China e Rússia veem o Ocidente em
crise civilizatória – e apostam numa saída. Implica integrar a Eurásia, lançar
imensos projetos de infra-estrutura, desafiar o poder do dólar e a hegemonia
militar dos EUA.
Pepe Escobar no Consortium
News | Outras Palavras | Tradução: Felipe Calabrez
A esta altura, todos deveríamos
saber que o coração do Grande Jogo do século 21 é a miríade de vertentes da
batalha entre os Estados Unidos e a parceria entre a Rússia e a China.
Até mesmo a Estratégia Nacional
de Defesa dos EUA o reconhece: “O desafio central para a prosperidade e
segurança dos EUA está no ressurgimento da competição estratégica de longo
prazo promovida por… poderes revisionistas.” O recente parecer sobre
as implicações da expansão global da China sobre a defesa dos EUA também o diz.
O confronto moldará o surgimento
de uma possível ordem mundial estratégica pós-ideológica, em meio a uma
imprevisibilidade extremamente volátil, na qual a paz é guerra e um acidente
pode desencadear um confronto nuclear.
O cenário EUA versus Rússia e
China continuará desafiando a obsessão do Ocidente em ridicularizar o
“anti-liberalismo”, um exercício retórico e medonho que iguala a democracia
russa ao governo de um só partido da China, à demo-teocracia iraniana e ao
renascimento neo-otomano da Turquia.
É irrelevante que a economia da
Rússia seja um décimo da economia chinesa. Desde o impulso ao comércio sem o
uso do dólar americano até o aumento de exercícios militares conjuntos, a
simbiose Rússia-China está pronta para avançar além das afinidades políticas e
ideológicas.
A China precisa muito de know-how
russo em sua indústria militar. Pequim transformará esse conhecimento em uma
abundância de inovações civis e militares de duplo uso. O longo jogo indica que
a Rússia e a China irão derrubar barreiras culturais e de idioma para liderar a
integração euro-asiática contra a hegemonia económica americana apoiada pelo
poderio militar.
Pode-se dizer que o século
eurasiano já está diante de nós. A era do Ocidente moldando o mundo à vontade
(um mero lapso de história) acabou. Isto apesar das negações e fulminações da
elite ocidental contra as chamadas “forças moralmente repreensíveis”, “forças
de instabilidade” e “ameaças existenciais”.
A Standard Chartered, empresa
britânica de serviços financeiros, usando uma combinação de taxas de câmbio,
poder de compra e crescimento do PIB, projetou que as cinco principais
economias em 2030 serão a China, os EUA, a Índia, o Japão e a Rússia. Serão
seguidos pela Alemanha, Indonésia, Brasil, Turquia e Reino Unido. A Ásia
ampliará sua classe média no exato momento em que esta está sendo destruída no
Ocidente.
Embarque no Expresso
Trans-Eurásia
Pode-se argumentar que as elites
de Pequim estão fascinadas em como a Rússia retornou, em menos de duas décadas,
ao status de semi-superpotência após a devastação dos anos de Yeltsin.
Isso aconteceu em grande parte
devido à ciência e tecnologia. O exemplo mais ilustrativo é o incomparável e
avançado de armamento revelado pelo presidente Vladimir Putin em seu discurso de
1º de março de 2018.
Na prática, Rússia e China
estarão avançando no alinhamento das Novas Rotas da Seda da China, ou a
Iniciativa do Cinturão e da Estrada [Belt and Road Initiative (BRI), em
inglês] com a União Económica Rússia-Eurásia.
Há um amplo potencial para que
uma rede expressa Trans-Eurásia de transporte terrestre e marítimo esteja
pronta e funcionando em meados da próxima década, incluindo, por exemplo,
pontes rodoviárias e ferroviárias ligando a China à Rússia em todo o rio Heilongjiang.
Após importantes conversas
trilaterais envolvendo Rússia, Índia e Irão em novembro passado, mais atenção
está sendo dada ao Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC), uma
pista de 7.200 km
misturando rotas marítimas e ferroviárias essencialmente ligando o Oceano
Índico ao Golfo Pérsico através do Irã e da Rússia, e mais adiante à Europa.
