Pode a mulher mais rica de
África, Isabel dos Santos, ser má com contas? Pode. Aliás, quando se é filha de
um presidente de um país rico (embora atolado de pobres) que esteve no poder –
sem nunca ter sido nominalmente eleito – 38 anos, as contas são o que menos
interessa.
Isabel dos Santos usou essa
explicação numa audiência no processo de arbitragem internacional em que a
empresa brasileira Oi, que em 2015 ficou com a posição da PT na Unitel SA,
acusa os seus sócios angolanos de lhe bloquearem dividendos num valor aproximado
de 600 milhões de euros. E de a terem não só afastado (ainda no tempo da
portuguesa PT) da gestão da operadora móvel, como também realizado uma série de
operações lesivas dos interesses da companhia, em benefício da filha do
ex-presidente de Angola e ainda presidente do MPLA, partido que está no poder
desde 1975.
Por esses motivos, a Oi (através
da sua participada PT Ventures, que é a accionista da Unitel SA) reclama uma
indemnização de 2.700 milhões de euros à Vidatel (de Isabel dos Santos), à Geni
(do general Leopoldino do Nascimento) e à Mercury (da Sonangol) no processo em
curso na Câmara de Comércio Internacional de Paris, cujo desfecho deverá ser
conhecido nas próximas semanas, uma vez que os protagonistas do caso foram
ouvidos pelo tribunal arbitral em Fevereiro.
De acordo com as transcrições da
audiência de Isabel dos Santos a que o jornal português PÚBLICO teve acesso, os
argumentos “não sei” e “não me lembro” foram usados abundantemente pela
empresária angolana (que tem, segundo a Forbes, uma fortuna – começada a
construir com a venda ambulante de ovos nas ruas de Luanda – avaliada em 2.600
milhões de dólares) nas respostas às questões dos advogados da PT Ventures
(PTV). Houve outros ainda, como “não sou boa com datas”, “não sei os detalhes,
os contratos foram preparados por advogados” ou “[não encontro documentos]
porque mudei muitas vezes de casa”. Mas o mais surpreendente foi mesmo a
confissão de que “o meu forte não são as contas”.
Essa foi a resposta de Isabel dos
Santos (que tem 25% da Unitel SA através da Vidatel e é presidente do conselho
de administração da empresa) quando o advogado da PTV lhe perguntou se por
acaso sabia como se calculou o valor da comissão de gestão de cerca de 155
milhões de dólares que a Unitel SA se comprometeu a pagar à Tokeyna, em 2013.
Foi com esta empresa de nome
exótico, registada em nome de Isabel dos Santos nas ilhas Virgens Britânicas,
que a Unitel SA assinou (em Dezembro de 2013) um contrato plurianual de
prestação de serviços de “consultoria e suporte” pelos quais teria a pagar 155
milhões de dólares em 2013 e 177,9 milhões de dólares em 2014.
Os acordos com a Tokeyna – a que
os advogados da PTV já tinham chamado “contratos de prestação de serviços
fictícios, sem qualquer justificação comercial” quando, paralelamente ao
processo de arbitragem, avançaram com um pedido de congelamento dos bens da
Vidatel num tribunal das ilhas Virgens Britânicas para acautelar o direito da
Oi a ser ressarcida – foram justificados em Paris por Isabel dos Santos com a
necessidade de a Unitel SA ter uma empresa “fora de Angola” para tratar de
assuntos operacionais.
O primeiro “fee” [comissão, taxa]
de gestão devido a esta companhia sem colaboradores (e, portanto, aparentemente
incapaz de prestar os serviços para os quais tinha sido contratada) foi pago
pela Unitel SA à Tokeyna através de um encontro de contas: a transferência para
esta sociedade de Isabel dos Santos do direito a ser reembolsada pelos 465
milhões de dólares (370 milhões de euros) emprestados pela Unitel SA à Unitel
International Holdings (outra sociedade holandesa que é detida apenas por
Isabel dos Santos) entre Maio de 2012 e Agosto de 2013.
O acordo de cedência à Tokeyna do
direito ao reembolso de 465 milhões previa que este se fizesse por apenas 150
milhões dólares. De acordo com o processo que a PTV moveu contra a Vidatel no
tribunal das ilhas Virgens Britânicas, que o PÚBLICO consultou, os advogados
desta participada da Oi alegam que, na prática, a cedência de direitos (feita a
troco de serviços quanto aos quais não há registos de que tenham sido
prestados) resultou numa “perda imediata” de 315 milhões de dólares para a
Unitel SA. O processo refere ainda que os auditores da Unitel SA (à data, a
PwC) emitiram reservas às contas de 2013, considerando que as transacções com a
Tokeyna reduziam em 764 milhões de dólares o valor contabilístico da companhia
e impactavam negativamente o resultado líquido desse ano em 434 milhões de
dólares.
