Inês Cardoso | Jornal de Notícias
| opinião
Percebe-se a necessidade de
alguém que esteve tanto tempo na vida pública como Cavaco Silva de manter uma
voz. De chefe de governo derrubado por um buzinão a primeiro-ministro absoluto,
de candidato presidencial derrotado a duas vezes eleito, o seu percurso foi
sempre feito na fronteira.
Entre a crítica feroz e a
confiança dada nas urnas. Entre a narrativa falaciosa do não-político e a
ironia de ter sido a pessoa que mais tempo esteve, desde o 25 de Abril, a
governar o país.
O exercício de passar à escrita a
sua perspetiva dos cargos que ocupou é uma forma de continuar a aparecer
publicamente. Foi assim no tempo de intervalo entre São Bento e Belém. É assim,
agora, com as memórias dos dois mandatos presidenciais. Uma "prestação de
contas" que o faz voltar a ser ouvido.
Há, em tantas centenas de páginas
e conversas descodificadas, naturais surpresas e pormenores até aqui
desconhecidos. E essa revisitação poderia ser útil, até historicamente, se
procurasse fazer uma leitura política dos tempos.
O que Cavaco faz, no entanto, é
outra coisa. Opta pelas leituras de caráter. E ao entrar pelo caminho das
virtudes e sobretudo dos defeitos, sobra pouco além de uma visão distorcida do
que terão sido os factos. Claro que o cidadão Cavaco Silva tem direito a todas
as leituras pessoais. O ex-chefe de Estado, que nessa qualidade manteve
conversas e tomou decisões que pressupõem uma capacidade de olhar o país com
sentido de Estado, deveria evitar estados de alma pequenos.
Na vida pessoal, o azedume
envenena quem o sente. Na vida pública, reveste-se de outros perigos sociais e
políticos. Num tempo em que a agressividade tem feito caminho político um pouco
por todo o Mundo, vale a pena refletir nos riscos de pensar a coisa pública e
os seus protagonistas tendo o azedume como conselheiro.
*Diretora-adjunta do JN
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