Imagine que a carga transite de
toda a Índia para o porto iraniano de Bandar Abbas; depois siga para Bandar
Anzali, um porto iraniano no Mar Cáspio; para o porto russo de Astrakhan; e, de
trem, para a Europa. Do ponto de vista de Nova Delhi, isso significa que os
custos de transporte foram reduzidos em até 40%, e a rota Mumbai-Moscou pode
ser transposta em apenas 20 dias.
Abaixo da linha, o INSTC vai se
fundir com o BRI — como nos corredores ligados à rota Índia-Irã-Rússia, em uma
rede de transporte global liderada pela China.
Isso está acontecendo exatamente
quando o Japão está olhando para a Ferrovia Transiberiana — que será atualizada
ao longo da próxima década — para melhorar suas conexões com a Rússia, a China
e as Coreias. O Japão é hoje um dos principais investidores na Rússia e, ao
mesmo tempo, muito interessado em um acordo de paz entre as Coreias. Isso
libertaria Tóquio dos enormes gastos com defesa condicionados pelas regras de
Washington. Os acordos de livre comércio da Unão Económica da Eurásia (EAEU)
com a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) podem ser adicionados a
isso.
Especialmente nos últimos quatro
anos, a Rússia também aprendeu a atrair investimentos e riqueza chineses,
ciente de que o sistema de Pequim produz praticamente tudo e sabe como
comercializar globalmente, enquanto Moscovo precisa combater todos os bloqueios
sonhados por Washington.
Os “Eixos do Mal” Huawei-Venezuela
Enquanto Washington continua
sendo um prisioneiro bipartidário da caverna platónica russofóbica — onde as
sombras da Guerra Fria na parede são tomadas como realidade — o slogan de
Trump, MAGA (Make America Great Again) está perdendo o trem para a
Eurásia.
Uma hidra de muitas cabeças, a
MAGA, se despojada até os ossos, poderia ser lida como um antídoto não
ideológico ao aventureirismo global do Império. Trump, a seu modo
não-estratégica e caótico propunha, pelo menos em teoria, o retorno a um
contrato social para reerguer seu país — o que se traduziria em empregos,
oportunidades para pequenas empresas, impostos baixos e não mais guerras
estrangeiras.
É uma nostalgia dos anos 1950 e
60, antes do atoleiro do Vietnã e antes de a produção “Made in the USA” ser
lenta e deliberadamente desmantelada. O que resta são dezenas de trilhões de
dívidas nacionais; um quatrilião de derivativos; o Estado Profundo correndo
solto; e muito medo de russos perversos, chineses tortuosos, mulás persas, a
troika da tirania, o cinturão e a estrada, a Huawei e os estrangeiros ilegais.
Mais do que uma “guerra de todos
contra todos” Hobbesiana, ou do que as queixas de que o “sistema baseado em
regras ocidentais” está sendo atacado, o medo é, na verdade, do desafio
estratégico representado pela Rússia e pela China, que buscam um retorno ao
império do direito internacional.
O MAGA prosperaria se pegasse boleia no comboio de integração da Eurásia: mais empregos e mais oportunidades de
negócios, em vez de mais guerras no exterior. No entanto, o MAGA não vai
acontecer — em grande parte porque o que realmente faz o Trump exultar é sua
tentativa de dominar as fontes
de energia, para interferir decisivamente na Rússia e no desenvolvimento da
China.
O Pentágono e a comunidade das
agências de espionagem [Intel Community] levaram o governo Trump a
perseguir a Huawei, tratada como um ninho de espiões, enquanto pressionava os
aliados-chave (Alemanha, Japão e Itália) a fazer o mesmo. A Alemanha e o Japão
permitem que os EUA controlem os nós principais nas extremidades da Eurásia. A
Itália é essencialmente uma grande base da OTAN.
O Departamento de Justiça
norte-americano requereu
a extradição da executiva financeira-chefe da Huawei, Meng Wanzhou, do
Canadá na última terça-feira, acrescentando um ponto à tática geopolítica do
governo Trump.
