quarta-feira, 3 de abril de 2019

No mundo, só Israel ainda vê EUA como nação amiga


O juiz libanês Ahmad Mezher ordenou que se investiguem e determinem-se as condições em que estão os territórios libaneses ocupados nas Fazenda Shebaa, Kfarshouba, Huneen, Ideise e Bleeda. Todas essas vilas fazem fronteira com Hasbaiya, Rashaya al-Fukhar e Kiyam estão sob ocupação israelense desde 1981 – como as colinas do Golan Sírio, também ocupadas por Israel desde 1967. A medida coincide com o ‘presente’ ilegal – as colinas do Golan Sírio – que o presidente Donald Trump dos EUA fez ao seu mais próximo aliado o primeiro-ministro Benyamin Netanyahu. Apesar de o movimento de Trump ter sido condenado verbalmente pela comunidade internacional, nenhum outro Estado ou organismo internacional dá sinais de se opor abertamente à ‘doação’ feita a Israel.

Mas o Líbano decidiu, sim, se opor diretamente, mostrando que o país está disposto e em prontidão para defender o próprio território, no caso de os ‘presentes’ que os EUA decidam fazer inclua territórios libaneses ocupados. A presidência, o parlamento e o governo do Líbano decidiram conjuntamente que é direito do Líbano recuperar seu território ocupado, e que o conjunto “Exército, povo e Resistência” está coeso e unido sob a mesma bandeira. Implica dizer que a possibilidade de confronto direto entre a Resistência – i.e. o Hezbollah nesse caso – e Israel está agora sobre a mesa.

O nível de tensão e possibilidade de confronto subiram muito durante a visita do presidente Michel Aoun do Líbano a Moscou. Nas reuniões com o presidente Vladimir Putin da Rússia, o presidente Aoun, que é cristão, rejeitou as pressões que os EUA têm feito sobre seu país. O establishment norte-americano, incluindo o secretário de Estado Mike Pompeo e seus enviados ao Líbano, querem impedir que os mais de 1,5 milhão de refugiados sírios que vivem no Líbano voltem para casa. O presidente Aoun também rejeitou o ‘presente’ de Trump a Netanyahu. Disse com todas as letras que as Colinas do Golan são território sírio ocupado ilegalmente por Israel, não são propriedade dos EUA, para que disponham dela como bem entendam.



Ainda não se sabe se as Fazendas Shebaa, Kfarshouba e vilas vizinhas foram incluídas no ‘presente’ de Trump a Israel. Por isso as autoridades libanesas solicitaram à autoridade judicial que se pronuncie oficialmente sobre o status dos territórios ao sul do Líbano ocupados por Israel. Se em resposta à ação do juiz libanês, houver qualquer tentativa de declarar que essas áreas pertenceriam a Israel, nesse caso a tríade libanesa (Exército, Povo e Resistência) cuidarão de recuperar seus territórios ocupados.

O timing da decisão é importante, porque mostra a disposição do governo libanês para levantar a questão e confrontar Israel, na sequência da decisão dos EUA sobre as Colinas do Golan, território muito intimamente ligado a fazendas e vilas libanesas.

Em 2009, algumas daquelas terras foram contestadas entre Síria e Líbano, mas agora o Líbano está em melhor posição que a Síria para apresentar suas exigências a Israel, e o governo sírio apreciará que o Líbano cuide dessa ação.

O presidente Aoun já levantara essas questões com o presidente Putin antes, quando Trump ‘deu’ Jerusalém de presente a Netanyahu, ao reconhecer a cidade como capital indivisa de Israel. O Líbano apoia integralmente o direito de retorno dos palestinos à própria terra, sobretudo porque há mais de 800 mil palestinos vivendo no Líbano. Assim como os EUA prefeririam que esses palestinos permanecessem no Líbano, agora os EUA parecem desejar que o Líbano aceite para sempre a presença dos refugiados sírios. A política dos EUA, de manter no Líbano os refugiados sírios, atende a vários objetivos.

O primeiro é alterar o equilíbrio das religiões no poder, no Líbano. Muitos refugiados sírios são sunitas (muitos dos que são hostis a Assad e a aliados de Assad) e os EUA muito apreciariam encher o Líbano de sunitas para desafiarem o Hezbollah xiita e a sociedade que apoia a Resistência. Nem todas as guerras feitas por Israel conseguiram dobrar o Hezbollah e nunca abalaram a força militar do grupo, que só aumenta. Hoje o poder militar do Hezbollah é sem precedentes, no plano doméstico e no plano regional. Mais que isso, nas recentes eleições para o Parlamento, o Hezbollah recebeu mais votos que qualquer dos partidos religiosos – o que foi surpresa para todos. O apoio com que conta o Hezbollah vai muito além da confissão religiosa. A Resistência provou que defende cristãos e xiitas contra os extremistas wahhabitas takfiri. Desafiar o Hezbollah é certeza de fracasso. Daí que os EUA estão obrigados a destruir a sociedade que há e tentar construir outra, porque é a única estratégia que lhes resta.

O presidente Aoun insiste em que os refugiados sírios voltem para a Síria, indiferente aos incentivos financeiros que EUA e Europa ofereceram para que sejam mantidos no Líbano. Mas a presença dos refugiados altera o equilíbrio religioso no Líbano e pode acelerar o processo pelo qual os cristãos tornem-se minoria em solo libanês. O terrorismo religioso que atingiu o Oriente Médio ao longo da última década, teve por alvo minorias regionais, especialmente os cristãos. Os mesmos líderes na OTAN cujos governos patrocinaram o terrorismo takfiri contra cristãos no Levante propuseram aos líderes cristãos libaneses que eles deixassem a terra dos próprios ancestrais e se estabelecessem no ocidente. Cristãos que foram estuprados, assassinados e aterrorizados pelo ISIS e al-Qaeda no Iraque e Síria teriam tido o mesmo destino no Líbano, se o Hezbollah tivesse decidido entrincheirar-se no sul do Líbano, no subúrbios de Beirute ou em vilas selecionadas no Vale do Bekaa.

Sobretudo, o presidente libanês considera os refugiados sírios um peso financeiro e carga extras sobre a segurança, que só faz tornar ainda mais frágil a já caótica infraestrutura no Líbano. Hoje, esses refugiados representam 1/3 da população libanesa total.

Outro objetivo da política dos EUA para os refugiados no Líbano é fazê-los derrubar o governo do presidente Bashar al-Assad da Síria, o que os norte-americanos não conseguiram pela via de armar militantes ao longo dos últimos oito anos. O establishment dos EUA quer manter mais de 5 milhões de refugiados sírios fora da Síria e principalmente no Líbano, Jordânia, Turquia e na Europa. Isso, pelas contas dos EUA, pode alterar o resultado de eleições presidenciais na Síria e impedir a reconstrução do Exército Árabe Sírio e a própria reconstrução do país. Os sírios são artesãos bem formados e talentosos. Quanto menos sírios houver no país, menos produtiva a reconstrução do país.

Nenhum desses objetivos dos EUA ajudam o Líbano, de modo algum. Ao contrário, enfraquecem o Líbano, que precisa manter relacionamento saudável com a vizinha Síria, tanto pela segurança quanto pelo desenvolvimento comercial.

Trump tornou o Oriente Médio menos seguro. Ofereceu a Israel um ‘presente’ ilegal e desnecessário. Israel já controlava as colinas do Golan Sírio; a Síria não estava ameaçando Israel. Durante 30 anos, a Síria jamais disparou uma bala contra a ocupação israelense no Golan, e nos próximos dez anos estará ocupada com reconstruir a infraestrutura nacional que foi completamente destruída.

A considerar sobretudo que o falecido presidente Hafez Assad negociou com Israel, com mediação dos EUA, um acordo de paz, em troca das Colinas do Golan. Foi Israel quem, no último segundo, rejeitou o acordo. Assad disse então que deixaria às gerações futuras a missão de liberar aquele território.

O establishment dos EUA está minando a segurança e a paz do Líbano, ao impor ao país 1,5 milhão de refugiados, o que desestabiliza a sociedade local. E ainda ameaça impor sanções ao Líbano, se o país não se submeter aos abusos dos norte-americanos.

Trump ‘deu’ Jerusalém a Israel e já não pode ser considerado parceiro em qualquer processo de paz. Essa evidência, que os palestinos já compreenderam, impôs uma nova urgência à causa palestina. Trump não apenas nunca dará qualquer estado aos palestinos; mas, ainda pior que não dar, Trump está entregando a Israel os próprios direitos dos palestinos.

Forças dos EUA que não são bem-vindas na Síria, ocupam 1/3 do país e uma passagem de fronteira; apesar de o ISIS já não controlar qualquer território sírio no nordeste. Ao mesmo tempo, os EUA mantêm dezenas de milhares de refugiados sírios presos em campos de refugiados em al-Rukban, impedidos de voltar para casa.

No Iraque, o Parlamento está dividido entre os que querem ver partir o último soldado dos EUA, e os que querem manter alguma cooperação para treinamento e inteligência. Políticos iraquianos têm medo, tanto de pedir aos EUA que fiquem, como de ordenar que partam, porque temem que o ISIS volte ao país em qualquer desses dois casos (se os EUA ficarem, os iraquianos temem que os EUA apoiem os terroristas do ISIS; mas também temem que esse apoio continue, mesmo que os EUA sumam de lá).

Por fim, os EUA são vistos hoje como superpotência governada por um gângster, que rouba a riqueza dos países árabes ricos em petróleo, e os força a comprar armas dos EUA, para que todos os filhos do Oriente Médio continuem a se matar uns os outros, eles mesmos, e eles mesmos pagando, sem que os EUA tenham de correr qualquer risco na empreitada de matar árabes.

Países árabes, que já foram muito ricos, impõem hoje taxas locais que jamais se viram antes aos próprios cidadãos, e mergulham na mais grave crise financeira que a região vive, em décadas. Síria, Iraque, Iêmen, Palestina e Líbano estão financeiramente no fundo do poço, e mesmo a Arábia Saudita, os Emirados, Qatar e Bahrein já viveram melhores tempos, em termos financeiros. O acordo nuclear do Irã foi revogado. E desde que Trump assumiu o poder, o país enfrenta as sanções mais duras de todos os tempos.

Ainda não se pode saber quando eclodirá a próxima guerra, que desafiará a hegemonia dos EUA nessa parte do mundo.

O que se sabe com certeza é que Rússia e China já se implantaram no Oriente Médio, prontas para ocuparem, elas mesmas, o lugar dos EUA e de um establishment que só Israel, hoje, no mundo, ainda considera nação amiga.

Elijah J. Magnier Blog | em Oriente Mídia

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga

Entreouvido na Vila Mandinga: “É como se a única missão dos EUA no mundo fosse desgraçar outros povos…”

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