sábado, 25 de agosto de 2018

Macau | Ex-conselheiro confirma política da DSEJ de encaminhar alunos homossexuais para médicos


As orientações existem e são claras: se um conselheiro escolar precisar de avaliar se um aluno é homossexual, este terá que ser encaminhado para o hospital. Isto mesmo confirmou um ex-conselheiro escolar ao PONTO FINAL. A este jornal, o psicólogo Henrik Hoeg alertou para os danos que tais “exames” podem trazer, e classificou as afirmações da vice-directora da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude como “moralmente abomináveis”. 

Um ex-conselheiro escolar confirmou ao PONTO FINAL as directrizes da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ) de encaminhamento dos alunos homossexuais para o hospital público. Ng (nome fictício), que actualmente é professor de Educação Moral e Cívica numa escola secundária de Macau, garantiu que as orientações assumidas na semana passada por Leong Vai Kei, vice-directora da DSEJ, existem, e explicou que se devem ao facto da maioria dos conselheiros escolares serem assistentes sociais, não tendo qualquer formação em aconselhamento ou psicologia. Henrik Hoeg, psicólogo em Hong Kong, afirmou, em declarações a este jornal, que estes “exames”, para além de não serem “clínicos, científicos ou válidos”, são uma “violação do direito à privacidade”.

Ainda que, segundo Ng, as orientações da DSEJ refiram que um conselheiro escolar deve ser especializado em psicologia, aconselhamento ou serviço social, a realidade é que a maioria destes profissionais são assistentes sociais. Como consequência, continua o professor, “se um conselheiro escolar precisar de uma avaliação oficial, a única forma de o fazer é no hospital e existem orientações claras para isso”. “A DSEJ tem um departamento para avaliar os estudantes com necessidades educativas especiais, contudo, no que diz respeito à homossexualidade, não existe nem um departamento nem psicólogos que possam escrever a avaliação oficial para classificar as preferências do estudante. Por isso é que a vice-directora disse que se um estudante está confuso quanto às suas preferências homossexuais, a única forma é enviá-lo para um médico no hospital”, explicou o ex-conselheiro, formado em Psicologia nos Estados Unidos da América.

Ainda que Ng considere que esta prática “não é a coisa correcta a fazer” e que “os conselheiros escolares podem fazer mais antes de enviar os alunos para o hospital”, o professor sublinha que “o sistema indica que o conselheiro escolar tem de enviar os alunos para lhes ser feita uma avaliação antes de lhes dar apoio”. “Estas são as direcções da DSEJ que nós temos de seguir. Se um conselheiro escolar suspeita que um aluno tem preferências homossexuais, a única forma deles terem uma avaliação é através de um médico no hospital. Muitos dos conselheiros não têm formação em psicologia e por isso é que, se um assistente social tem problemas em classificar um aluno como homossexual, apenas o pode encaminhar para o hospital”, explicou.

“OS DANOS PSICOLÓGICOS QUE TAIS IDEIAS CAUSARAM HISTORICAMENTE SÃO TÃO ESMAGADORES QUE SÃO QUASE IMENSURÁVEIS”

Questionado quanto aos efeitos que tais avaliações podem ter nos alunos, o psicólogo Henrik Hoeg começa por afirmar que “tais ‘exames’ não são, de forma alguma, clínicos, científicos ou válidos, são uma violação do direito à privacidade ao tentar excluí-los e os seus efeitos provavelmente serão psicologicamente nocivos”. “Tentar diagnosticar a homossexualidade nunca é um fim em si e invariavelmente leva à discriminação e perseguição. O ‘diagnóstico’ ou quaisquer tentativas de ‘conversão’ não só são ineficazes mas profundamente inumanos e prejudiciais”, declarou o também director-geral do Jadis Blurton Family Development Center.

Quanto às declaração de Leong Vai Kei, que se referiu à homossexualidade como uma doença que requere um “diagnóstico clínico”, Henrik Hoeg classificou-a de “moralmente abominável”. “Não só está o consenso científico e psicológico em completo desacordo com a afirmação da vice-directora, como a afirmação é moralmente abominável. Os danos psicológicos que tais ideias causaram historicamente são tão esmagadores que são quase imensuráveis. Recai não só nos profissionais médicos e psicólogos, mas também nos aliados LGBTQ+ e cidadãos, denunciar os dirigentes que fazem estas declarações danosas, discriminatórias e ultrapassadas”, afirmou.

Henrik Hoeg explicou ainda que o “livro de psicologia que tem algumas descrições sobre o homossexual”, a que se referiu Leong Vai Kei – o “DSM-5” (“Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders”) –, “não pode ser usado para diagnosticar a homossexualidade”. “A homossexualidade, como a vice-directora a entende, não aparece desde a versão de 1973 do ‘DSM-II’. O ‘DSM-V’ não pode ser usado para diagnosticar a homossexualidade, nem faz qualquer sentido usar a palavra ‘diagnóstico’ uma vez que a homossexualidade não é absolutamente uma doença”, explicou o psicólogo. “Tendo em conta os comentários, eu duvido muito que a vice-directora alguma vez tenha olhado para o ‘DSM-V’”, acrescentou Hoeg.

Numa resposta enviada ao PONTO FINAL, a Associação de Psicologia de Macau recorda que a Organização Mundial de Saúde desclassificou a homossexualidade como uma doença em 1990. “Por outras palavras, não existe qualquer associação inerente entre a orientação sexual e a psicopatologia”, indicou. Por outro lado, a associação aponta que o estigma social tem um impacto psicológico negativo nos indivíduos homossexuais. “O preconceito e a discriminação limitam o seu acesso a apoio social e aumentam os seus desafios com auto-aceitação, ansiedade, depressão e suicídio”, afirmou a associação.

“É UM PROBLEMA SEVERO PORQUE AFECTA MUITO A PRÓXIMA GERAÇÃO”

Para Ng, as declarações de Leong Vai Kei reflectem um problema mais generalizado e não apenas as opiniões pessoais da vice-directora. “O sistema de aconselhamento em Macau está muito atrasado. Eles não contratam os profissionais para serem conselheiros escolares. Os conselheiros escolares deviam ter algum treino em psicologia”, defendeu. Como exemplo, o professor aponta os quatro anos em que foi conselheiro escolar, durante os quais, apesar de ser formado em Psicologia, se um aluno precisasse de uma avaliação formal, tinha que ser encaminhado para o hospital público. “Ainda que a minha licenciatura me desse a autoridade de fazer o teste, eu não o podia fazer por causa do meu título”, explicou.

Por outro lado, o professor lamenta que a legitimidade dos psicólogos seja “minimizada” em Macau. “Muitas pessoas não percebem aquilo que fazemos e por isso é que os casos de homossexualidade são directamente enviados para os médicos. Muitos psiquiatras não têm formação em aconselhamento, mas os psicólogos têm. Por isso é que eu acho que alguns casos devem ser enviados para psicólogos, contudo, em Macau, são todos enviados para psiquiatras”, critica. “O sistema em Macau tem de ser actualizado. É um problema severo porque afecta muito a próxima geração. É um problema e a DSEJ tem de saber que é um problema”, declarou Ng.

Catarina Vilanova | Ponto Final | Foto: Eduardo Martins

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