Daniel
Oliveira | Expresso | opinião
Não
é eleitoralismo um governo tomar uma medida que o eleitorado aprecia. É
eleitoralismo tomar uma medida que o eleitorado aprecia e se sabe estar errada.
E é eleitoralismo mentir sobre uma medida para ganhar votos. Querem um exemplo
de eleitoralismo? Criar, no Portal das Finanças, em véspera de eleições, um
simulador de devolução da sobretaxa do IRS que se revelou totalmente enganador.
Isso é eleitoralismo e foi o muito sisudo Passos Coelho que o fez.
Até
se poderia falar de eleitoralismo se estivéssemos perante uma medida de última
hora, determinada pelas eleições. Ora, toda a gente sabe que esta medida
começou a ser preparada depois das autárquicas, tendo como principais
impulsionadores os dois presidentes de Câmara de Lisboa e do Porto. Ou seja, o
seu calendário foi o autárquico e bem longe de novo ato eleitoral. Sobra o
facto de a sua entrada em vigor ser neste ano. Seguindo essa lógica, perante o
impacto que tem na carteira de tantos portugueses, quanto mais cedo entrasse em
vigor mais votos renderia.
Querem
saber de uma medida tomada em véspera das eleições? A concessão a privados dos
STCP e Carris. Isso sim, um negócio de última hora, que se não tivesse sido
revertido seria ruinoso para o Estado, para uma política de transportes e para
os cidadãos destas cidades. Como foi a privatização dos CTT e da ANA, por
exemplo. A função não era eleitoralista, é verdade. Era bem pior do que isso. O
que não faz sentido é tratar como eleitoralista tudo o que beneficia a maioria
do povo, e sobretudo os mais pobres, e como corajoso tudo o que tem o sentido
inverso, como reduções do IRC ou dos impostos dos escalões mais altos. Governar
permanentemente contra as necessidades da maioria mais carente não é sinal de
coragem, é desrespeito pela democracia.
O
outro argumento contra a brutal redução dos passes sociais é o desequilíbrio
territorial da medida. Sou sensível à crítica. Mas ela não pode ignorar que os
custos de mobilidade diária nas áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto tinham
atingido níveis proibitivos. Estamos a falar de políticas diferentes para realidades
que não se comparam. E é por isso que ESTE editorial do “Público” poderia compreender-se se
fosse assinado por um demagogo à caça de votos através da divisão do país, é
incompreensível como posição de um jornal de referência. Sim, “os pensionistas
de Macedo de Cavaleiros vão pagar os passes em Lisboa”, assim como um
desempregado do Fogueteiro paga o médico em Macedo de Cavaleiros ou a viagem de
um açoriano. O problema de algum jornalismo é achar que Lisboa e o Porto são os
bairros simpáticos que conhecem e que o resto é paisagem.
Todos
nós pagamos os problemas uns dos outros e por isso somos um país. O principal
problema das ilhas é a sua distância em relação ao resto do país — e por isso
pagam menos para andar de avião e têm benefícios fiscais. E muitíssimo bem. Um
dos principais problemas do interior é a fixação de quadros, e por isso há um
programa governamental que garante um extra de 40% no seu salário, mais tempo
de férias e preferência pelo cônjuge na lista de ordenação final dos
candidatos, em caso de igualdade de classificação na candidatura a um lugar no
Estado. Há mais coisas assim, com investimentos públicos per capita
naturalmente mais altos, a impossibilidade da região de Lisboa ser elegível
para fundos de coesão, Lisboa e Porto serem contribuintes fiscais líquidos. E
podemos discutir mais umas tantas a criar, não misturando alhos com bugalhos.
Não
podemos é discutir na base do que um paga coisas de que outros beneficiam. Se
pensarmos assim nunca se faz nada que não tenha um efeito direto (isto tem um
efeito indireto no conjunto do país) em toda a população. Há políticas
específicas para os problemas da insularidade e outras para a interioridade e
todos pagamos, e bem, por elas. São insuficientes e temos de ir mais longe. O
principal problema das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, onde vive mais
de metade dos portugueses, é a mobilidade quotidiana. E é um problema que
atingiu proporções gravíssimas com efeitos sistémicos. Só Lisboa representa 40%
dos movimentos pendulares de todo o país. Se juntarmos o Porto percebemos que é
a esmagadora maioria. Ignorar a diferença de proporção do problema é pouco
sério.
A
crítica do dinheiro despendido é compreensível, mas não pode travar o avanço de
uma medida que tem efeitos profundos na igualdade, no ambiente, na qualidade de
vida urbana, na economia e até na política de habitação que afeta mais de
metade dos portugueses. A convicção desta injustiça relativa deve levar a
medidas urgentes de compensação na área dos transportes. Porque é disso que
estamos a falar. Medidas como um verdadeiro programa de expansão e
revitalização do ferroviário. Esse deve ser, aliás, um dos grandes compromissos
do próximo governo.
Antes
de avançar mais, é importante dizer que não houve apenas uma redução do preço
dos passes. Houve a criação de dois passes únicos (metropolitano e municipal),
que simplificam um sistema que tinha centenas de títulos e que tornam a redução
de custos muito mais significativa para os que vivem mais longe do centro (mais
penalizados e geralmente mais pobres) do que para os que vivem no centro (menos
dependentes do transporte público e geralmente mais desafogados). A criação do
passe metropolitano corresponde, para quem viva no Fogueteiro, a uma redução de
quase 100 euros para 40 e, para quem viva em Mafra, de 154 para 40. Já o passe
municipal, em Lisboa, representa uma descida de 36 para 30 euros. Na linha de
Sintra as reduções vão de 40 a
100 euros, na Margem Sul de 50
a 120. Para os lisboetas, em que alguns editorialistas
estão a pensar quando se dedicam a discursos demagógicos, a redução é mínima.
Esta
medida faz mais pela justiça social do que qualquer devolução de rendimento e
seguramente muitíssimo mais do que qualquer redução de imposto que, como
sabemos, só marginalmente afeta a metade mais pobre do país. Tenho defendido
que o maior erro da “geringonça” foi ter investido quase tudo na devolução do
rendimento direto e ter descurado o rendimento indireto, garantido pelas
funções sociais do Estado. É por isso que valorizo mais esta redução de
tarifário dos passes, a redução das propinas ou os livros escolares gratuitos
do que qualquer aumento salarial (não incluo aqui o aumento do salário mínimo
nacional). Quem vier depois e quiser voltar a baixar os encargos fiscais dos
que mais podem, reduzindo a solidariedade que a todos é exigida, terá muito
mais dificuldade em fazê-lo. É mais fácil congelar salários do que duplicar o
preço do passe social. O rendimento indireto garantido pelo baixo preço de
serviços públicos fundamentais faz mais pela redistribuição da riqueza do que
todos os sistemas fiscais e apoios sociais. Uma política de esquerda que ignore
isto não é de esquerda. É normal que a direita ache isto eleitoralista. Mas é
bom que a esquerda perceba que, pelo contrário, é apenas ser de esquerda.
Quanto
ao ambiente, os efeitos são óbvios. Em 26 anos, o transporte público perdeu
quase metade da sua quota e o uso do transporte individual subiu 35 pontos
percentuais. Estamos a seguir o caminho inverso ao da maioria das cidades
europeias. Todos os dias entram 370 mil carros em Lisboa, para além dos que já
lá estão dentro. Aumentaram 20 mil em apenas três anos. No Porto o cenário é
semelhante. A aposta nos transportes coletivos é condição para dificultar o uso
do transporte individual sem tornar a vida das pessoas num inferno. Qualquer
pessoa que conhece cidades mais avançadas na política de transportes públicos
sabe como a qualidade de vida de todos melhora exponencialmente. E é condição
para a utilização em massa dos transportes públicos eles serem bastante
acessíveis. Sobretudo num país pobre e desigual. E é condição para o seu bom
funcionamento haver menos carros nas ruas. E é condição para a sua viabilidade
haver economia de escala, o que implica uma enorme adesão à sua utilização.
Quanto
à economia, a opção pelos transportes públicos reduz a nossa dependência
energética, melhorando a nossa balança comercial; reduz o tempo perdido pelos
trabalhadores, aumentando o seu tempo de lazer e a sua produtividade; e aumenta
o rendimento disponível para consumos em áreas mais interessantes para o país.
O investimento é excessivo? Por comparação com a esmagadora maioria das cidades
europeias, o sistema de transportes públicos urbanos português é subfinanciado.
A média europeia anda pelos 50%, com Londres a garantir entre 61% (autocarros)
e 91% (metro), Zurique, Dublin, Berlim e Viena andam pelos 60% e Barcelona,
Amesterdão, Paris, Madrid e Roma andam pelos 40%. Na Área Metropolitana de
Lisboa, o Estado nacional e local garantem apenas 10% de financiamento.
E
quanto à habitação, RICARDO COSTA já escreveu o essencial: a inflação
imobiliária em Lisboa e no Porto expulsaram ainda mais pessoas das cidades.
Pessoas com pouquíssima margem para acumular os preços brutalmente proibitivos
que são praticados. Em 1991, 26% do moradores da Área Metropolitana de Lisboa
viviam dentro da cidade de Lisboa, em 2016 eram só 18%. E, com a pressão
imobiliária, a coisa está a piorar bastante. Isto tornou a resposta à
necessidade de transportes ainda mais urgente. Mas é ainda mais do que isto. Os
transportes a preços mais baixos reduzem os custos da suburbanidade, tornam o
território menos desigual e diminuem a pressão imobiliária do centro das
cidades, distribuindo-a por toda a região metropolitana do Porto e Lisboa.
Poucas
medidas terão um efeito mais profundo no país. Cada euro gasto nisto é bem
gasto, e se é eleitoralismo bem nos faltava mais deste e menos de outros,
cheios de rotundas e foguetório. Falta agora a parte mais difícil: preparar o
sistema para absorver a procura. Não o fazer transformaria esta justíssima
redução de preços num ato eleitoralista. Mais do que nunca, este governo e os
próximos serão escrutinados pelo bom funcionamento dos transportes públicos
urbanos. E pela demora no tal plano ferroviário que inclua o resto do país
neste salto civilizacional.
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