Segundo informações recolhidas
pelo PÚBLICO, com o início do processo de arbitragem em Paris, estas
transacções, criticadas pelos auditores por se tratarem de operações com partes
relacionadas, cujo processo de aprovação não cumpriu as boas práticas de
governação, foram todas anuladas. Na transcrição da audiência de Fevereiro,
Isabel dos Santos (que reconheceu ter assinado os contratos, apesar de ser
parte interessada), assume a dada altura que o negócio com a Tokeyna ficou sem
efeito: “Infelizmente, nunca se tornou numa prestadora de serviços [da Unitel
SA]”. O PÚBLICO questionou a empresária, através da Unitel SA, sobre o motivo
que levou à suspensão dos contratos com a Tokeyna. “Os contratos ficaram sem
efeito pois a Unitel preferiu usar outras empresas do grupo”, respondeu fonte
oficial.
Sabia Isabel dos Santos que os
montantes devidos pela Unitel International à Unitel SA eram muito superiores a
150 milhões de dólares? Foi isso que quis saber o advogado da PTV em Paris.
“Não estive envolvida nos detalhes”, respondeu a empresária. Uma resposta em
linha com o que afirmou várias vezes ao longo da audiência, na qual destacou
que a sua intervenção na Unitel SA se passa “a um nível mais elevado”, da
definição “da estratégia”. Tudo o que está relacionado com a preparação de
contratos e documentos legais variados (incluindo os termos dos empréstimos
concedidos à Unitel International ou dos acordos com a Tokeyna) fica sempre a
cargo de terceiros – sejam advogados, contabilistas ou consultores, internos ou
externos, ou mesmo outros administradores da operadora móvel –, em cujo
trabalho Isabel dos Santos confia quando os papéis lhe chegam para assinar ou
aprovar em sede de assembleia geral de accionistas.
“Sou engenheira e a maior parte
das minhas contribuições passou pelo desenho técnico da rede ou pelo marketing.
Os termos financeiros não foram uma contribuição minha. Não sei”, disse ainda
Isabel dos Santos a propósito da Tokeyna. A empresária garantiu também que esta
sociedade foi idealizada para ser uma sociedade da Unitel SA e que até já
procedeu à “transferência interna” da titularidade das acções para a empresa
angolana (embora continue a ser o seu nome aquele que, segundo os advogados da
PTV, aparece registado como accionista nas ilhas Virgens Britânicas).
“A Tokeyna é detida a 100% pela
Unitel SA, ou seja, pelos quatro sócios da Unitel, incluindo a PTV”, disse
fonte oficial da empresa ao PÚBLICO.
A propósito dos empréstimos
concedidos à Unitel International – cujos contratos o administrador da Unitel
SA, Amílcar Safeca (nomeado pelo general Leopoldino do Nascimento), reconheceu
no tribunal arbitral terem sido assinados sem a aprovação formal dos órgãos
sociais da empresa – Isabel dos Santos também demonstrou um conhecimento vago.
Estes empréstimos – em que a sua
assinatura surge do lado de quem empresta e do lado de quem pede emprestado –
serviram, entre outras coisas, para a empresária negociar a fusão entre a Zon e
a Optimus com a Sonae (dona do PÚBLICO) e criar a operadora Nos.
Quando questionada sobre se sabia
que os contratos previam que fossem feitos pagamentos periódicos de juros à
Unitel SA, respondeu que sim, que “havia umas certas condições nos contratos”,
mas que não estava ciente “de todos os termos e condições”. E quando o advogado
da PTV lhe fez notar que, “por exemplo, até ao final de 2013 não tinham sido
pagos quaisquer juros”, Isabel dos Santos remeteu a responsabilidade desses
pagamentos para o administrador financeiro da Unitel International, Diogo Santa
Marta (que tem o mesmo cargo na Unitel SA). O advogado da PTV referiu depois
que o primeiro pagamento só aconteceu duas semanas antes do início do
julgamento em Paris e questionou a origem do dinheiro.
“Acho que estava nas contas
[bancárias]” da Unitel International, disse a empresária, sem no entanto
explicar como é que o dinheiro lá foi parar (“eu não estou no dia-a-dia da
Unitel International, o meu papel sempre foi mais estratégico”), nem confirmar
se esta sociedade recebeu dividendos da Nos (“teria de verificar, não sei os
detalhes”), de que é accionista.
Outro tema em que a memória
atraiçoou Isabel dos Santos foi quando lhe perguntaram sobre o pagamento de
bónus a si e ao general Leopoldino do Nascimento (antigo chefe de Comunicações
do ex-presidente José Eduardo dos Santos) pelo menos até 2015 (ano em que a Oi
avançou para o tribunal arbitral) pelo facto de integrarem o comité de
monitorização da Unitel SA, criado em 2003. O comité “foi a maneira que
encontrámos para que duas pessoas, eu e o general Leopoldino do Nascimento,
estivéssemos sempre disponíveis para apoiar o conselho de administração quando
necessário”, explicou.
E ambos receberam bónus por
estarem nesse órgão? “Não me lembro disso”, respondeu a empresária.
Já o general, que explicou que o
comité “foi desenhado para formalizar uma espécie de co-gestão” da Unitel SA,
reconheceu que todos os anos (excluindo 2015) recebeu “um bónus anual
relacionado com a performance da companhia” pelo facto de estar neste órgão.
Folha 8 com PÚBLICO
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