Jurista analisou o vídeo do
Jamaica e diz que agressões podem violar artigo de Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos. Em 2018, número de queixas bateu recorde e a PSP lidera a
lista. Há mais abusos?
Joana Gorjão Henriques |
Público | Foto: Daniel Rocha
Em 2018 a Inspecção-Geral da
Administração Interna (IGAI) recebeu o maior número de queixas em sete anos,
mostram dados revelados na quinta-feira. Tal como em anos anteriores, a
PSP foi a força de segurança que mais queixas motivou, com 55% do
total de 860 denúncias.
Analisando os números, percebe-se
que quase um terço (172) das queixas contra agentes da PSP que chegaram à
"polícia dos polícias" foi devido a ofensas à integridade física, ou
seja, os cidadãos consideram ter sido exercida violência sobre si.
Mas da análise percebe-se que a
esmagadora maioria das denúncias não teve consequências: abriram-se 30
inquéritos, 24 destes foram convertidos em processos disciplinares mas 10 foram
arquivados; houve apenas dois que resultaram em pena de suspensão a polícias,
ou seja, 0,4%.
Qual será o destino da
investigação da PSP e da monitorização da IGAI a casos como o que foi mostrado
no vídeo em que agentes da PSP são vistos a agredir no domingo moradores do
bairro da Jamaica — inicialmente um homem de 63 anos que leva dois socos e uma
joelhada, e depois o filho — e em que a polícia diz ter sido também agredida?
“Essa agressão e ao outro homem
parece completamente desnecessária”, diz ao PÚBLICO, em nome pessoal Julia
Kozma, jurista e responsável pela delegação do Comité
Antitortura do Conselho da Europa que visitou Portugal e concluiu que
o país está no topo dos países da Europa Ocidental com o
maior número de casos de violência policial, sendo os riscos de abuso
maiores para afrodescendentes portugueses e estrangeiros. “Os agentes atacaram
uma pessoa desarmada, que não mostrou agressividade, resistência à detenção ou
algo similar”, afirma a perita a quem o PÚBLICO enviou o vídeo.
Para Kozma este é o exemplo de um
caso em que “não é suficiente” ser “investigado apenas pela IGAI como uma
infracção disciplinar”. “Tem que ser investigado nas instâncias criminais uma
possível violação do artigo 3 do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos” — que
diz que, na interacção com agentes das forças de segurança, “qualquer recurso à
força física que não seja estritamente necessário pela sua conduta diminui a
dignidade humana” e viola o direito a não ser torturado nem sujeito a
tratamento desumano e degradante.
Como podemos ler os números
gerais da IGAI? Será que mais queixas significa que as forças de segurança
estão a cometer mais abusos? Qual o percurso que estas denúncias fazem? Estão a
ser tomadas todas as medidas?
Para a perita é positivo existir
um número recorde de queixas. Significa que “muitas potenciais vítimas
confiaram” na instituição, mostra “que este organismo é facilmente acessível e
inicia as investigações de modo adequado quando tem conhecimento de um caso”.
Ressalva: “Mas se as potenciais vítimas começam a sentir que não vale a pena
aproximarem-se da IGAI porque os alegados criminosos nunca são punidos, vão
perder a confiança."
As decisões da IGAI devem ser
tornadas públicas, defende — o Comité teve acesso à informação que pediu e
achou que as investigações eram feitas de forma meticulosa. A IGAI só tem
mandato para recomendar sanções e não pode proceder a investigações de índole
criminal. “A grande questão é se algum dos agressores é levado a julgamento
pelo Ministério Público. A tortura e o tratamento desumano — ataques físicos a
pessoas detidas por agentes da polícia, por exemplo — são ofensas criminais e
deveriam ser acompanhadas por investigações criminais. Provas importantes, como
exames médicos forenses, só podem ser pedidos por procuradores do MP e se isto
não é feito a investigação a este tipo de alegações raramente pode ser
adequada”. A perita conclui: “Também criticámos a IGAI porque as investigações
levavam muito tempo, às vezes anos. Para as potenciais vítimas não chega que um
abusador possa ter sanções disciplinares passados tantos anos”.
Também Dalila Cerejo, socióloga e
investigadora do Observatório de Violência e Género, afirma que o elevado
número de queixas reflecte um sinal positivo. “Há um escrutínio cada vez maior
das forças de segurança que muitas vezes têm que recorrer à força física. Essa
legitimidade foi atribuída às forças policiais, depende da avaliação sobre a
ocorrência. O que o número de queixas significa é que cada vez mais as pessoas
são intolerantes à violência e cada vez mais usam uma forma legítima de
expressar o seu desagrado, que é fazendo queixa. Permite que os cidadãos que se
sentem injustiçados e lesados façam uso do seu direito.” Por outro lado, as
queixas são também “um sinal saudável de que as pessoas não estão desligadas da
sociedade em que se inserem”.
A socióloga acrescenta, porém,
outro ponto importante: as instituições como IGAI e PSP têm de explicitar os
trâmites dos processos e explicar se as queixas têm fundamento, “os
funcionários não podem ser escrutinados e julgados pelo juízo público”. “O que
se pretende é que as forças policiais sejam formadas de modo a terem um
contacto cada vez mais eficaz e sensibilidade com os seus concidadãos.” Mas
“nenhuma situação de violência deve passar incólume ao poder político que
governa”.
Para Carlos Pinto de Abreu, que
presidiu ao Conselho dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, “a questão
mais complicada é sempre a prova, a identificação do agente que faz um disparo
na esquadra e só tem como testemunhas outros agentes ou a situação que ocorre
na rua em que as testemunhas fogem ou quando são chamadas e têm medo”. Daí a
razão de o número de queixas ser muito maior do que os inquéritos, processos
disciplinares ou sanções.
Deixa algumas recomendações em
caso de agressão: primeiro, se a pessoa for detida tem direito a chamar um
advogado a qualquer hora; se houver registo de imagens, deve pedir a sua
preservação. Quando não há imagens, “é a prova diabólica”, comenta. “Mas isso
não quer dizer que as pessoas não se queixem e que os tribunais não actuem ou que
não haja da parte da Inspecção-Geral uma actuação e da própria polícia um
cuidado com a gestão e direcção desses agentes que foram alvo de queixa.
Imagine que há 10 queixas contra um polícia: algo está mal. E nem tudo tem de
dar origem a processo-crime, é preciso verificar.”
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