Escravizado até os 58, Tebas
dominou a arte de entalhar pedra e foi um dos maiores nomes da construção
colonial, no século XVIII. Sua presença revela influência negra na arquitetura
brasileira. Mas sua história até hoje é esquecida
Rôney Rodrigues | Outras Palavras
Era outra São Paulo, explica o
escritor e jornalista Abílio Ferreira. Estamos na esplanada da histórica Igreja
da Ordem Terceira do Carmo, na região central de São Paulo, erguida em taipa de
pilão no século 18. “Ali, onde está o prédio da Secretaria da Fazenda”, aponta
ele, “havia um convento mais antigo ainda, de 1592. Foi demolido em 1928 para
fazer esse prédio e alargar a avenida Rangel Pestana. Essa igreja que sobrou é
um vestígio dos três vértices do triangulo histórico, que inclui também o
convento de São Bento e o de São Francisco. E Tebas tem obras nessas três
pontos do vértice”, conta Ferreira.
Ferreira acaba de lançar o livro Tebas:
um negro arquiteto na São Paulo escravocrata (abordagens), primeira publicação
de não ficção dedicada ao construtor. Conta que devido a seu sofisticado
trabalho e ao fato de ser negro e escravizado, muitos alegaram que Tebas não
passou de uma lenda. Outros sugerem que ele, na verdade, era branco.
Mas os documentos históricos
estudados pelo escritor comprovam: ele existiu e era muito requisitado pelas
poderosas ordens religiosas de São Paulo que pagavam — e caro — pela arte de
entalhar pedras desenvolvida pelo arquiteto.
O mito de Tebas
Há duas versões sobre a origem do
apelido de Joaquim Pinto de Oliveira: uma em referência à engenhosidade do
Tebas grego, que derrotou a esfinge, e outra a uma palavra do quimbundo,
catalogada no dicionário Houaiss, também usada para definir alguém com grande
habilidade. “É bem mais provável que o povo do século 18 conhecesse essa
palavra de sua língua ancestral do que a lenda grega do Sófocles”, especula o
escritor.
O fato é que a história de um
“arquiteto negro” atravessou o século 19 em narrativas populares, adquirindo status de
lenda urbana. O Chafariz da Misericórdia, local de encontros, namoros e
conspirações políticas em uma cidade colonial ainda sem abastecimento de água,
era conhecido como “Chafariz do Tebas”, o que ajudou a perpetuar a história de seu
construtor.
O primeiro registro escrito sobre
Tebas aparece somente em 1899 em uma cronologia da história paulistana,
elaborada pelo cronista José Jacinto Ribeiro, relatando a construção da torre
da Catedral da Sé e que “Thebas foi também o construtor do Chafariz da
Misericórdia. É daí que vem a frase: é um Thebas; homem que faz tudo”. Em 1935,
o chefe da Seção de Documentação Histórica do Departamento Municipal de
Cultura, Nuto Sant’Anna, publica um artigo na Revista do Arquivo Municipal de
São Paulo intitulado Thebas: subsídios inéditos para a reconstituição da
personalidade do célebre arquiteto paulistano do século XVIII.
“Ele é muito minucioso
cientificamente e questiona as imprecisões dos cronistas anteriores, revelando
informações adicionais como o nome completo de Tebas, obras erroneamente
atribuídas a ele, mas, contraditoriamente, encerra o artigo problematizando se
Tebas era mesmo um escravo, pois tinha nome completo, algo raro entre os
escravizados da época”, explica Ferreira. “Além disso, Nuto Sant’Anna questiona
se Tebas fez tudo que dizem que ele fez, mas adverte que uma lenda popular
construída pela imaginação do povo é sempre mais interessante que figuras
estéreis e frias propostas pela história”.
Em 1937, o mesmo cronista
utiliza-se dessas lendas em torno do mito do arquiteto para escreve o romance Tebas,
o escravo, que ganhou grande projeção na época. “Novamente, Tebas é uma figura
idealizada: uma liderança que luta contra a escravidão e que ganha a alforria de
um pároco depois de construir astutamente a torre da Sé”, analisa Ferreira.
Em 1974, o sambista Geraldo Filme
compôs um samba-enredo em homenagem a Tebas para a Escola de Samba Paulistano
da Gloria, o que, novamente, dá uma grande visibilidade ao personagem. No
programa Ensaio, da TV Cultura, ele narra uma das histórias passadas
pela tradição oral: que Tebas, que sempre estava sentado em frente a igreja do
Carmo, fizera um acordo com um padre para construir uma a torre da Sé – pois,
segundo ele conta, ninguém na época sabia como fazê-la: “eu construo a Catedral
com vocês, mas o primeiro casamento lá tem que ser o meu, ela já estava de olho
em uma comadre lá”, conta Filme no vídeo.
“Isso tudo cria uma áurea de
narrativa e lenda que ajudou a popularizar a figura de Tebas”, observa
Ferreira. “Talvez Nuto Sant’Anna tenha razão ao falar de figuras frias e
estéreis: o povo se apropria de certas figuras que se ficassem somente
descritas pela historiografia não sairia dos muros acadêmicos. É necessário
essa dimensão poética!”.
Um mestre das pedras
“Essa Igreja representa um
momento em que o Tebas começa a ganhar uma dimensão humana”, afiança Ferreira,
adentrando a Igreja do Carmo.
Nos anos 1980, Carlos Cerqueira,
pesquisador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
analisava os arquivos dos carmelitas, guardados com esmero em um gigante cofre
no centro de São Paulo. Entre os papeis centenários, ele buscava fundamentos de
valor artístico e histórico para o tombamento da igreja, que sofreu inúmeras
modificações ao longo de sua história.
“Cerqueira descobre que a fachada
da igreja era original e que havia uma cópia do contrato de Tebas com os
carmelitas para o trabalho. Ele trabalhou aqui enquanto também trabalhava na
Catedral da Sé”, conta Ferreira. “Isso tira de vez o Tebas da esfera lendária e
confere a ele humanidade: ele é uma pessoa que assinou documentos, que recebeu
uma remuneração, que trabalhou em importantes projetos; informações sobre com
quem e onde ele morava, nome da esposa e das filhas também surgem”.
Avançou-se muito na descoberta de
informações sobre a vida e obra de Joaquim Pinto de Oliveira, conta o escritor,
porém sabemos que muito ainda está para ser descoberto. Tanto que Ferreira
planeja um livro-reportagem sobre a história das investigações sobre Tebas.
Pergunto para ele o que podemos afirmar com certeza sobre esse
arquiteto negro, ícone esquecido da arquitetura paulistana.
Sabe-se que Tebas nasceu em 1721,
em Santos, litoral sul de São Paulo, narra Ferreira. Foi escravizado pelo
português Bento de Oliveira Lima, célebre mestre de obras da região. Contou,
portanto, com duas contribuições ao seu trabalho: crescer em uma região com
abundância de pedras e receber importantes influências da Metrópole — como o
barroco — por viver em uma zona portuária. “O mesmo barroco que influencia
Aleijadinho, em Minas
Gerais , vai influenciar o trabalho de Tebas, um dos
principais nomes do barraco paulista”, afiança ele.
A especialidade desenvolvida por
Tebas, provavelmente utilizando conhecimentos de seus ancestrais africanos, era
talhar e aparelhar pedras, permitindo elaboradas ornamentações, acabamento
refinado e maior durabilidade às construções, características difíceis de
conseguir pela técnica da taipa de pilão.
Lima, que era mestre de obras,
percebeu que seu escravo poderia ser muito rentável em uma cidade como São
Paulo – que, na época, vivia um boom na construção civil promovido
pelas ordens religiosas, mas que não contava com muitos construtores e
arquitetos que dominassem o entalho em pedra. O fato é que, já na década de 1750, Tebas
teve uma ascensão como construtor, sendo o responsável por várias obras,
ganhando até o título de juiz de ofício, com a autoridade para fiscalizar as
obras de alvenaria e pedra.
Em 1789 seu proprietário morre
com uma dívida com o bispado da Sé: havia recebido para realizar uma obra que
não executou. O arcebispo negocia com a viúva, em problemas financeiros: compra
o sítio dos Limas, localizado onde hoje é o bairro do Paraíso, e combina de só
pagar quando Tebas terminar a obra. A exigência do contrato é obrigar o
arquiteto a fazer a edificação. A viúva também passa a depender dos trabalhos
dele para se sustentar, já que estava alheia aos negócios do falecido marido.
Em 1778, quando termina os trabalho na catedral da Sé, o arcebispo concede a
Tebas a carta de alforria. Tebas continuaria no oficio até os 90 anos, quando
morre no dia 11 de janeiro de 1811, vítima de gangrena, provavelmente causado
por algum acidente de trabalho. Seu velório e sepultamento foi realizado na
Igreja de São Gonçalo, onde eram enterrados os “mulatos importantes” da época.
Renovação estilística em São Paulo
Mas por que Tebas seria um
arquiteto, perguntam alguns. Não seria somente um construtor bem sucedido em
seu ofício? Benedito Lima de Toledo, professor emérito da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP), em entrevista concedida à revista Leituras
da História, em 2012, destacou que Joaquim Pinto de Oliveira soube captar a
religiosidade da época e expressá-la de maneira muito pessoal.
“Essa expressão da religiosidade
é que o transformou em arquiteto e as suas obras em arte, disse Toledo, na
ocasião. Pode-se dizer que Tebas foi decisivo para a constituição daquilo que
Luís Saia, outro arquiteto de peso, chamou certa vez de período de ‘renovação
estilística, ocorrido especialmente nas igrejas na segunda metade do século 18’ ”, lembra Ferreira.
Além disso, Tebas é uma amostra
de como a população negra africana transplantada para o Brasil trouxe
conhecimentos e tecnologias para a construção das nossas cidades (e em muitas
outras áreas), fatos costumeiramente esquecidos pela história.
“Tebas não era uma exceção”,
ressalta o escritor. “Houve circunstâncias favoráveis para que ganhasse
notoriedade, mas ele é herdeiro dos conhecimentos técnicos trazidos pelos
africanos para cá e, ao contrario do que muitos acreditam, até mesmo do IPHAN,
essa ideia de nação baseada no conhecimento português está errada: há um
amálgama com contribuições muito relevantes do povo indígenas e africano”.
E conclui: “ainda precisamos
discutir mais a fundo a contribuição do povo africano para o Brasil – e não
somente pelo fato de serem negros”.
Imagens: 1 - A fachada da Igreja
da Ordem 3ª do Seráfico São Francisco, a primeira da direita para a esquerda,
na foto, ainda está exatamente como Tebas a executou, em 1783; 2 - O desenho do
Chafariz da Misericórdia, executado pelo artista plástico José Wasth Rodrigues (1891-1957), a partir de foto de Augusto Militão de Azevedo, revela a função
social dos chafarizes públicos da cidade de São Paulo: ponto de trabalho e
encontro do povo, especialmente da população negra; 3 - Igreja da Ordem
Terceira do Carmo
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