Acrescente-se a isso que a Huawei
— baseada em Shenzhen e de propriedade de seus trabalhadores — está matando a
Apple em toda a Ásia e na maioria das latitudes em todo o Sul Global. A batalha
real está em torno da tecnologia 5G, na qual a China pretende superar os EUA,
enquanto melhora a capacidade e a qualidade da produção.
A economia digital na China já é
maior do que o PIB da França ou do Reino Unido. É baseado nas empresas BATX
(Baidu, Alibaba, Tencent, Xiaomi); na Didi (a Uber chinesa); na gigante de
e-commerce JD.com e na Huawei. Essas Big Seven são um estado dentro de uma
civilização — um ecossistema que eles mesmos construíram, investindo fortunas
em big data, inteligência artificial (IA) e internet. Os gigantes
norte-americanos — Facebook, Instagram, Twitter e Google — estão ausentes deste
enorme mercado.
Além disso, o sofisticado sistema
de criptografia da Huawei em equipamentos de telecomunicações impede a
interceptação pela NSA. Isso ajuda a explicar sua extrema popularidade em todo
o Sul Global, em contraste com a rede de espionagem eletrônica Five Eyes (EUA,
Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia).
A guerra econômica contra a
Huawei também está diretamente ligada à expansão do BRI em 70 países asiáticos,
europeus e africanos, constituindo uma rede de comércio, investimento e
infra-estrutura à escala da Eurásia, capaz de virar as relações geopolíticas e
geoeconômicas, como as conhecemos, de cabeça para baixo.
A Grande Eurásia acena
O que quer que a China faça não
alterará a obsessão do Estado Profundo norte-americano por “uma agressão contra
nossos interesses vitais”, como afirma a Estratégia Nacional de Defesa. A
narrativa dominante do Pentágono nos próximos anos será sobre a China “pretendendo
impor, no curto prazo, sua hegemonia na região do Indo-Pacífico, e pegar os
Estados Unidos de surpresa para alcançar a futura preeminência global”. Isso
mistura-se com a crença de que a Rússia quer “esmagar a OTAN” e “sabotar o
processo democrático na Criméia e no leste da Ucrânia”.
Durante minhas viagens recentes
pela parte norte do Corredor Económico China-Paquistão (CECP), vi mais uma vez
como a China está modernizando rodovias, construindo barragens, ferrovias e
pontes que são úteis não apenas para sua própria expansão econômica, mas também
para o desenvolvimento de seus vizinhos. Compare-o com as guerras dos EUA —
como no Iraque e na Líbia — onde as barragens, ferrovias e pontes são
destruídas.
A diplomacia russa está vencendo
a Nova Guerra Fria — como diagnosticado pelo professor Stephen Cohen em seu
último livro, War with Russia: From Putin and Ukraine to Trump e
Russiagate.
Moscou mistura graves
advertências com diversas estratégias, como ressuscitar o gasoduto South Stream
para abastecer a Europa como uma extensão do Turk Stream, depois que o governo
Trump também se opôs furiosamente ao gasoduto Nord Stream 2 com sanções à
Rússia. Enquanto isso, Moscou eleva as exportações de energia para a China.
O avanço da Iniciativa Belt and
Road está ligado às exportações russas de segurança e energia, incluindo a Rota
do Mar do Norte, como um futuro corredor de transporte alternativo para a Ásia
Central. A Rússia surge, então, como a principal garantia de segurança para o
comércio e a integração económica da Eurásia.
No mês passado, em Moscou,
discuti a Grande Eurásia — agora estabelecida como o conceito dominante da
política externa russa — com os principais analistas russos. Eles me disseram
que Putin está a bordo. Ele se referiu à Eurásia recentemente como “não um
tabuleiro de xadrez ou um playground geopolítico, mas nosso lar pacífico e
próspero”.
Não é preciso dizer que os think
tanks dos EUA descartam a ideia como “natimorta”. Eles ignoram o Prof. Sergey
Karaganov, que já em meados de 2017 argumentava que a Grande Eurásia poderia
servir de plataforma para “um diálogo trilateral sobre problemas globais e
estabilidade estratégica internacional entre a Rússia, os Estados Unidos e a
China”. Por mais que Washington possa recusar, “o centro de gravidade do
comércio global está agora mudando dos altos mares para o vasto interior
continental da Eurásia”.
