Joaquim Ernesto Palhares | Carta
Maior | opinião
O salto reflete o clima de últimos dias de Pompéia vivido no quadro de um golpe
que já jogou a toalha em todas as dimensões.
Exceto uma.
Impedir que o maior líder popular brasileiro --o único, ainda, com capacidade
para superar o estilhaçamento político da nação-- deixe o cárcere e ouse construir
um novo pacto da democracia social com o desenvolvimento na oitava maior
economia da terra.
Nisso se resume o ‘derradeiro trem para Paris’ no qual a aliança da mídia com a
escória, o dinheiro e o judiciário se amarrota em busca de um assento mitigador.
Nem que para isso seja imperativo preservar a desordem na economia. E o caos na
esfera política.
Desordem econômica funcional, diga-se, para sepultar as chances de uma retomada
do crescimento e do emprego, das demandas e das mobilizações, da reversão do
entreguismo e do assalto aos direitos da cidadania e aos recursos da nação.
Caos político funcional, da mesma forma, para manter nas mãos do
conservadorismo a chave-mestra de todas as portas, afunilando o desespero
social no estuário das distintas ‘opções’ fascitoides e esquizoides para a
crise.
Estamos num plano inclinado vertiginoso. A economia se despedaça: nos últimos
três anos do ciclo golpista, o país fechou 13,8 mil indústrias, segundo o IBGE;
o investimento industrial diminuiu quase 25% (1/4) e o setor cortou 1,3 milhão
de vagas no período. Isso, num mundo em que a busca de competitividade já
impulsiona uma quarta revolução industrial, baseada em robôs e na inteligência
artificial.
Retalhos da nação são eviscerados e ofertados na bacia das almas aos capitais
sedentos de opções à liquidez necrosada da ciranda financeira global.
Entrega-se o pré-sal. E se enterra o país no desemprego.
A derrocada do setor petroleiro no Brasil é obra do desassombro demolidor.
Em dois anos, entre 2014 e 2016, quase metade das vagas na construção de
embarcações foram fechadas no país. O pessoal ocupado na área caiu de 61.543
para 31.505, uma queda de 49%.
No Rio de Janeiro, a redução da mão de obra foi ainda maior: 74,2% dos postos
de trabalho foram fechados entre 2014 e 2016.
O Exército na rua não vai suturar essa sangria da razão.
O vale-tudo conservador lubrifica os trilhos da espiral descendente com a
cegueira característica dos impulsos pró-cíclicos. Corte-se mais. ‘Privatize-se
tudo o que for possível’, como receitou o sociólogo Fernando Henrique Cardoso.
Nesse atropelo da razão, da nação e do Estado de Direito, ao papel sabido de
Sergio Moro & Cia, junta-se agora a desconcertante figura do ministro Edson
Fachin, cujo retrofit nos valores espanta a própria biografia.
Se o Brasil fosse um filme do cineasta Costa Gavras, o ministro Fachin teria
suas motivações privadas colhidas pelas lentes silenciosas da miséria humana.
O viés desse olhar mudo talvez explicasse –garantem alguns— o travestismo
histórico desse homem da lei, de passado progressista, que ora assume a ponta
de lança da sofreguidão conservadora para sustentar o encarceramento ilegal do
cidadão Luiz Inácio Lula da Silva, impedi-lo de se candidatar, abduzi-lo da
visão política dos eleitores e, assim, e somente assim, dissocia-lo de um
escrutínio do qual dificilmente sairia para uma outra condição que não a de
Presidente da República.
As artimanhas jurídicas de Fachin espantam o mundo jurídico pelo duplo atentado
à democracia e ao percurso de vida do jurista.
Segundo o ministro Marco Aurélio, Lula permanece ilegalmente preso graças à
ministra Carmem Lúcia que não coloca em julgamento as Ações Declaratórias de
Constitucionalidades (ADCs) que poderiam libertá-lo.
É pior que isso.
E por ‘pior’ leia-se, ‘Fachin’.
Um histórico necessário.
Fachin encarnou a missão de barrar um pedido do ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva para suspender sua condenação pelo Tribunal Regional Federal da 4ª
Região (TRF-4).
Na semana passada, o ministro mandou arquivar recurso que pedia a suspensão dos
efeitos da condenação - e que estava previsto para ser julgado nesta terça
(26/06) pela segunda turma do STF.
A defesa de Lula entrou com novo recurso, pleiteando que o ministro
reconsiderasse a decisão diante de um histórico processual que feria garantias
constitucionais.
O TRF-4, alerta e veloz como uma corsa, ergueu-se contra esse novo pedido ao
Supremo, sob a justificativa de que o reexame de provas, por exemplo, não seria
de competência da Corte.
A defesa de Lula não teve outro caminho a não ser recorrer ao próprio STF
solicitando que o recurso fosse julgado pela segunda turma, que acaba de
determinar a libertação do ex-ministro José Dirceu, reafirmando a sua
composição claramente crítica à natureza política assumida pela Lava Jato.
Emparedado mas indiferente à estupefação que manifesta no mundo jurídico e
político, Fachin ainda encontrou espaço para a rasteira final.
Mostrou mais uma vez encarnar o espírito do capitão-do-mato determinado a
cumprir a missão que lhe foi reservada nesse túnel da história.
O ministro decidiu levar ao plenário mais adverso, o pleno da Corte, o
julgamento desse recurso, o que, ademais, protela sua análise no mínimo para
agosto, uma vez que em julho o STF entra em recesso.
A definição exata da data caberá a Cármen Lúcia, a presidente do tribunal
festejada pelas Organizações Globo, cuja sintonia com a agenda do desastre
golpista dispensa reiterações.
Pode-se esperar o pior, portanto: o adiamento do exame do recurso para depois
do período de inscrição de chapas ao pleito presidencial.
A armadilha excretada nas últimas horas não destoa do padrão do lavajatismo
protagonizado por Sergio Moro & Cia.
Mas a captura de um jurista com o perfil de Edson Fachin, que empresta sua
biografia, as vértebras e as mandíbulas à mastigação do Estado de Direito, dá o
peso e a medida do jogo pesado que se abre nesse entroncamento entre uma
aventura golpista fracassada e a hora da verdade nas urnas.
A caçada desabrida à candidatura Lula aferra-se à determinação de manipular
esse acerto de contas, nem que para isso seja preciso entregar a nação ao vácuo
no qual proliferam os esporos de um higienismo social de sarjeta, mas não menos
virulento que o original.
A captura de Fachin por esse triturador ilustra a virulência do processo para o
qual já se advertia desde o início quando alguns ainda nutriam esperança numa
salvação no STF, ao abrigo de ‘éticos’, como o jurista paranaense nomeado por
Dilma para a vaga de Joaquim Barbosa.
Contra essa esperança já se ouviam premonições graves recebidas com
incredulidade ainda, em fevereiro de 2017, como aconteceu, então, em uma roda
no Hospital Sírio-Libanês, onde dona Marisa, sedada e já sem fluxo cerebral,
agonizava e Lula recebia a solidariedade de amigos e políticos.
Em meio a especulações sobre o futuro do país e o destino do ex-presidente na
Lava Jato, uma ex-ministra de Dilma, num círculo do qual faziam parte
dirigentes e lideranças do PT, advertia que a situação seria muito difícil
também no STF...
E não apenas por conta de Cármen, Gilmar, Fux, etc., explicou.
Exatamente naquela semana, no início de fevereiro, Fachin acabara de ser
sorteado relator da Lava Jato no Supremo. Dias antes pedira para trocar de
turma e assim poder concorrer ao cargo...
Sugestivamente, foi o escolhido pela roleta...
O jurista substituiria assim o ministro Teori Zavascki, morto em desastre aéreo
em Paraty, na costa sul fluminense, em episódio sobre o qual ainda recaem
dúvidas e interrogações.
'Fachin está nas mãos deles', dizia a ministra em voz baixa aos que
manifestavam esperança com a nova titularidade da relatoria.
Em tom recolhido a ex-ministra puxou um dos presentes pelo braço e assumiu o
centro da rodinha para balbuciar:
'Eles estão chantageando o Fachin’.
Para muitos, ela parecia falar de outra pessoa que não a figura simpática do
militante católico da ala progressista da Igreja, advogado ético, defensor do
MST, ungido ao Supremo como um potencial contraponto à barricada conservadora.
Edson Fachin, em cerca de 60 anos, montou sua biografia nessa vertente da
história.
Não por acaso, sua nomeação para a vaga de Joaquim Barbosa em 2015 --após oito
meses de vacância meticulosa por parte do governo Dilma-- foi recebida com
restrições conservadoras.
Sua sabatina confirmou o que se anunciava: foi uma das mais difíceis e
demoradas da história. Durou cerca de 12 horas.
Defensor da reforma agrária e do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ele
contrariava duas bancadas poderosas: a evangélica e a ruralista.
Não só. Defensor da função social da propriedade da terra, tema de um dos seus
livros, carregava a marca dessa convicção no exercício da advocacia e na
atuação como procurador geral do INCRA, cargo que assumiu em 1985.
A resistência conservadora na sabatina do Senado pinçava ainda outros episódios
ilustrativos de uma coerência política para se mostrar especialmente dura:
em 2003, Fachin assinou um manifesto, junto com Fabio Konder Comparato, em
favor do cumprimento da norma constitucional que prevê a desapropriação, para
fins de reforma agrária, de imóveis rurais que descumpram a função social da
propriedade;
em 2010, por indicação da CUT, integrou a Comissão da Verdade do Paraná;
nesse mesmo ano, assinou um manifesto, juntamente com outros juristas, em
defesa do direito do então presidente Lula opinar sobre as eleições;
em outubro de 2010, participou de um vídeo de campanha lendo um manifesto de
juristas com declaração de apoio à candidata Dilma Rousseff.
'Fachin está nas mãos deles', insistiu a ex-ministra aos incrédulos que
pinçavam esses argumentos do currículo do novo relator da Lava Jato para
reiterar a aposta nas chances de absolvição de Lula no STF.
'Fachin está sendo chantageado', disparou ela interrompendo os incrédulos.
