Manuel Carvalho da Silva | Jornal
de Notícias | opinião
O debate sobre o imobiliário, em
particular acerca da existência ou inexistência de uma bolha especulativa e da
necessidade ou desnecessidade de a combater, trouxe à tona a atitude que aqui
designamos por negacionismo dos interesses imobiliários e se caracteriza pela
recusa obstinada de toda a evidência de sinais de bolha especulativa.
O especulador é alguém, ou alguma
instituição nomeadamente financeira, que se dedica a comprar barato seja o que
for para vender caro o que compra, sem lhe acrescentar valor ou acrescentando
muito pouco. Para o especulador, o mais importante de tudo é evitar que se
difunda a opinião de que as coisas, a cuja compra e venda se dedica, tendem
para a desvalorização e não para a valorização.
Mesmo que durma mal, em resultado
de pesadelos com bolhas a rebentar, o especulador obriga-se a si mesmo a
acordar enérgico, exalando confiança por todos os poros. Ele precisa de
"demonstrar" que as tais coisas a cuja compra e venda se dedica (não
importa o quê) se vão valorizar amanhã, e depois de amanhã, e assim
sucessivamente até ao dia do juízo final. O especulador sabe que, se os seus
clientes e potenciais clientes passarem a ter pesadelos como ele, as bolhas
podem rebentar. Daí o negacionismo militante dos grandes interesses
imobiliários.
A crescente difusão do discurso
negacionista em torno do setor imobiliário é, em si mesmo, um indício de que há
real perigo de bolha e do seu rebentamento. Os especuladores, contudo, vão
desdobrar-se na produção de argumentos técnicos, sociais e políticos que possam
convencer o comum das pessoas de que não há perigo iminente. Um deles, muito
difundido nestes dias, reza o seguinte: as bolhas especulativas só seriam
perigosas se os que se dedicam à compra e venda de imóveis recorressem ao
crédito bancário, dando como garantia dos empréstimos aquilo que compram com
esse crédito. Isto porque, quando assim acontece e a bolha rebenta, o
especulador deixa de conseguir vender ao preço desejado o objeto de especulação
e não consegue pagar o que deve ao banco e, o banco, embora penhorando os bens
em causa, não obtém com a penhora o valor do crédito concedido. Neste cenário,
como bem sabemos, perde o especulador, perde o banco, perdem duplamente as
pessoas que eram proprietárias, caso as perdas dos bancos sejam socializadas -
pagas com os nossos impostos e rendimentos - como tem acontecido.
Agora, prega o negacionismo
vigente, esse cenário não emergirá pois, dizem eles, os especuladores são
fundos imobiliários que não recorrem ao crédito bancário. E acrescentam que se
a bolha rebentar perderão os fundos e a história acabará aí.
Ora, há pelo menos três
"detalhes" que ficam de fora dessa história. Primeiro: no processo de
especulação os habitantes das cidades são expulsos para as periferias. Segundo,
os preços das habitações nas periferias crescem, embora a ritmo inferior, e
essas são compradas a crédito. Terceiro, os preços das habitações, quer nos
centros quer nas periferias, tornam-se proibitivos para quem dispõe de
rendimentos que permanecem estagnados ou quase, como acontece com a maioria dos
portugueses.
A vida de especulador é tão
absorvente que não deixa tempo para considerar factos simples: as casas existem
para as pessoas viverem nelas e não para serem instrumento de enriquecimento
acelerado de alguns; as cidades existem para serem habitadas e organizadas de
forma a possibilitarem proximidade aos bens e serviços de que os cidadãos
necessitam para trabalhar e viver com dignidade; o crédito bancário para compra
de habitação não deixou de existir e não pode esmagar a vida das pessoas e das
famílias.
Por muito que custe aos
negacionistas, devem ser consideradas com respeito, e não descartadas
arrogantemente, as propostas avançadas para combater a especulação imobiliária.
E todos devemos de ter presente, também, que nas políticas de habitação como
nas do trabalho, as medidas fiscais podem e devem introduzir correções, mas é
imprescindível atuar a montante valorizando salários, distribuindo melhor a
riqueza desde a sua produção, garantindo, à partida, habitações disponíveis para
aluguer ou compra a preços compatíveis com os rendimentos das pessoas.
*Investigador e professor
universitário
Imagem em Repórter Sombra
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