Quando insistia para que os EUA
iniciassem guerra aérea contra a Síria em 2012, Hillary Clinton argumentou em seus e-mails que
a Rússia “não se intrometerá”, assim como “nada fez além de reclamar”, quando
EUA e aliados bombardearam a Iugoslávia em 1999:
O segundo passo é desenvolver
apoio internacional para uma operação aérea da coalizão. Rússia jamais apoiará
essa missão; portanto não faz sentido operar no Conselho de Segurança da ONU.
Alguns dizem que o envolvimento
dos EUA cria o risco de guerra mais ampla com a Rússia. Mas o exemplo do Kosovo
mostra coisa diferente. Naquele caso, a Rússia tinha laços étnicos e políticos
genuínos com os sérvios, laços que não existem entre Rússia e Síria; e mesmo
naquele caso, a Rússia nada fez além de reclamar.
Funcionários russos já
reconheceram que não se intrometerão, se houver intervenção.
O que Hillary não percebeu é que
Putin não é Yeltsin, que Putin voltou à presidência depois que uma abstenção de
Medvedev na ONU permitiu ao Império iniciar guerra aérea contra a Líbia, não
Yeltsin, e tampouco percebeu que mesmo Yeltsin fez um pouco mais que só
“reclamar” em 1999.
Quando a guerra OTAN-Iugoslávia
aproximava-se do fim, Yeltsin ordenou que os 300 russos da força de paz na
Bósnia avançassem
sobre o aeroporto de Priština no Kosovo e o ocupassem, antes que
tropas da OTAN chegassem pelo sul, o que foi feito. Wesley Clark deu a ordem ao
general britânico Mike Jackson, e a única razão pela qual não nos lembramos de
1999 como o maior confronto direto entre russos e exércitos da OTAN é que
Jackson recusou-se a cumprir a ordem de atacar. Iéltsin então, dando-se conta
de que seria quase impossível a entrada, por ar, de reforços de países
pró-OTAN, resolveu entregar o aeroporto.
Assim sendo, sim, verdade é que a
Rússia fez bem mais que “só reclamar” em 1999. A Rússia tentou um
movimento mal concebido e mal executado, de último momento, mas sinceramente
empenhado, para garantir uma área ocupada pelos russos no Kosovo, para defender
os sérvios. Não deu certo, mas tentar é muito diferente de nem tentar.
Como sabemos, na Síria a Rússia
também fez muito mais que só reclamar. Ao contrário do que Clinton esperava
três anos antes, a Rússia, em 2015, entrou em guerra, na Síria.
Minha opinião é que o fator que
possibilitou a intervenção russa na Síria foi a intervenção dos EUA, iniciada
um ano antes, na Síria, contra o ISIS. Desde 2011 a CIA apoiava a
rebelião islamista contra o governo sírio. Mas depois que ISIS e
rebeldes separaram-se no final de 2013, e da rápida expansão do ISIS para o
Iraque ocidental no início de 2014, o Pentágono dos EUA entrou na guerra contra
o ISIS, primeiro no Iraque e uns poucos meses depois, em menor extensão,
também na Síria.
Com isso os russos puderam
intervir, eles também, claramente, aos olhos do mundo e também aos
norte-americanos, sem se mostrar em oposição direta aos objetivos dos EUA –,
quando de fato não estavam nessa oposição. Militarmente, os russos, Moscou
poderia demonstrar, lá estavam para fazer o que os próprios militares
norte-americanos faziam, a saber, combater contra o ISIS, embora os russos
fossem mais ativos e também combatessem contra al-Qaeda e seus aliados. Em vez
de a intervenção russa opor-se diretamente à intervenção norte-americana, os
russos – porque de fato havia duas intervenções norte-americanas separadas
operando em projetos cruzados –, os russos se posicionaram num ângulo de 90
graus em relação ao que os EUA faziam lá.
De fato, acho que Moscou foi à
Síria tanto para frustrar os planos norte-americanos de ‘mudar o regime’, como
para forçar os EUA a engajar-se e lidar com os russos, e reconhecer a presença
russa como presença parceira, não importa o quanto houvesse de ressentimento
nessa ‘parceria’, em certo sentido. Essa estratégia pareceu promissora
inicialmente, quando a Rússia gerou alguma boa-vontade internacional, ao
combater contra o ISIS quando o grupo atacou Paris, e depois
novamente quando Lavrov e Kerry em setembro de 2016 conseguiram chegar a um
acordo para expandirem, conjuntamente, a guerra contra al-Qaeda, mas acordo que
foi logo sabotado por atores dentro do Pentágono, especificamente pela Força
Aérea.
Em retrospecto, essa estratégia
de forçar Washington a engajar-se em alguma ‘parceria’ jamais teria qualquer
chance de funcionar, mas valia uma tentativa naquele momento, com a
inteligência então disponível.
De um modo ou de outro, fato é
que a intervenção russa caminhou diretamente contra os esforços da CIA (e em
menor extensão, também contra os esforços do Pentágono) que contava com armar
os rebeldes. Também caminhou contra as esperanças e sonhos dos liberais dos
mísseis cruzadores ocidentais, que se autoenganavam com o mesmo empenho de
sempre, na crença de que os rebeldes jihadi valiam o que custavam e
representariam alguma melhoria em relação ao governo secular.
Também é fato que os russos
venceram essa disputa e que a ‘mudança de regime’ comandada por jihadistas foi
contida e derrotada. Simultaneamente, o ISIS foi eliminado, de modo
que hoje Rússia e Pentágono já não têm objetivo militar partilhado, o que torna
as duas forças muito mais claramente opostas uma à outra do que no começo.
A diferença entre as tentativas
dos russos para se fazerem presentes na Iugoslávia em 1999 e na Síria em 2015
nunca esteve na ousadia. Em tese, o movimento de tentar e bloquear a entrada da
OTAN num aeroporto e no norte do Kosovo foi muito mais ousado do que se pôr a
bater no ISIS mais de 12 meses depois de os EUA já estarem fazendo
precisamente isso.
A diferença entre o sucesso na
Síria e o fracasso no Kosovo foi o timing. Por mais que Hillary insista em
que os russos teriam “laços étnicos e políticos genuínos com os sérvios”,
simplesmente não é verdade. Belgrado e Moscou não foram aliados durante a
Guerra Fria e não foram aliados nos anos 1990s, quando a Iugoslávia viveu uma
década como pária, e Yeltsin, como fantoche de Washington.
Qualquer tentativa de último instante
em 1999 para frustrar planos da OTAN e apoiar com firmeza os sérvios
fracassaria, porque não havia qualquer plano, nem qualquer força posicionada
com antecedência. Chegada por ar, sobrevoando países pro-OTAN nunca
funcionaria. Para que o movimento de Moscou tivesse alguma chance, qualquer
chance, teria de haver navios para transporte de tropas já ancorados no
Adriático. Mas isso teria exigido exatamente a capacidade de se antecipar e a
independência que não havia no governo de Yeltsin nos anos 1990s.
Bem diferente disso, na Síria
havia menos urgência, mas também muito importante e diferente de inexistentes
laços entre russos e iugoslavos, entre russos e sírios, sim, havia e há laços
reais. Esses dois fatores explicam que os russos se tenham envolvido desde o
início, quando ainda havia muito tempo para virar o jogo.
Eis porque acho que a recente
pequena missão militar russa à Venezuela é tão importante. Na Iugoslávia, a
Rússia só entrou depois que a OTAN já entrara e perdeu, porque era tarde
demais. Na Síria, a Rússia também deixou que o Império entrasse primeiro, mas
mesmo assim venceu, porque as circunstâncias eram outras e favoreceram os
russos. Mas tudo sugere que, na Venezuela, a Rússia não tenha qualquer intenção
de permitir que os EUA entrem antes dela. Dessa vez, a primeira força militar
no teatro é russa.
Os russos dizem que seria visita
já regularmente agendada sob acordos de indústria e defesa vigentes há dez
anos, mas a mídia russa espertamente logo viu que, fosse esse o caso, o mais
natural seria mandar para lá técnicos civis e empresas da Defesa, não soldados
das Forças Terrestres e, temporariamente, até o seu vice-comandante. O mais
provável é que tenha sido enviado pessoal militar porque se trata de missão
militar.
Estou certo de que a Rússia não
estenderá à Venezuela qualquer tipo de proteção de guerra, (como foi feito para
Cuba, nos anos 1960s), nem suponho que venham a ser enviados sejam quantos
forem soldados para combater e defender os venezuelanos contra qualquer
possível invasão pelos EUA, dentre outras razões porque seria procedimento vão
e contraproducente.
Mas acho que é bastante possível
que Moscou tenha decidido frustrar um ataque militar direto pelos EUA, ou, em
outras palavras, ajudar a detê-lo, apoiando os venezuelanos do mesmo modo como
a URSS apoiou vários militares africanos durante a Guerra Fria. Vale dizer: com
número mínimo possível de especialistas altamente treinados para tarefas não de
combate, de multiplicar forças chaves.
Os próprios norte-americanos já
trabalham com a hipótese de as tropas russas na Venezuela incluírem
ciberespecialistas e engenheiros e outros técnicos especialistas em reparos nos
S-300. Outra possibilidade é que tenham sido enviados para a Venezuela
especialistas em guerra eletrônica e inteligência de sinais.
Mas mais importante que o papel
exato que os russos planejem desempenhar na Venezuela, é o fato de que – repito
– os russos lá chegaram antes dos norte-americanos. Não significa que lá
permanecerão para sempre. Se as coisas se acalmarem, ou se os russos sentirem
que faz sentido se retirarem, ok, mas o que se deve extrair disso é que Moscou
parece ter aprendido uma lição muito importante da Iugoslávia e Síria: se você
deixar os EUA chegarem primeiro ao cenário, depois não reclame.
Dessa vez, quando estiverem para
decidir a favor de guerra aérea, os norte-americanos ou gente como Mike Pompeo
não terão o benefício de que gozou o predecessor de Pompeo, em 2012. Já saberão
que os russos provavelmente estarão lá, numa ou noutra função. E, claro, com uma
ou duas surpresas guardadas na manga.
*anima o site Checkpoint Asia), para o The
Saker blog
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