Alfredo
Maia | AbrilAbril | opinião |
Os
obituários, em geral, e os grandes destaques, em particular, são espécies que
justificam estudos e reflexões sobre as opções e práticas jornalísticas. Não
apenas pelo que retêm e cristalizam dos aspectos conhecidos ou ignorados da
biografia dos defuntos, mas também pelo consenso que constroem sobre boa parte
das figuras desaparecidas e, sobretudo, pela glorificação em que redundam, por
vezes, os registos editoriais, num exercício de independência no fio da
navalha.
Por
exemplo, a morte recente do empresário Belmiro de Azevedo, que ocupou em pleno
os noticiários aos audiovisuais e dos meios de informação em linha de 29 e 30
de Novembro, bem como foi assunto principal dos jornais deste último dia,
constitui um interessante caso que seria útil analisar com detalhe crítico –
tarefa que não cabe neste artigo, nem a tal se propõe, mas que se sugere a
académicos.
Um
voo rasante sobre o conteúdo, os ângulos de abordagem e os qualificativos
evidenciam, em geral, uma atitude encomiástica e uma dificuldade de descomprometido
distanciamento dos media.
Não
está em causa a relevância da personagem, inegável na história económica,
social, política e cultural do país, assim como é inegável que o acontecimento
teria de ser forçosamente notícia. A pergunta legítima consiste em saber se
houve exagero no espaço e no «tom»…
Os
jornais impressos, por exemplo. Os diários generalistas nacionais não
regatearam as honras de primeira página com grandes destaques – a totalidade da
mancha impressa, no caso do Público; cerca de 75% no caso do i; 60%
no do Jornal de Notícias; 36% no do Correio da Manhã; e 34% no do Diário
de Notícias.
Também
não foram parcos em páginas noticiosas – 18 no Público, nove no JN,
seis no i e quatro no DN e no CM (embora, nestes
últimos, com um anúncio numa delas). Justificava-se? Pelo menos o facto de
todos eles publicarem editorais (ou artigos de opinião do diretor ou de um
adjunto) avaliza a importância transcendente conferida ao acontecimento.
É
comum ouvir-se que, quando morre alguém, a imprensa não diz senão bem, ou pelo
menos é comedida nas críticas, ou adia-as para outras oportunidades. Terá o
vulgo razão? Em 57 peças (incluindo editoriais e artigos de opinião/depoimentos
solicitados a personalidades), 38 citações/frases no discurso directo,
seleccionadas de declarações antigas do próprio Belmiro de Azevedo, e 34
extraídas de reacções de personalidades, são raríssimas as expressões menos
favoráveis.
O JN menciona
a queixa de «desrespeito» do falecido em relação à viúva do banqueiro Pinto de
Magalhães. O Público acrescentou, citando-a, naquela que é a única
crítica em todas as peças publicadas nos cinco diários: «É uma pessoa dura, não
tem coração». Ainda o JN menciona um reparo de um ex-eleito na
freguesia natal do empresário ao que poderia ter feito pela terra e não fez. Já
o CM inseriu, na sua selecção de frases do próprio: «Se não for a
mão-de-obra barata, não há emprego para ninguém». E ficamos por aqui.
O
consenso editorial em torno da figura segue em abundância de encómios e
elogiosas referências ao percurso, ao carácter, à determinação, à coragem, às
virtudes, tudo bem temperado de adjectivos e virtudes do empresário – «Mais do
que um empresário, Belmiro foi um exemplo de exigência permanente, um homem
livre e corajoso, amigo do risco, da disciplina interior, da educação pela vida
fora, da "ética rigorosa"», escreve o Público – um dos mais
ricos do país, digno de figurar no catálogo obsceno de fortunas da Forbes.
Na
glorificação mediática do empresário («O maior empresário português no pós-25
de Abril», disse Daniel Bessa, no Público), assinale-se o singular
destaque para a sua sobranceira relação com «os políticos», a que os mediapreferiram
chamar «coragem» e «independência», como se tal «independência» não residisse
de facto de estar, precisamente, no topo do poder económico.
«Belmiro
de Azevedo/O Empresário que desafiou os políticos», titula o DN na
primeira página, abrindo a peça principal, no interior, com este título
«Belmiro de Azevedo: o empresário que reprovou todos os governantes». Os
políticos, cita dele o JN, «falam do que não sabem, do que não tem a ver
com a realidade e prometem o que não podem cumprir», pois «a sua postura na
política foi sempre de "contrapoder", como fazia questão de assumir».
Ao
longo dos textos, emerge a colecção de ditos caricaturizantes, alguns
mesquinhos, de Belmiro sobre personalidades da vida política, incluindo o
actual Presidente da República – que aliás não lhe poupou rasgadas loas –, como
quem fixa na memória dos leitores uma espécie de herói que até ousou pôr na ordem
os deputados da nação, «obrigando-os» a madrugarem em certa manhã parlamentar e
a recebê-lo às 8 horas em comissão.
Se
algum dia for realizado um estudo rigoroso, ou alguma reflexão aprofundada,
sobre os obituários em geral e os destaques dos media à morte de
poderosos, talvez compreendamos melhor essa espécie de fascínio pelo poder
económico e um certo desdém por essa realidade democrática a que tantas vezes
se referem como «os políticos»…
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