Vivemos no país em que um
ex-ministro da Economia acha que pode ir ao Parlamento falar de tudo menos
daquilo que importa. Na terça-feira, o país assistiu a um show de
impunidade.
João Miguel Tavares | Público |
opinião
Manuel Pinho foi ao Parlamento
fazer-nos corninhos. Outra vez. Não por gestos – mas por palavras. Ele não deu
uma única justificação em relação àquilo de que é suspeito: ter continuado a
receber salário do BES enquanto era ministro da Economia; ter recebido uma casa
em Nova Iorque em troca de certos favores; ter recebido um lugar na
Universidade de Columbia em troca de outros favores. Sobre isso, nada. Mas a
sua intervenção foi muito instrutiva. Demonstrou não só a mais descarada falta
de ética de tantos governantes da era Sócrates, como ajudou a clarificar aquilo
que tem sido uma das mais perniciosas tendências da nossa democracia: a
confusão lastimável (e propositada) entre responsabilidade criminal e
responsabilidades políticas, morais ou disciplinares, numa barafunda de planos
distintos, com o argumento de que se os tribunais não condenaram, então toda a
gente deve ser tida por inocente. Politicamente inocente. Moralmente inocente.
Disciplinarmente inocente.
Não, não deve – e Manuel Pinho
fez o tremendo favor de demonstrar ao país porque é que não deve. Esta questão
tem sido recorrentemente abordada por mim, e ainda há pouco a invoquei a propósito de
Domingos Farinho. No caso da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, confunde-se responsabilidade disciplinar e ética com responsabilidade
criminal. No caso de Manuel Pinho, confunde-se responsabilidade ética e
política com responsabilidade criminal. O mesmo Pinho que de manhã arranjou um
incidente processual para não responder às questões do Ministério Público, à
tarde estava a queixar-se de nunca ter sido confrontado pelo Ministério Público
com os indícios daquilo de que é acusado. Se isto não é fazer-nos corninhos, é
o quê? Vivemos no país em que um ex-ministro da Economia acha que pode ir ao
Parlamento falar de tudo menos daquilo que importa. Na terça-feira, o país
assistiu a um show de impunidade.
Manuel Pinho foi passear a sua
pose professoral diante dos senhores deputados. Foi dizer-nos o que fazer para
diminuir a conta da electricidade. Propôs baixar o IVA e eliminar a taxa do
audiovisual. Trouxe um Powerpoint que demorou tempo a compor, e que segundo ele
continha dados magníficos, que ofereceu ao Parlamento com generosidade e
sapiência. Disse que talvez fosse publicar um livro com aquela informação, tão
útil ela é. Partilhou a sua mundividência e as suas inúmeras viagens. Disse
maravilhas sobre a China, e de como a sua economia, juntamente com a da Índia, Japão
e Coreia, já é maior do que as economias americana e europeia juntas.
E no meio de tanta sabedoria
vertida, quando lhe perguntaram pelo BES disse que não podia responder. Sobre a
sua colecção de offshores disse que não podia responder. Nem sobre as
declarações ao Tribunal Constitucional. Há tempos, afirmou que não respondia
porque era arguido. Agora, afirmou que não respondia porque já não era arguido.
E assim sucessivamente. Manuel Pinho até achou conveniente dar sermões aos
deputados mais insistentes, afirmando que não foi para isso que tinha sido
convidado. Anunciou que tinha imposto as suas condições para ir ao Parlamento e
que elas tinham sido aceites. Declarou que quando convidamos uma pessoa para ir
ver futebol a nossa casa não a pomos a esfregar o chão. Para Manuel Pinho,
responder sobre suspeitas gravíssimas na casa da democracia portuguesa é
semelhante a esfregar o chão. Por uma vez, a boca fugiu-lhe para a verdade.
Inocente, só se tiver sido aí.
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