A ausência de fiscalização das
moradas dos deputados é um tratado sobre a falta de transparência do
Parlamento. Pior: é a prova de como não existe um escrutínio que respeite os
contribuintes.
Luís Rosa | Observador | opinião
“Não incumbe aos serviços da
Assembleia da República averiguar (fiscalizar) qual é, na realidade, o local de
residência efetiva (habitual) do deputado, sendo a ele que incumbe declarar,
para os efeitos em causa, qual é, em cada momento, essa residência.”
Lemos e não acreditamos. Os
serviços da Assembleia da República não têm de verificar as moradas do senhores
deputados para o pagamento dos subsídios de deslocação depois de inúmeros e
espantosos casos (ver aqui, aqui,
e aqui) de deputados que têm casa em Lisboa mas que recebem
ajudas de custo por darem uma morada do seu círculo eleitoral situado fora da
Área Metropolitana de Lisboa?
Foi o que a senhora auditora
jurídica da Assembleia da República, Maria Isabel Fernandes Costa, defendeu num
parecer que mereceu a concordância de Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia
da República. Numa atitude pouco ecologista, a senhora auditora gasta 22
páginas de papel num parecer em boa parte ilegível (como é habitual nos
juristas portugueses) sobre o conceito de residência. Sim, leu bem, caro
leitor. Saber como se define a residência habitual ou secundária de um deputado
merece 22 páginas.
É certo que na pág. 8 há uma
definição bastante simples e razoável. Imagine de quem? Do Fisco, claro, que
gasta sete linhas a dizer o óbvio: “para as pessoas singulares”, a morada que
conta “é o local de residência habitual; para as pessoas coletivas, o local da
sede ou direção efetiva ou, na falta destas, do seu estabelecimento estável em
Portugal” logo, daí decorre que, “sendo o domicílio fiscal, em regra e por
imposição legal, o local de residência habitual do sujeito passivo e estando
este obrigado a respeitar essa identidade, haverá, por princípio, coincidência
entre domicílio voluntário geral e o domicílio fiscal”. Simples, não?
Para a senhora auditora, isso não
chega. “O domicílio fiscal, sendo um domicílio especial, apenas releva no
âmbito das relações jurídico-tributárias”, sendo por isso “inócuo” para o nosso
Parlamento.
Daí aquela frase seca acima
citada, que, após muita dissertação sobre o que é a “residência habitual”, as
“residências habituais alternativas”, a “residência transitória ou ocasional”,
aparece na pág. 21. Na prática, significa isso que “incumbe ao deputado indicar
qual dessas residências deve ser considerada”, sendo que “não tem qualquer
relevância o facto de o deputado ter casa em Lisboa, a menos que o deputado
tenha aí a sua residência habitual”.
Acima de tudo, este parecer e a
ausência de fiscalização que o mesmo defende é um autêntico tratado sobre a
falta de transparência que reina no Parlamento. Pior: é a prova de como os
dinheiros públicos que financiam o pagamento dos abonos e ajudas de custo dos
deputados continuam sem um escrutínio que respeite os contribuintes que são
obrigados a entregar uma parte do seu rendimento ao Estado.
Imagine-se que os cidadãos
exigiam os mesmos direitos junto do Fisco ou da Segurança Social? Que uma
bonificação ou isenção fiscal também podia depender apenas da palavra do
contribuintes? Que uma baixa por doença não necessitava de um atestado médico à
priori? Que qualquer prestação social atribuída pela Segurança Social não
necessitaria de qualquer tipo de fundamentação, verificação ou fiscalização?
Impensável, não é? Aparentemente, essas regras básicas da vida real de qualquer
contribuinte ou beneficiário da Segurança Social não se aplicam aos senhores
deputados.
O mesmo Estado que, através do
seu segundo representante máximo (o presidente da Assembleia da República),
considera que não deve verificar a morada dos senhores deputados, é o mesmo
Estado que faz tudo o que está ao seu alcance para esmifrar (é a palavra
cada vez mais certa) fiscalmente o cidadão de classe média do setor privado. Cobrando impostos, taxas, multas, coimas e tudo o que tiver à mão para angariar
receita que pague o monstro que dá pelo nome de despesa pública — a qual
ninguém está interessado em reduzir. Provocando um ambiente de medo de qualquer
ação da administração fiscal e contributiva. E, mais importante do que isso,
invertendo o ónus da prova no que à Justiça Tributária diz respeito para que o
cidadão de classe média não tenha outra alternativa senão pagar, pagar, pagar e
pagar tudo o que o Estado exige. Mesmo para reclamar judicialmente seja o que
for, não tem outra solução senão pagar — no caso, uma caução do valor que
pretende impugnar. É assim que se consegue bater recordes de ano para ano sobre
o peso da carga fiscal na economia — já vai em
37% do PIB –, apesar dos desmentidos de
António Costa.
Esta é uma realidade que não
abrange os senhores deputados não conhecem. Até porque, como o Observador noticiou em
abril a propósito dos recibos de vencimento divulgados pelo deputado Ascenso
Simões (PS), cerca de 47% do rendimento bruto daquele deputado de Vila Real
(com casa em Lisboa) corresponde a ajudas de custo e a três subsídios de
deslocação estão isentos de impostos. O ato público do deputado socialista
custou-lhe críticas dos pares mas fez mais pela transparência do Parlamento do que muitas outras anunciadas com pompa e circunstância.
Porque estes dois pesos e duas
medidas são, de facto, uma das maiores causas da quebra da confiança entre
representados e representantes e, em última instância, são um dos maiores
convites possíveis a um crescimento ainda mais sustentável da abstenção e ao
aparecimento de partidos populistas com real poder eleitoral.
Viver na periferia da Europa não
significa imunidade ao fenómeno populista. Significa apenas que, como tudo
o resto, chegará tarde e a más horas. Mas chegará.
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