Pequim corta as asas do dólar
Pequim está percebendo que não
pode cumprir suas metas geoeconómicas em energia, segurança e comércio sem
passar por cima do dólar americano.
De acordo com o FMI, 62% das
reservas globais dos bancos centrais ainda eram mantidas em dólares americanos
no segundo trimestre de 2018. Cerca de 43% das transações internacionais no
sistema SWIFT ainda estão em dólares americanos. Mesmo que a China, em 2018,
tenha sido o maior contribuinte para o crescimento do PIB global, com 27,2%, o
yuan representa apenas 1% dos pagamentos internacionais e 1,8% de todos os
ativos de reserva detidos pelos bancos centrais.
Leva tempo, mas a mudança está a
caminho. A rede de pagamentos transfronteiriça da China para transações com o
yuan foi lançada há menos de quatro anos. A integração entre o sistema de
pagamento russo (Mir) e o chinês (Union Pay) parece inevitável.
Bye Bye, doutores K e Zbig.
A Rússia e a China estão
desenvolvendo o pesadelo final para os ex-xamãs da política externa dos EUA,
Henry Kissinger e o falecido Zbigniew “Grande Tabuleiro de Xadrez” Brzezinski.
Em 1972, Kissinger foi o mentor —
com a ajuda logística do Paquistão — do momento de Nixon na China. Esse foi
clássico “Divide and Rule”, separando a China da URSS. Dois anos atrás, antes
da posse de Trump, o conselho do Dr. K, oferecido nas reuniões da Trump Tower,
consistiu em uma “Divide and Rule” modificada: seduzir a Rússia, para conter a
China.
A doutrina de Kissinger
estabelece que, geopoliticamente, os EUA são apenas “uma ilha às margens da
grande massa de terra da Eurásia”. A dominação, “por uma única potência de
qualquer uma das duas principais esferas da Eurásia — a Europa ou a Ásia —
continua sendo uma boa definição de perigo estratégico para os Estados Unidos,
“com ou sem Guerra Fria”, como disse Kissinger. “Pois tal arranjo teria a
capacidade de ultrapassar os EUA economicamente e, ao fim, militarmente.”
A doutrina Zbig seguiu linhas
similares. Os objetivos eram evitar conflitos e manter a segurança entre os
vassalos da União Europeia-OTAN. Mantenha os vassalos curvados; impeça que os
bárbaros (ou seja, os russos e aliados) se unam; acima de tudo, impeça o
surgimento de uma coligação hostil (como a atual aliança Rússia-China), capaz de
desafiar a hegemonia dos EUA; e submeta a Alemanha, a Rússia, o Japão, o Irão e
a China a um permanente “Divida e Reine”.
Daí a preocupação da atual
Estratégia de Segurança Nacional, prevendo que a China, desalojando os Estados
Unidos, “alcançaria a preeminência global no futuro”, através do alcance
supra-continental da BRI.
A “política” para neutralizar
tais “ameaças” são sanções, sanções e mais sanções unilaterais, juntamente com
uma inflação de noções absurdas espalhadas por Washington — como a de que a
Rússia está auxiliando e instigando a reconquista do mundo árabe pela Pérsia,
bem como a de que Pequim vai abandonar o plano do “tigre de papel”, o “Made in
China 2025” ,
para obter papel de destaque na produção global em alta tecnologia, apenas
porque Trump a detesta.
Muito de vez em quando, um
relatório dos EUA realmente acerta, como quando se refere a Pequim acelerando
uma série de projetos da BRI; como uma tática Sun Tzu modificada, implantada
pelo Presidente Xi Jinping.
No Diálogo Shangri-La de junho de
2016, em Cingapura, o professor Xiang Lanxin, diretor do centro de Estudos One
Belt and One Road, do Instituto Nacional da China para Intercâmbio e Cooperação
Judicial da SCO, definiu o BRI como um caminho para um mundo “pós-Westfaliano”.
A jornada está apenas começando; uma nova era geopolítica e econômica está
próxima. E os EUA estão sendo deixados para trás na estação.
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário