Relatório
da OIT desfaz fantasia de Bolsonaro&Guedes e aponta fracasso da
privatização: de 30 países que a adotaram, 18 já voltaram atrás. Entre os
resultados, idosos na miséria e endividamento dos Estados
Paulo Kliass | Outras Palavras
A
Organização Internacional do Trabalho (OIT) é um importante organismo
multilateral que faz parte do sistema da Organização das Nações Unidas (ONU).
Nesse ano ela comemora um século de existência, pois foi fundada ainda no
âmbito do Tratado de Versalhes, na sequência do novo arranjo entre as nações,
que foi estabelecido após o fim da Primeira Guerra Mundial. Assim, a OIT surgiu
em 1919 e tem sua sede localizada em Genebra na Suíça. A instituição tem por
objetivo central promover a justiça social em escala global, sendo a única
dentre as organizações da ONU que mantém uma estrutura tripartite de
representação em suas instâncias de deliberação. Isso significa que ali estão
presentes representantes dos governos, dos trabalhadores dos empregadores.
Dentre
as atribuições da OIT está o acompanhamento da situação dos trabalhadores e
demais segmentos sociais em situação de risco ou de perda de qualidade de vida.
Com isso, ela elabora relatórios e diagnósticos para sensibilizar os governos e
a população mundial global a respeito de temas sensíveis. Esse é o caso da
previdência e da seguridade social. Pois no início do ano, foi divulgado um
importante relatório a respeito do assunto. O documento “A
reversão da privatização da previdência: reconstruindo os sistemas públicos de
aposentadoria nos países da Europa Central e da América Latina (2000-2018)” pretende
apresentar um panorama da evolução dos regimes de previdência em diversos
países, espalhados por diferentes continentes.
Países
fogem da capitalização
Assim
aprende-se que, durante a época de ouro do neoliberalismo em escala global,
três dezenas de países abandonaram os sistemas públicos de previdência social e
optaram pela implantação dos regimes privados de capitalização. O estudo revela
que, entre 1981 e 2014, essas trinta nações que caminharam para a privatização
de seus sistemas de pensões e aposentadorias estavam espalhadas da seguinte
maneira: a) 14 na América Latina; b) 14 na região da antiga União Soviética e
leste europeu; e, c) 2 na África.
Porém,
o mesmo relatório demonstra que exatamente 18 deles, ou seja, 60% do total
resolveram retornar ao modelo de previdência social pública entre os anos 2000
e 2018. Esse movimento denota de forma contundente a falência do sistema
sugerido pelos manuais da ortodoxia financista, que sempre exerceram uma
pressão enorme para que os governos incorporassem essa alternativa privatista
como modelo de oferta de previdência para o conjunto de suas populações. O
documento não deixa margem de dúvida a respeito do equívoco que foi tal opção:
(…)
“Tendo em vista a reversão da privatização pela maioria dos países e a
acumulação de evidências sobre os impactos sociais e econômicos negativos da
privatização, pode-se afirmar que o experimento da privatização fracassou.”
(…) [GN]
Um
dos problemas mais graves que se oberva na transição para a via liberal
financista do regime de previdência é que seus efeitos nefastos só serão
sentidos no longo prazo, após algumas décadas de vigência do novo sistema. Esse
fato é bastante compreensível, uma vez que, no período inicial, os bancos e
demais instituições financeiras basicamente só arrecadam as receitas. No
entanto, à medida que uma geração entra na inatividade e começa a buscar os
benefícios previdenciários supostamente previstos no contrato estabelecido, eis
que a realidade do engodo se manifesta. Esse é o processo vivenciado pelo Chile
atualmente, quando a geração dos que iniciaram no novo regime financeirizado da
década de 1980 foi buscar seus benefícios. O país que Paulo Guedes chama de
Suíça da América Latina está com uma geração de idosos muito pobres e na
miséria.
Cadê
o dinheiro? O gato comeu!
E
essa não é uma peculiaridade chilena. Por todo o mundo dá-se algo semelhante.
