"A Opinião" de Fernanda
Câncio, na Manhã TSF
Segunda-feira aconteceram duas
coisas que não me lembro de ter alguma vez visto em Lisboa.
A primeira foi uma manifestação
maioritariamente de jovens negros, unidos na indignação face a um episódio de
violência policial num bairro periférico. Uma manifestação convocada em horas,
sem intervenção de qualquer associação ou movimento institucional, que quis
mostrar-se ao país e ocupar o centro da capital num protesto contra o racismo e
a brutalidade da polícia.
A segunda foi o facto de a
polícia ter dispersado uma manifestação com balas de borracha.
Ambas estas coisas são, creio,
estreias absolutas. No entanto, nenhuma delas foi relevada como tal. É estranho.
A ausência de representação e de
participação política da população negra portuguesa é uma evidência
inquestionável. Perante uma excepção a esse silêncio e invisibilidade, seria de
esperar que os media a valorizassem. Mas o que vimos foi a manifestação ser
tratada como um desacato, uma acção delinquente, não como o marco cívico que é.
E a violência que a esmagou a ser apresentada como proporcional, justificada,
evidente na sua necessidade. Porquê?
Teriam os media assumido de igual
modo a veracidade da versão policial e a necessidade de uma repressão tão
violenta se os manifestantes fossem outros? Que sabiam, aliás, os media
daqueles manifestantes, a não ser que eram maioritariamente negros?
Por serem negros e por se tratar de
uma manifestação de repúdio em relação à intervenção da PSP no bairro da
Jamaica, foram descritos em todo o lado como "moradores do bairro da
Jamaica". Sabemos a que é que moradores de bairros ditos
"problemáticos" equivalem no léxico geral: "marginais";
"perigosos"; "criminosos". É essa a leitura cromática
automática: uma leitura que ajuda a aceitar a versão da polícia - a de que foi
"obrigada" a disparar porque lhe atiraram pedras. Afinal, que outra
coisa iriam os "jovens dos bairros" fazer ao centro da capital senão
distúrbios?
Nenhum jornalista estava presente
quando o apedrejamento alegadamente ocorreu; nenhum jornalista viu. Mas os
jornalistas afirmaram como se tivessem visto. Tornou-se a verdade oficial,
mesmo surgindo relatos de manifestantes a contestá-la.
Perante uma manifestação contra a
actuação da PSP e o racismo institucional, uma manifestação que pedia justiça,
os media resolveram, assim, sem sequer um mínimo de investigação, de
questionamento, de justiça, que a actuação da PSP contra essa manifestação,
usando meios coercivos extraordinários, se justificou sem qualquer dúvida.
Jovens negros saíram à rua para
falar, para dizer, para gritar, para fazer política. Para serem vistos, tidos em conta. E os media
escolheram ignorá-los.
Escolhemos não os ver, não os
ouvir. Escolhemos não lhes dar sequer o benefício da dúvida. Como nas lojas em
que, quando entram, são de imediato seguidos pelos seguranças, dissemos-lhes
que o centro da capital, a Avenida da Liberdade, o lugar de todos os protestos,
não é para eles.
Que voltem ao silêncio, à
invisibilidade, à revolta surda. Que voltem à raiva e ao desânimo. Que voltem à
humilhação quotidiana, ao «preto, vai para a tua terra«. A bem ou a tiro.
Fernanda Câncio | TSF | opinião
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