Num
tempo de recursos escassos, permitir que terra e riquezas sejam controladas por
muito poucos — e herdadas — é roubar as novas gerações. Está na hora das
Propriedades Comuns
George
Monbiot | Outras Palavras | Tradução: Antonio Martins
Os
jovens que tomaram as ruas de centenas de cidades na última semana estão
certos: seu futuro está sendo roubado. A economia é como os esquemas
fraudulentos de “pirâmide”, que despeja o peso de suas obrigações nos jovens e
nos que ainda não nasceram. Seu crescimento atual depende de roubo
intergeracional.
No
coração do capitalismo há uma suposição crucial, porém quase nunca examinada:
cada um tem direito a uma fatia dos recursos globais tão grande quanto seu
dinheiro pode comprar. Você pode comprar tanta terra, tanto espaço atmosférico,
tantos minerais, tanta carne e peixe quanto puder pagar, não importando quem
será privado destes bens. Se você puder pagar, possuirá cadeias de montanhas e
vales férteis. Poderá queimar tanto combustível quanto queira. Cada real, ou
dólar, assegura um certo direito sobre a riqueza natural do mundo. Mas por que?
Que princípio de justiça faz equivaler os números em sua conta bancária a um
direito de possumir o tecido da Terra? A grande maioria das pessoas a quem
coloco esta questão ficam perplexas diante dela.
A
justificativa padrão retorna ao Segundo Tratado de Governo, de John
Locke. Publicado em 1689. Ele sustentava que se você adquire direitos a possuir
riqueza natural quando combina, a esta, trabalho: o fruto que você colhe, os
minerais que você escava do chão e a terra que você ara tornam sua propriedade
exclusiva, porque você pôs seu trabalho ali.
Este
argumento foi desenvolvido pelo jurista William Blackstone no século XVIII.
Seus livros foram influentes ao extremo na Inglaterra, Estados Unidos e outras
partes. Ele afirmava que o direito de um homem a “dominação única e despótica”
sobre a terra foi estabelecido pela pessoa que primeiro a ocupou, para produzir
comida. Este direito poderia ser trocado por dinheiro. Esta é a base lógica
universal para o grande esquema de pirâmide. E não faz sentido algum.
Para
começar, ela assume um Ano Zero. Neste ponto arbitrário, uma pessoa poderia
adentrar um pedaço de terra, somar seu trabalho a ela e reivindicá-la como sua.
Locke tomou os Estados Unidos como exemplo da lousa em branco sobre a qual as
pessoas poderiam estabelecer seus direitos. Mas a terra (como admitiu
Blackstone) só se tornou uma lousa em branco por meio do extermínio dos que
nela viviam.
O
colonizador podia, além de apagar todos os direitos anteriores, eliminar os
futuros. Ao misturar uma única vez seu trabalho à terra, você e seus
descendentes adquirem o direito a fazê-lo perpetuamente, até decidirem
vendê-la. Desse modo, você evita que todos os futuros reivindicantes tenham
acesso à riqueza natural pelos mesmos meios.
Ainda
pior: segundo Locke, “seu” trabalho inclui o daqueles que trabalham para você.
Mas por que as pessoas que trabalham não deveriam ser aquelas que adquirem os
direitos? Só é compreensível, quando você percebe que, ao usar o termo “homem”,
Locke refere-se não a toda a humanidade, mas aos proprietários europeus.
Aqueles que trabalhavam para eles não tinham tais direitos. Significava, no
final do século XVII, que os direitos sobre a terra em larga escala só podiam
ser justificados, sob aquele sistema, pela propriedade de escravos. Talvez
inadvertidamente, Locke produziu uma declaração dos direitos humanos dos proprietários
de escravos…
Mesmo
que estas objeções pudessem de algum modo ser afastadas, que poder tem o
trabalho de transformar, de forma mágica, tudo o que toca em propriedade
privada? Por que não estabelecer que o direito às riquezas naturais é dado pelo
ato de urinar sobre elas? Os argumentos que defendem nosso sistema econômico
são frágeis e ilógicos. Raspe-os e você verá que toda a estrutura está fundada
em saque: pilhagem contra outras nações, outras espécies vivas e o futuro.
Ainda
assim, com base nestes absurdos, os ricos arrogam-se o direito de comprar a
riqueza natural de que outros dependem. Locke advertia que esta justificativa
só funciona se “há [terra] suficiente, e igualmente boa, deixada em comum a
outros”. Hoje, quer estejamos falando sobre terra, a atmosfera, os sistemas
vivos, filões de minérios ou a maior parte das outras formas de riqueza
natural, é claro que não há nada disso “suficiente e igualmente bom” deixado em
comum a outros. Tudo o que tomamos para nós mesmos, tomamos de outro alguém.
É
possível torcer este sistema. É possível tentar modificá-lo. Mas é impossível
torná-lo justo.
O
que deveria tomar seu lugar? Parece-me que o princípio fundador de qualquer
sistema justo é que aqueles que ainda não vivem terão, ao nascer, os mesmos direitos
daqueles que estão vivos agora. À primeira vista, isso não parece mudar nada: o
primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que
“todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Mas
esta sentença não tem significado quase algum, porque nada na declaração impede
uma geração de roubar da seguinte. O artigo que falta deveria ser mais ou menos
assim: “Cada geração terá igual direito ao desfrute da riqueza natural”.
É
um princípio difícil de contestar, mas parece mudar tudo. Ele nos diz, de
imediato, que nenhum recurso renovável deveria ser usado além de sua taxa de
reposição. Nenhum recurso não-renovável deveria ser usado sem que fosse
inteiramente reciclado e reempregado. Isso leva inexoravelmente a duas grandes
mudanças: uma economia circular, em que os materiais nunca se perdem e o fim da
combustão dos fósseis.
Mas
e a própria Terra? Neste mundo densamente povoado, qualquer propriedade sobre a
terra impede a propriedade de outros. O artigo 17n da Declaração Universal é
uma contradição em termos.
Ele afirma que “todos têm o direito a possuir propriedades”.
Mas ao não estabelecer limites sobre o quanto uma pessoa pode possuir, ele
assegura que todos não terão este direito. Seria possível alterá-lo
para algo assim: “Todos têm o direito de usar propriedades sem infringir os
direitos de outros a usar propriedades”. A implicação é que todos os nascidos
hoje adquiririam um direito igual de uso, ou precisariam ser compensados por
sua exclusão. Uma forma de implementar este princípio é por meio de impostos
muito relevantes sobre a terra, pagos a um fundo de riqueza soberano.
Estaríamos alterando e restringindo o conceito de propriedade, e assegurando
que as economias tendessem à distribuição, em vez da concentração.
Estas
sugestões simples despertam mil questões. Não tenho todas as respostas. Mas
tais assuntos deveriam ser tema de diálogo e debate em toda parte. Evitar a
catástrofe ambiental e o colapso sistêmico significa desafiar nossas crenças
mais profundas e menos examinadas.
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