Em resposta aos olhos arregalados e semblantes de espanto, desferiu a última
estocada: 'Fachin é um pai de família tradicional, construiu uma imagem pública
baseada na ética e nos valores cristãos. Ele não tem estrutura par aguentar
essa chantagem: vai fazer tudo o que eles quiserem'.
Carta Maior não endossa, nem sanciona os elementos desse relato.
Cita-o porque se ajusta com precisão ao mosaico de pressões, delações
fabricadas, filtradas e induzidas, transgressões jurídicas e violência pura e
simples que compõe a engrenagem de forças e interesses coagulados na pedra
angular de um golpe que se avoca ‘institucional’.
Ou seja, um golpe que não elide a urna, mas opera o encarceramento do voto
popular.
A abdução de Lula é uma das barras estruturais dessa detenção em massa, da qual
os moros, os fachins e assemelhados são o pelotão de vigia da torre.
A mídia completa o pan-óptico do controle absoluta da sociedade, como previu
Foucault ao extrapolar para o sistema de comando do capitalismo a arquitetura
idealizada originalmente para a vigilância indivisa dos presídios.
O jornalismo da chamada mídia comercial tem se prestado com afinco a esse papel
de vigia ubíquo da consciência popular.
Para isso abduziu Lula após o sequestro do ex-presidente pela Lava Jato.
Não se toca mais na natureza virulenta dessa prisão.
Não se cobriu o lançamento da candidatura do petista em Contagem (MG), no
último 8 de junho.
Não se dá espaço a aberrações e violações inúmeras do processo em curso contra
o ex-presidente.
De um exemplo com personagens anônimos infere-se todo os demais: a cunhada e o
sobrinho menor de idade do caseiro do sítio de Atibaia foram arrancados de sua
casa recentemente, sem qualquer aviso, às seis horas da manhã, por homens
fardados, para serem interrogados ‘sobre Lula no sítio’.
Dois jornalistas, Luna Sassara e João Feres Júnior esmiúçam os dentes dessa
engrenagem na reportagem “
Não
é Lula pré-candidato?” que analisou 120 textos de capa sobre as eleições
2018, distribuídos nos três principais jornais do país durante 45 dias.
Primeiro fruto da parceria entre Carta Maior e o Manchetômetro, que anunciamos
com muita alegria nesta semana, a pesquisa traz um dado, no mínimo,
perturbador:
"O pré-candidato à Presidência mais citado nas capas dos grandes jornais
em matérias que tratam de eleições no período em análise foi Jair Bolsonaro (PSL-RJ),
seguido por Geraldo Alckmin (PSDB-SP).
Lula, que lidera as pesquisas de intenção de voto, aparece apenas em terceiro
lugar, seguido por Ciro Gomes, Marina Silva e Henrique Meirelles”.
A pesquisa do Manchetômetro mostra ainda que:
“Os grandes jornais têm dedicado pouquíssimo espaço de suas capas para tratar
Lula enquanto candidato, comparado aos outros com menor índice de intenção de
votos. Isso não ocorre, contudo, com outros temas envolvendo o ex-presidente,
como as investigações contra ele e o andamento de processos nos quais é réu”.
Como adiantei duas semanas atrás, a única saída do neoliberalismo é a sua
radicalização (
leia
mais).
É o que está em marcha no país.
Quem melhor para cumprir essa agenda, do que um capitão defensor da tortura e
do armamento da população, em suma, alguém disposto a aprofundar a anomia
social amesquinhadora da vida política?
É preciso destacar que não apenas o Judiciário e os veículos de comunicação
fazem parte dessa espiral fascistizante, mas também o mercado financeiro, as
elites do agrobusiness, o que restou da indústria e do comércio.
Todos formam desde sempre o “condomínio golpista” servil aos interesses
norte-americanos e das grandes corporações que querem as terras, o petróleo, a
água e o dinheiro da gente brasileira.
O assalto é generalizado e Bolsonaro surge como o guarda-da-esquina de
confiança do butim.
Correto estava o saudoso companheiro Marco Aurélio Garcia que nos ensinou a
sempre desconfiar das elites brasileiras.
Sua obra de rara clarividência, aliás, está sendo lançada em três volumes. O
primeiro já na praça desde última quinta-feira, pela Editora da Fundação Perseu
Abramo.
A parceria entre Carta Maior e o Manchetômetro representa a união do espaço de
reflexão com a pesquisa propriamente dita, tão necessário neste universo em que
a opinião publicada é, desde sempre, a grande produtora das fake news.
Se o ministro Luiz Fux, presidente do Superior Tribunal Eleitoral (TSE),
pretende efetivamente combatê-las, aqui vai o endereço: Central Globo de
Jornalismo, Jardim Botânico, Rio de Janeiro.
Caras leitoras e leitores, como vocês sabem, ao contrário do diversionismo da
mídia neoliberal, Carta Maior sempre se assumiu como um portal de esquerda e,
há mais de 17 anos, garante assim a presença da reflexão interditada no país
pela mídia hegemônica.
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hoje representado na figura de Jair Bolsonaro, como diz o candidato Ciro Gomes.
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Um abraço,
*Joaquim Palhares - Diretor de Redação