domingo, 20 de maio de 2018

Visões em choque sobre a desnuclearização - Cimeira EUA-Coreia do Norte está em risco


Gregory Elich [*]

As esperanças crescentes geradas pela recente Cimeira Inter-Coreana são agora suplantadas pela incerteza, devido à suspensão pela Coreia do Norte de uma reunião planeada com o Sul. 

Nas semanas a seguir à cimeira da Declaração de Panmunjon, a Coreia do Norte efectuou acções para demonstrar sua boa vontade e desejo de resolução pacífica de diferenças.

A República Democrática e Popular da Coreia (RDPC, o nome formal da Coreia do Norte) anunciou que desmantelaria seu sítio subterrâneo de testes nucleares, o que culminaria em explosões para destruir túneis, no bloqueio de entradas e na remoção de instalações acima do solo.

Progressos substanciais já haviam sido feitos quanto à desactivação do sítio . A RDPC poderia ter esperado e feito disto uma questão negociável em conversações com os Estados Unidos. Ao invés disso, ela ofereceu este passo aos Estados Unidos antes da cimeira, como uma medida de construção de confiança. Também antes, a Coreia do Norte comprometeu-se a uma suspensão de testes nucleares e de mísseis . E como gesto adicional de boas intenções, a Coreia do Norte libertou todos os três prisioneiros americanos.

Os sinais iniciais das reuniões do secretário de Estado Mike Pompeo com o presidente Kim Jong Us foram bastante encorajadores, indicando um não característico grau de flexibilidade da parte da administração Trump. Os media norte-coreanos informaram que as conversações indicavam que Trump "tem uma nova alternativa" e uma "atitude proactiva" e que Kim e Pompeo haviam alcançado "um entendimento satisfatório".

Enquanto isso, quando Pompeo e Kim faziam aparentes progressos, o processo começou a descarrilar de um lado diferente. Houve muitos na administração Trump que não estavam entusiasmados com a ideia da reciprocidade. A visão dominante era que prémios, quaisquer que fossem, só podiam vir após a desnuclearização.

O Conselheiro de Segurança Nacional John Bolton saiu-se com uma série de entrevistas para elucidar a posição dos EUA. A desnuclearização permanente, verificável e irreversível teria de verificar-se antes de "os benefícios começarem a fluir", disse ele. A expectativa é que a RDPC deveria abandonar sua dissuasão nuclear sem receber qualquer coisa mais em retorno além da promessa de prémios futuros. Nem tão pouco Bolton considera que o desarmamento nuclear será suficiente. As negociações ainda não começaram e os EUA já estão a amontoar novas exigências. As conversações, Bolton insistiu, também precisariam considerar o programa de mísseis balísticos da RDPC e preocupações com direitos humanos. Armas químicas e biológicas também estarão na agenda, disse ele, apesar do facto de a sua existência ser puramente especulativa. Negociações sobre desnuclearização serão só por si bastante desafiadoras. Sobrecarregar as conversações com questões adicionais é provável que seja uma receita para o fracasso.

Mesmo quando a Coreia do Norte se esforça para atender exigências americanas, ela não pode esperar qualquer alívio quanto a sanções e ameaças. Bolton assevera que os EUA precisam ver a Coreia do Norte a implementar adesnuclearização e a política da máxima pressão não esmorecerá até que isso aconteça.

Que espécie de benefícios pode a Coreia do Norte esperar como retorno pelo cumprimento das exigências dos EUA? "Eu encararia a nossa ajuda económica", declarou Bolton sem rodeios . Presumivelmente, uma vez que a Coreia do Norte tenha satisfeito todas as exigências da administração Trump, as sanções começariam a ser reduzidas ou eliminadas. Isso não é um prémio. Se alguém está a punir outro, e então promete reduzir o montante da punição, certamente se pode dizer que a vítima não encarará isso como um "prémio".

Na frente económica, Mike Pompeo concorda com Bolton. Nenhuns fundos do contribuinte serão direccionados paraassistir a Coreia do Norte , disse ele. O que os Estados Unidos estão desejosos de fazer é enviar vorazes investidores corporativos à Coreia do Norte em busca de oportunidades para fazer lucros. Uma vez tendo sido completada a desnuclearização e levantadas as sanções, Pompeo diz que o presidente Kim "obterá da América o que ela tem de melhor – nossos empresários, nossos tomadores de risco, nossos fornecedores de capital... Eles obterão entradas de capital privado". Uma forte argumentação poderia ser feita de que estes são realmente o que há de pior na América e não são desejáveis para a Coreia do Norte nem para qualquer outra nação.

Pompeo prosseguiu a falar acerca das necessidades da Coreia do Norte em energia, agricultura, equipamento e tecnologia. As necessidade existem. Mas por que? Durante décadas os Estados Unidos sujeitaram a RDPC a enormes danos económicos por meio das sanções. O povo norte-coreano não é incapaz de melhorar sua sorte. Ele só precisa que lhe seja permitido fazê-lo, sem embaraços e punições. O que a RDPC precisa e ao que apela sistematicamente é à normalização de relações.

Certamente a Coreia do Norte não procura privatizar firmas estatais ou contratar firmas dos EUA para trabalhos que ela é capaz de fazer por si mesma, uma vez libertada do fardo das sanções.

Está claro que a administração Trump não está desejosa de dar o que quer que seja à Coreia do Norte. Não custa nada levantar sanções ou alimentar a esperança de que oportunidades lucrativas na Coreia do Norte florescerão para investidores estado-unidenses. Assinar um pedaço de papel prometendo uma garantia de segurança não impõe qualquer fardo sobre os Estados Unidos. A administração Trump, ou aliás qualquer futura administração, é livre para ignorar aquela garantia e disparar os mísseis de cruzeiro sempre que achar conveniente.

Nem tão pouco a retirada da administração Trump do acordo nuclear com o Irão inspira confiança na confiabilidade dos Estados Unidos como parceiro negocial.

Os pronunciamentos de Bolton, ajudado talvez por manobras de bastidores, parecem ter levado Pompeo a recuar das suas declarações anteriores acerca de ter sido feito progresso e ter sido alcançado um entendimento mútuo com o presidente Kim. Ele agora está a informar que resta muito trabalho a fazer e que os EUA e a Coreia do Norte não estão " nada próximos ".

"Temos muito em mente o modelo da Líbia de 2003, 2004", disse Bolton recentemente à Fox News. Naquele modelo a Coreia do Norte teria de despachar suas armas nucleares para Oak Ridge, Tennessee, para destruição. À RDPC seria exigido completar o desarmamento antes e receber alívio em relação às sanções depois.

Então como é que esse modelo funcionou para a Líbia ? Aquele país começou por desnuclearizar no princípio de 2004 e, ao longo do processo, cumpriu plenamente as exigências dos EUA de desnuclearização unilateral. Mas os Estados Unidos foram vagarosos quanto à compensação e os líbios muitas vezes queixaram-se a diplomatas americanos de não terem sido premiados pelo seu cumprimento. Só em 2006 éM que os EUA restabeleceram relações diplomáticas e removeram a Líbia da lista de estados patrocinadores de terrorismo.

Embora os EUA fossem morosos em dar alívio à Líbia, estavam ansiosos por emitir mais exigências. John Bolton, que foi sub-secretário de Estado na administração George W. Bush naquela altura, disse a responsáveis líbios que eles tinham de cortar a cooperação militar com o Irão a fim de completar o acordo de desnuclearização. Em pelo menos uma ocasião, um responsável dos EUA pressionou a Líbia a cortar o comércio militar com a Coreia do Norte, o Irão e a Síria.

Responsáveis americanos também exigiram que a Líbia reconhecesse a independência do Kosovo , uma posição a que a Líbia se opôs sistematicamente. A isto seguiu-se uma nota diplomática dos EUA para a Líbia, ordenando que votasse contra a [proposta de] resolução do governo sérvio nas Nações Unidas, a qual pedia uma sentença do Tribunal Internacional de Justiça sobre a legalidade da independência do Kosovo. Nessas circunstâncias, a Líbia preferiu ausentar-se da votação ao invés de juntar-se aos Estados Unidos e aos outros três países que se opuseram à medida.

Os EUA tiveram mais êxito ao obter o voto da Líbia em favor de sanções da ONU contra o Irão . Sob pressão dos EUA, a Líbia também lançou um programa de privatização e abriu oportunidades para negócios dos EUA.

A Coreia do Norte pode esperar o mesmo tratamento se seguir este modelo. Os Estados Unidos começarão a tratá-la como um estado vassalo, esperando que cumpra ordens sobre uma miríade de questões que nada têm a ver com desnuclearização.

Todos nós sabemos como o modelo terminou, com os Estados Unidos e seus parceiros da NATO a bombardearem a Líbia e com o assassinato brutal de Muammar al-Qaddafi. Os norte-coreanos também sabem.

Em 2006 a Grã-Bretanha e a Líbia assinaram uma Carta Conjunta sobre Paz e Segurança. O documento declarava que as duas nações "comprometiam-se nas suas relações internacionais a absterem-se da ameaça ou da utilização de força contra a integridade territorial ou independência política um do outro". Ela ainda obrigava as partes aabsterem-se de intervir nos assuntos internos um do outro. Cinco anos depois a Grã-Bretanha estava a ajudar jihadistas a combaterem para derrubar o governo e juntou-se à NATO no bombardeamento da Líbia. Isso é o modelo líbio, também, no qual está provado que uma "garantia" de segurança ocidental não tem valor.

A RDPC tem em mente uma abordagem mais crível, acção-por-acção, para as negociações. Nesta há uma abordagem faseada e cada lado ganha alguma coisa à medida que o progresso continua rumo ao objectivo final da desnuclearização e da normalização de relações.

Continuando a estabelecer um quadro de respeito mútuo pelas negociações, este mês a Coreia do Norte reduziu drasticamente a escala de seus exercícios anuais com veículos blindados.

Contudo, Washington está a enviar sinais de uma natureza diferente. Em 11 de Maio arrancaram os exercícios aéreos Max Thunder EUA-Coreia do Sul, mobilizando mais de 100 aviões de combate, incluindo o avançado Stealth F-22 Raptor. O exercício deste ano é o maior já efectuado, numa aparente tentativa de aplicar pressão adicional à Coreia do Norte.

Em resposta, a Coreia do Norte anunciou que suspendia sua reunião de 16 de Maio com responsáveis sul-coreanos. A KCNA, agência de notícias da Coreia do Norte, destacou que os exercícios ampliados constituíam "um desafio sem disfarce à Declaração de Panmunjon", na qual ambas as Coreias se comprometiam a cessar todos os actos hostis. A notícia acrescentava que a Declaração de Panmunjon não pode ser implementada apenas por uma das partes.

Seguiu-se o primeiro vice-ministro dos Negócios Estrangeiros da RDPC, Kim Kye Gwan, anunciando que a melhoria nas relações com os Estados Unidos arriscava-se a ser desfeita por responsáveis americanos apelarem ao desarmamento unilateral e a aderência ao modelo líbio. A Coreia do Norte já declarou sua intenção de desnuclearizar em troca de um fim à política hostil dos EUA, continuou ele. "Mas agora os EUA estão a avaliar mal a magnanimidade e as iniciativas com abertura de espírito da RDPC como sinais de fraqueza".

A Coreia do Norte deixou a porta aberta para os EUA e a Coreia do Sul. A reunião de 16 de Maio com responsáveis sul-coreanos foi suspensa, não cancelada. E os norte-coreanos estão a dizer que observarão de perto o comportamento dos EUA e de responsáveis sul-coreanos. Retratado nos media ocidentais como um acto de inexplicável petulância, a suspensão da reunião inter-coreana é um alerta para os Estados Unidos e a Coreia do Sul. O modelo da capitulação não é uma abordagem viável. A reciprocidade é essencial.

Os norte-coreanos não estão em vias de renunciar à sua dissuasão nuclear por nada mais do que uma promessa vazia de segurança e pela sugestão de que sanções podem ser levantadas se cumprirem uma multidão de exigências adicionais.

Durante a administração Obama o programa de armas nucleares da Coreia do Norte estava numa etapa de desenvolvimento suficientemente imatura que os Estados Unidos sentiram poder exigir que a Coreia do Norte desnuclearizasse plenamente como condição prévia para conversações.

Depois de a RDPC ter completado seus programas acelerados de armas nucleares e mísseis balísticos, ela agora tem alguma coisa de substancial para negociar. Ela espera que os Estados Unidos se empenhem nas negociações diplomáticas normais das concessões mútuas. O antigo representante do Departamento de Estado para a Coreia do Norte, Joseph Yun , observa: "O preço subiu. Você tem de tratar do que eles querem. Se acredita que eles deveriam tratar só do que nós queremos penso que é um caminho muito, muito errado". 

17/Maio/2018

Ver também: 
  Tentará John Bolton repetir o seu feito?

[*] Director do Jasenovac Research Institute e associado do Korea Policy Institute, membro do Comité de Solidariedade para a Democracia e a Paz na Coreia e membro da Task Force to Stop THAAD in Korea and Militarism in Asia and the Pacific. Seu sítio web é https://gregoryelich.org

O original encontra-se em www.zoominkorea.org/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

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