Ocorre que aí o estrago está feito e os participantes não têm mais para onde
correr. As instituições do financismo são sempre as primeiras a se precaverem
de crises econômico-financeiras e não têm a menor preocupação em satisfazer os
interesses da população. São centenas de milhões de indivíduos que contribuíram
ao longo dos anos, de forma sistemática e a cada mês, para acumular valores que
se transformariam em uma renda mensal vitalícia. Esse era o sonho combinado.
Mas o recurso sumiu. E agora, vai reclamar com quem? Dirija-se, por favor, ao
guichê ali no final do corredor.
O
quadro descrito é impressionante. As consequências para os países que migraram
para a capitalização falam em uma redução expressiva das taxas de cobertura. A
grande maioria sofreu uma redução dos índices das camadas populacionais que
poderiam usufruir dos benefícios previdenciários após as mudanças. Em alguns
países a taxa de cobertura estagnou, mas não foi observado nenhum aumento na
ampliação de potenciais beneficiados depois da migração para os modelos de
capitalização.
Além
disso, os números demonstram que os valores dos benefícios caíram depois da
mudança. Ao contrário das promessas presentes o tempo todo no discurso do
finacismo oficial, a opção pelas contas individuais reduziu os valores das
aposentadorias e pensões. Uma vez que o novo modelo trata a previdência como
mais uma mercadoria a ser oferecida aos consumidores nas prateleiras do
supermercado do universo financeiro, não existe a quem recorrer. A seguridade
social deixa de ser um direito de cidadania e um serviço público com garantia
do Estado. Seus componentes se transformam em apenas mais um item de um
contrato privado, como o seguro do carro, o seguro da casa, o seguro de vida ou
o seguro de viagem.
O
estudo da OIT revela também que essa migração para o mundo da capitalização
reforçou as tendências já existentes de desigualdade de gênero, em prejuízo das
condições oferecidas às mulheres. Além disso, como era de se esperar, a
privatização promoveu uma elevação expressiva dos custos administrativos e de
gestão dos fundos. Essa conta, por óbvio, impacta também negativamente nos
benefícios líquidos a serem oferecidos aos participantes.
Por
outro lado, o saldo final dessa aventura irresponsável acabou sobrando também
para as contas dos respectivos tesouros públicos. Em todos os países analisados
houve um impacto negativo nas contas dos orçamentos governamentais, uma vez que
os custos de transição de um regime para o outro foram cobertos pelo Estado. E
agora, mais recentemente, com a nova migração para o seio da administração
pública, haverá ainda mais encargos fiscais. A conclusão a que o relatório da
OIT chega é que os únicos beneficiados por esses movimentos todos ao longo de
três décadas foram os bancos e as demais instituições do sistema financeiro.
Eles conseguiram aumentar suas receitas e engrossaram seu patrimônio às custas
dos trabalhadores, dos aposentados e do conjunto da população que custearam
esse verdadeiro vai-e-vem dos regimes previdenciários.
Esperamos
todos que o exemplo oferecido por esses países nos sirva como exemplo no debate
atual da Reforma da Previdência. Ao contrário do que essa milionária campanha
de publicidade oficial do governo do capitão tenta nos enganar, essa PEC 06/19
não tem absolutamente nada de “nova”. Muito pelo contrário, ela tem todo o
cheiro do mofo e da contaminação proporcionados pelas tentações oferecidas pelo
canto de sereia do financismo. Ela é velha e maldosa. Felizmente, a
manifestação da OIT nos serve como alerta. Chama a atenção para o perigo de
querermos reinventar a roda, ainda mais em um modelo que se apresenta até como
meio quadrado.
Mais
uma vez a banca nos seduz com as falsas promessas de um mundo melhor, caso
adotemos a via do individualismo e do egoísmo nas soluções que devem ser
sociais e coletivas. Guedes & Bolsonaro nos prometem o paraíso. Mas, na
verdade, tentam nos atrair para a beira do precipício, com o risco de uma queda
livre rumo ao desastre do passado.
Imagem:
Chilena protesta contra as Administradoras de Fundos de Pensão
(AFP). Privadas, elas têm enormes lucros, enquanto os direitos previdenciários
da população despencaram
Gostou
do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROSQUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário