portas e de Santana com Portas? Ou que os que foram ou vieram dos grandes grupos económicos ocuparam um quarto dos postos de governo? Ou que os que foram e vieram da finança são um em cada três governantes?

É certo que a lista da gente do BES nos governos (ou que foi para o BES) é especialmente impressionante: Durão Barroso, Rui Machete, Jaime Gama, António Mexia, Proença de Carvalho, Manuel Lencastre, Almerindo Marques e outros. Ou que foram ou vieram da PT, outra jóia do BES: Armando Vara, Medina Carreira, José Lamego, António Vitorino, Couto dos Santos, Todo Bom. Não são casos isolados: quanto Lobo Xavier, Jorge Coelho, Valente de Oliveira, Joaquim Ferreira do Amaral e Paulo Portas fazem a sua viagem pela Mota Engil – e alguns queixavam-se das autoestradas! –, percebemos como estes triângulos são atraentes (e note as ligações entre o BES e a Mota-Engil, por exemplo na Ascendi e na Martifer).

A acusação da Operação Marquês é gravíssima, pois aponta a corrupção ao mais alto nível do Estado. Mas há outra acusação que não precisa de tribunal, e que regista os que beneficiaram, legal e tranquilamente, do regime de promoção social que foi instituído pelo poder financeiro e pelo seu apetite dos governantes. Tem sido esse o regime que governa Portugal e não se espantem se nos cria problemas.

Imagem em TVI24

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